Tormento e Felicidade
Meditação para o dia 08 de Novembro
Então há no purgatório alegrias e consolações? É possível que em meio de tanta dor, de tão horríveis suplícios como os da pena do dano e do fogo, haja ainda um raio de luz, uma alegria, uma consolação para as pobres almas?
Sim, porque o purgatório é a pátria da justiça rigorosa, mas o é também da infinita misericórdia de Deus. Já não é uma grande misericórdia Deus nos reservar um lugar de expiação além-túmulo? Purificar-nos misericordiosamente para nos tornarmos dignos de sua eterna Presença? Ó, sim, o purgatório é uma misericórdia de Nosso Senhor. E como todas as obras da divina misericórdia, há de ter a unção e a doçura da Eterna Bondade. Quanto nos apavora a Justiça divina naquelas chamas expiadoras e que terror para nossa alma saber o que nos espera depois desta vida! Todavia, console-nos a ideia de que há no purgatório consolações que excedem a todas que possamos ter nesta vida. É um tormento e uma felicidade sem par. Um mistério que nos será desvenda-do mais tarde. Alguns autores insistem muito no sofrimento do purgatório e nada falam das alegrias e consolações. É mister guardar um justo equilíbrio.
Nem transformar o purgatório num verdadeiro inferno, nem fazer dele o paraíso. É um lugar de expiação e de tormentos horríveis, não há dúvida, mas há nele a doce esperança da salvação, esperança acompanhada da certeza absoluta de um dia chegar à posse de Deus na Bem-aventurança. E isto não é uma felicidade sem par? Quando São Francisco de Assis soube que era um predestinado e viu garantida por revelação do céu a sua glória, teve uma alegria tão grande, que nenhuma linguagem humana o poderia traduzir. Que não será a alegria das pobres almas na certeza de serem predestinadas?
São Francisco de Sales, cuja doutrina é um bálsamo suavizante das almas, fala das alegrias e consolações do purgatório. Escreve o melífluo Doutor:
“A maioria dos que temem o purgatório é muito mais por interesse e amor de si mesmos do que pelo interesse de Deus. E daí vem que falam ordinariamente só das penas daquele lugar e nunca falam da felicidade e da paz que desfrutam as almas que lá estão. É verdade que os tormentos são extremos, e as maiores e mais terríveis dores desta vida não se podem comparar a eles, mas também as satisfações interiores são tais e tantas, que nenhuma prosperidade nem alegria da terra existe que a elas se possam igualar. Se é uma espécie de inferno quanto à dor, é um paraíso quanto à doçura que a caridade difunde no coração. Caridade mais forte do que a morte e mais poderosa do que o inferno. Feliz estado mais desejável que temível, pois suas chamas são chamas de amor e de caridade. Terríveis penas, sim, pois elas retardam a hora da visão de Deus, e de amar a Deus e louvá-Lo e glorificá-Lo por toda eternidade” (1)
Eis aí o tormento e a alegria das almas do purgatório.
São Francisco de Sales e o Purgatório
Continuemos a doutrina consoladora do grande Doutor da Igreja sobre as alegrias do purgatório. Não quer ele que se insista apenas no tormento daquele lugar de expiação, mas que se procure dar às almas uma idéia também consoladora do purgatório.
Do que lemos nas obras do Santo podemos coligir dez pontos principais:
“1° — As almas do purgatório estão numa contínua união com Deus e perfeitamente submissas à vontade de Deus. Não podem deixar esta união divina e nunca podem contradizer a divina vontade, como nós neste mundo.
2° — Elas se purificam com muito amor e com toda boa vontade, porque sabem que é isto da vontade de Deus. Sofrer para fazer a vontade de Deus é uma alegria para elas.
3° — Elas querem ficar na maneira que Deus quer e quanto tempo Ele quiser.
4° — São impecáveis e não podem experimentar nem o mais leve movimento de impaciência nem cometer uma imperfeição sequer.
5° — Amam a Deus mais do que a si próprias, e mais do que todas as coisas, e com um amor muito puro e desinteressado.
6° — São consoladas pelos Anjos.
7° — Estão seguras da sua salvação e com uma segurança que não pode ser confundida.
8° — As amarguras que experimentam são muito grandes, mas numa paz profunda e perfeita.
9° — Se pelo que padecem estão como numa espécie de inferno, quando a dor, é um paraíso de doçura quanto a caridade mais forte do que a morte.
10° — Feliz estado, mais desejável que temível, pois estas chamas do purgatório são chamas do Amor!”
Quem pode entender e penetrar este mistério de dor e de alegria, que é o purgatório? Os Santos nos poderiam dar uma ideia do que sofrem e do que gozam as almas do purgatório, quando Deus os faz experimentar aqui neste mundo tanto martírio nas provações daquelas noites de que nos fala São João da Cruz, nas quais o Senhor prova, aniquila os seus eleitos na terra, e ao mesmo tempo os enche de uma paz inalterável e de consolações inefáveis em meio de trevas e de angústias. Mistério profundo, só os que experimentaram este doloroso e feliz estado de alma neste mundo podem dizer algo do que se passa no purgatório! Que alegria não experimenta o pobre náufrago quando depois de se debater entre as ondas se vê de repente salvo e livre de todo perigo! É a felicidade, a alegria das santas almas quando, após esta vida e depois de haverem passado o tremendo Juízo, vêem que estão salvas da condenação eterna, embora tenham de padecer muito naquelas chamas, naquele martírio, por mais prolongado que seja. Estão salvas! Ó! Como cantam elas um hino de ação de graças à infinita misericórdia!
As Consolações do Purgatório
Recorramos ainda ao testemunho da teóloga do purgatório, como foi chamada Santa Catarina de Genova. A doutrina desta Santa, ou melhor, as suas revelações no Tratado do purgatório, escreveu o Cardeal Perraud, são de uma psicologia sobrenatural tão alta o tão forte, que unem as mais altas considerações da filosofia e da teologia, aos pensamentos mais próprios para fortificar e consolar os que choram os seus entes queridos. Eu não creio, escreve a Santa, que depois da soberana felicidade que gozam na glória os Santos, haja uma felicidade igual à que gozam as almas do purgatório. O que é notável é que esta felicidade vai crescendo cada vez mais à medida que desaparecem as manchas do pecado. E faz esta comparação:
“Quando um corpo está escondido ao sol porque um outro corpo intercepta a luz solar, não pode receber a luz e permanece nas trevas. Todavia, se este corpo que impede a passagem dos raios solares for se consumindo e desaparecendo, o sol logo há de banhar de luz todo o corpo que estava antes nas trevas. Este corpo que impede a luz do sol é a mancha do pecado, o resto que fica a pagar à divina Justiça na outra vida e que impede a alma de receber a luz da glória, a Luz divina. As chamas do purgatório vão destruindo este corpo que impede a luz até que desapareça e brilhe a Luz eterna. Assim a alegria das almas vai crescendo à medida que as manchas que ficaram vão desaparecendo. E elas se sentem muito felizes em sofrer para se purificarem. Estas almas tem uma perfeita resignação à vontade de Deus. As almas do purgatório jamais haviam de querer a presença de Deus, quando ainda não purificadas. Elas prefeririam sofrer dez purgatórios a se apresentarem manchadas diante do Senhor. Eis porque se purificam e sofrem com alegria” (2)
O Padre Faber diz com razão:
“Se o sofrimento suportado com doçura e resignação é um espetáculo tão venerável na terra, que não há de ser naquela região da Igreja o purgatório? Ó, que pureza se encontra neste culto, na Liturgia do sofrimento santificado! Ó mundo! lugar de tanto barulho, de tédio e de pecado, quem não desejaria escapar de tuas perigosas fatigas e de tua perigosa e triste peregrinação para voar alegremente para a mais humilde região, tão pura, tão santa e tão garantida, onde reinam o sofrimento e o amor sem mancha, o purgatório?” (3)
Apesar disto, não deixemos de temer o purgatório e procuremos evitá-lo por uma boa penitência e por toda espécie de boas obras. Os sofrimentos não deixam de ser terríveis!
O Beato Henrique Suzo, abrasado no amor de Deus, começou a não temer o purgatório e a não dar importância aos seus sofrimentos e penas. Nosso Senhor lhe apareceu e admoestou, dizendo que isto lhe desagradava porque era não temer nem dar importância aos juízos de Deus! Devemos não nos desesperar nem aterrorizarmos nossa alma com o purgatório, mas havemos de imaginar que se há muitas consolações, é terrível também este purgatório.
Exemplo: Santa Gertrudes e as Santas Almas
Santa Gertrudes foi favorecida por Nosso Senhor com inúmeras aparições e êxtases, e tocava de perto o sobrenatural. Tinha a Santa uma grande estima por uma religiosa muito santa e que edificava pelas suas virtudes.
Morreu esta e a Santa a recomendava a Nosso Senhor com muito empenho. Fora arrebatada em êxtase e vira diante do trono de Deus a alma da Irmã querida vestida de trajes reais, belamente adornada, mas tinha os olhos baixos, como que envergonhada. Gertrudes ficou admirada e lhe disse:
— Como? Minha filha, não se lança nos braços do divino Esposo? Por que fica assim?
— Ó, minha mãe, eu não sou digna ainda do abraço do Cordeiro sem mancha. É preciso muita pureza, ser pura como um raio de sol para se unir a Deus. Tenho ainda manchas terrestres de algumas imperfeições.
Santa Gertrudes teve outra visão semelhante. Uma Irmã muito virtuosa lhe apareceu depois de morta. Estava de joelhos diante de Deus como imersa numa grande tristeza. Gertrudes pediu a Nosso Senhor que usasse misericórdia para com ela. Respondeu Nosso Senhor que si não viessem sufrágios ela teria de pagar toda a dívida à Justiça divina.
Esta alma disse a Gertrudes:
“A devoção que tive ao Santíssimo Sacramento me fez colher frutos especiais da divina Hóstia. Eis porque eu entrarei mais depressa e logo no céu”
Santa Teresa conta na sua Vida ou autobiografia, ter visto saírem do purgatório almas muito virtuosas que ela conheceu neste mundo e que julgava estarem no céu e no entanto haviam sofrido nas chamas expiadoras. No capítulo XXXVIII a Santa narra vários casos, entre eles o do Provincial dos Carmelitas, homem muito virtuoso. Na ocasião da sua morte, disse a Santa, fiquei muito perturbada e temi pela sua salvação, porque foi prelado vinte anos, o que sempre me inspirava temor por me parecer muito perigoso ter encargo de almas. Com grande aflição entrei no oratório. Dei-lhe todo bem que tinha feito em minha vida, que bem pouco seria, e disse ao Senhor que suprisse com seus méritos o que faltava àquela alma para sair do purgatório. Estando a pedir a Nosso Senhor do melhor modo que podia, pareceu-me vê-lo sair das profundezas da terra a meu lado direito, e o vi subir ao céu com grande alegria. Posto que fosse velho, apareceu-me como tendo apenas trinta anos e até menos, e o rosto resplandecente. Foi rápida esta visão, mas me deixou extremamente consolada.
Referências:
(1) Esprit de Saint François de Salles — I, cap. LXXIV.
(2) Trat. Purgat. — Cap. II.
(3) Faber — Purgatório, §3.
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(BRANDÃO, Monsenhor Ascânio. Tenhamos Compaixão das Pobres Almas! 30 Meditações e Exemplos sobre o Purgatório e as Almas. 1948, p. 64-71)