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O Talmude sobre a Última Ceia ou Páscoa Judaica

Sumário. São Paulo explica os sentidos dos preparativos para a antiga páscoa. O tratado Pesahím do Talmude. Por que os judeus procuram pão levedado usando uma vela no crepúsculo da véspera da páscoa israelita. O exame de consciência, a confissão e a preparação para a Comunhão prefigurados antes de Cristo. A cerimônia da procura por pão levedado. Quem estava obrigado e quem estava dispensado. A vela significava Cristo e a luz simbolizava o Espírito Santo incitando o pecador ao arrependimento antes da confissão pascal. Os dois bolos de pão da proposição expostos no Templo. As duas vacas arando no monte das Oliveiras. Todos os pães levedados queimados ao meio-dia na véspera da páscoa hebraica. Ritos que prenunciavam que a Comunhão não pode ser recebida em pecado mortal. Como se limpavam as casas e lavavam as louças no tempo de Cristo. A faxina da casa em nossos dias antes da páscoa hebraica a figurar tipicamente a purificação de consciência antes de nossa Comunhão pascal. Como os fariseus do nosso tempo plantam o trigo pascal, fazem a farinha, tiram e transportam a água e fazem os pães. A família Garmo tinha o monopólio da feitura de pães para o Templo. A “água de preceito” que o homem trazia ao cenáculo quando Pedro e João o encontraram. Como as mulheres faziam pães para a páscoa no tempo de Cristo. Como se obteve o ouro para revestir o Templo. Avareza dos sacerdotes. O que fez o rei Ezequias. Por que jejuamos antes da Comunhão. O luto judaico, origem dos paramentos pretos. Trabalho proibido antes da páscoa judaica. Origem das contribuições para a Igreja. Como o cordeiro era sacrificado no Templo, tinha seu sangue aplicado sobre as córnuas do altar e sua pele removida. As três divisões ou “grupos”. Por que Herodes Agripa ordenou a contagem dos rins. Quanto custavam os cálices do Templo. Como o cordeiro era crucificado e assado em sua cruz. Quem podia sacrificar o cordeiro. Por que não se quebrava nenhum osso e removiam-se os restos depois da ceia. Como ocorria a manducação do cordeiro. As Missas que se rezam em intenção de outros e a Comunhão levada aos doentes, prefiguradas. A segunda páscoa dos hebreus, nosso preceito pascal prefigurado. Os serviços sinagogais antes da ceia. Orações da noite. As sete bênçãos. O cálice do dirigente do banquete. A posição reclinada. Regras atinentes ao pão e ao vinho, e a diversos alimentos. Os quatro cálices pascais de vinho. Como foram escritos os Salmos. O Espírito Santo conhecido dos hebreus. O cálice que o Senhor usou, prefigurado. Descrição pitoresca da antiga páscoa e do dia da expiação, por Marco Ambíbulo, procurador romano com autoridade sobre a Judeia, anterior a Pilatos, etc.

MUITAS vezes nos seus dias de juventude, como fariseu de estrita observância, São Paulo tomara assento à páscoa judaica. Depois de convertido ele viu na faxina da casa, na busca pelo pão fermentado, nas preparações para a festa, na confissão dos pecados e nas cerimônias simbólicas praticadas pelos hebreus os tipos e imagens do Cristianismo e do Sacrifício Eucarístico.
Por isso escreveu ele:

“Ora, estas coisas se deram em figura de nós… e foram escritas para nossa correção.” (1 Cor. 10, 11)

 

“Para despertar-nos das obras mortas, a fim de que sirvamos ao Deus vivo.” (Hb 9, 14)

 

“Não sabeis que um pouco de fermento corrompe toda a massa? Expurgai o fermento velho, para serdes uma nova massa, já que sois sem fermento. Pois Cristo, nossa páscoa, é sacrificado. Portanto, celebremos a festa, não com o velho fermento da malícia e da iniquidade, mas com os pães ázimos da sinceridade e da verdade.” (1 Cor. 5, 6, 7, 8)

O leitor enxergará um sentido mais profundo nessas palavras depois de ler as páginas a seguir. Pois abriremos aqui o Talmude no tratado intitulado Pesahím (“páscoa”), que forma um volume de 264 páginas in-quarto, trazendo detalhes minuciosos do festim solene que chamamos de Última Ceia. Tomaremos os textos referentes ao nosso assunto e daremos explicações à medida que avançamos. Esses detalhes, ritos e cerimônias, os judeus alegam que provêm dos dias dos reis hebreus. Foram escritos em torno do ano 150 depois de Cristo: mostram a páscoa judaica, ao menos, do tempo em que foram escritos.

Os judeus são uma raça semita, e têm o conservadorismo de todos os povos asiáticos. O judeu ortodoxo preservou incontaminada a sua religião desde que o Templo estava de pé. A sinagoga, em termos de crença e de prática, mal mudou desde a época de Cristo. O amor por Moisés e por seus livros — os cinco primeiros livros do Antigo Testamento — fez o hebreu aferrar-se até à morte aos mais minuciosos pormenores de sua religião, preservou-os como um povo peculiar em meio às nações e impediu sua conversão, a despeito da pobreza, da perseguição e da vilania.

Quando os romanos destruíram a cidade e o Templo deles, os seus infortúnios os estreitaram às suas tradições, até que puseram- nas por escrito, no Talmude. Procuramos, pois, nessa obra os detalhes da páscoa tal como celebrada na época de Cristo. Essa obra, pouco conhecida entre os gentios, é agora apresentada, talvez pela primeira vez, a leitores cristãos. As descrições, ritos e cerimônias nas páginas a seguir parecem revelações de um mundo extinto, que são agora trazidas à luz para mostrar quão maravilhosamente a Missa, com seu elaborado cerimonial, estava prenunciada na páscoa de Moisés, dos patriarcas, dos profetas e dos videntes hebreus.

“No Or (‘luzir’, ‘crepúsculo’, ‘alvorada’), no décimo-quarto de nisan, deve ser feita a busca por pão fermentado à luz de vela, mas não é necessário vasculhar todos os lugares onde não se costuma pôr nada fermentado.” (Ver Talmude babilônico, todo o tratado Pesahím (“páscoa”))

Or”, palavra hebraica para “luz”, era o nome da cidade onde Abraão vivia na Babilônia, antes de Deus chamá-lo a adentrar a Palestina (Gn 2, 28-31; 15, 7). Os babilônios chamavam-na Ur (“luz” da Lua, que eles adoravam). A cidade em ruínas, perto da foz do Eufrates, agora se chama Tell el-Muqayyar (“morro construído com betume”).

Assim, ao raiar do dia, para prefigurar que na aurora da redenção que o libertará dos pecados que cometeu e que ensombrecem sua mente, o pecador acorda do sono, despertado com escrúpulos de consciência pela luz do Espírito Santo, a fim de se preparar e de vasculhar sua memória à procura de seus pecados, para livrar-se deles por meio da confissão, quando há de receber o Cordeiro de Deus na Comunhão; assim, pois, significando a luz do Espírito Santo na alma do pecador, que lhe mostra o caminho para o perdão em meio à escuridão do espírito manchado pelo pecado, com uma vela o judeu vasculhava a casa dele, à procura de fermento.

O ritual da páscoa judaica tem a seguinte rubrica (Ver Zanolini, De Festis Judiorum, capítulo 4):

“Na tarde que antecede o décimo-quarto dia do mês de nisan, é necessário que todo chefe de família faça a busca por pães fermentados em todo lugar onde são guardados, recolhendo no seu caminho tudo que é fermentado. Diz-se o seguinte antes da busca: ‘Bendito és tu, ó Senhor nosso Deus, Rei do Universo, que nos santificaste com os teus mandamentos, e nos mandaste excluir os pães fermentados.’”

Não basta confessarmos nossos pecados e estarmos pesarosos por tê-los cometido. Temos de odiar e detestar todo pecado, mesmo os que negligenciamos ou de que nos esquecemos. Não podemos ter nenhum apego ao pecado mortal, mesmo por aqueles de que nos esquecemos, que são perdoados junto com os outros, que confessamos (1 Cor. 5, 7; João 1, 17). Para prenunciar isso, a liturgia pascal judaica prossegue (Pesahím, cap. I, p. 8, etc.):

“Depois de todo o fermento ser recolhido, diz-se o seguinte: ‘Todo tipo de fermento que eu tenha em minha posse, que não vi nem removi, será nulo e contado como pó da terra.’”

O pecado é consumido em nossas almas com o fogo do Espírito Santo, que desceu sobre os Apóstolos como línguas de fogo inflamadas com o ardor da caridade, o amor a Deus sobre todas as coisas. Para prefigurar isso, o judeu queimava o fermento de manhãzinha, dizendo:

“Toda espécie de fermento — a saber: que esteja na minha posse, aquele que vi e o que não vi, o que removi e o que não removi, será nulo e contado como pó da terra.” (Cerimonial para as Duas Primeiras Noites da Festa da Páscoa, p. 3.)

Seguem-se então longas explanações, opiniões e discussões acerca das regras relativas à busca pelo pão fermentado, chamado em hebraico hametz, enquanto os não fermentados são os matsôt.

“Quem sai de casa para ir até o mar ou para juntar-se a uma caravana antes dos trinta dias que antecedem a páscoa não precisa procurar pelos pães levedados, mas se partir dentro dos trinta dias que precedem a páscoa, precisa queimar os pães levedados que houver na sua casa. Disse Abayi: ‘Um homem que saia de casa dentro dos trinta dias prévios à páscoa tem de queimar os pães fermentados se for sua intenção voltar na páscoa, mas, caso não seja esta a sua intenção, não precisa fazer isso.’” (Cerimonial para as Duas Primeiras Noites da Festa da Páscoa, p. 7.)

 

“Por que se especificam particularmente trinta dias? É conforme aprendemos na boraitá (Boraitá significa, em hebraico, “os ensinamentos dos sábios”.), a saber: Pode-se indagar e pregar a respeito das leis da páscoa trinta dias antes deste festival. O rabi Simeão ben Gamaliel (Essas palavras hebraicas são em português as seguintes: rabi (meu professor), Simeão (escuta), ben (filho), Gamaliel (Deus é remunerador)).  (Esse Gamaliel, que foi mestre de São Paulo, era um famoso fariseu que presidiu a uma escola em Jerusalém em At 5, 34 e 22, 3) disse ‘duas semanas antes’. Porque Moisés, no tempo da primeira páscoa, dispôs já as normas referentes à segunda páscoa, como está escrito (Nm 9, 2, 10, 11).

 

“Renuncie então o homem ao uso do pão na quarta ou quinta hora, visto não ser este o tempo de procurá-lo nem de queimá-lo; há que temer senão que o homem venha a se esquecer de fazê-lo nesse tempo. Renuncie ao seu uso na hora sexta, quando estiver prestes a queimá-lo.”

A hora sexta é o meio-dia, seis horas depois do nascer do sol; era dessa maneira que eles contavam as horas do dia. Eles procuravam pelos pães fermentados ao alvorecer, juntavam-nos e queimavam-nos ao meio-dia, geralmente começando às onze da manhã e terminando antes das orações do Templo ao meio-dia. A busca era feita com as bênçãos e orações citadas no Ritual.

“Todos estão de acordo, no entanto, que a bênção deve preceder o ato. Donde aduzimos isso? Porque o rabi Judá (este foi o famoso presidente do colégio de Tiberíades que nós mencionamos, o qual redigiu a Mishná) disse, falando em nome de Samuel: ‘As bênçãos devem ser proferidas antes de cumprir cada um dos deveres religiosos’. E o discípulo de Rabh (rabi Ilisda) disse: ‘Em todos os casos, com exceção do banhar-se: neste caso, a bênção deve ser pronunciada depois do ato’.”

 

“Os rabis ensinaram que a busca pelos pães levedados não deve ser feita à luz do sol ou da lua, nem de uma chama de fogo, mas somente à luz de vela, porque a luz de uma vela é eficiente para a busca, e muito embora não tenhamos base nenhuma para essa regra, todavia temos um aceno nesse sentido, na passagem (Ex 12, 9; Gn 34, 12): ‘E acontecerá, naquele tempo, que eu esquadrinharei Jerusalém com luzes (Velas, Sofonias I, 12).’ ‘O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, que perscruta todas as coisas ocultas das entranhas.’ (Pr 20, 27)”

Por que o judeu inspeciona sua própria casa com luz de vela e por que ele estava proibido de fazer essa inspeção com qualquer outra luz? Em capítulo anterior, o leitor terá visto que, no simbolismo da Escritura e da Igreja Católica, a vela significa Cristo iluminando a inteligência com os ensinamentos dele. Dele, do Filho, procede o Espírito Santo, que ilumina a inteligência do pecador, dissipa a escuridão do pecado, mostra o estado de iniquidade em que o pecador vive em preguiça espiritual, e incita-o a incinerar seus pecados com o fogo do amor de Deus e do ódio à maldade. O Espírito de Deus, portanto, ilumina o pecador, impulsiona-o a ir à confissão e à Comunhão.

“Quando era feita essa procura por pão fermentado? Rabi Judá disse que a procura por hametz (pão levedado) deve ser feita ao crepúsculo, “Or” (luz), antes do 14.° dia, ou durante o início da manhã desse dia. Disseram, porém, os sábios: ‘Se a busca não tiver sido feita naquele dia; se tiver sido preterida naquele dia, pode ser feita no festival, e se omitida então, tem de ser feita depois do festival, e todo hametz que tiver sobrado deve ser conservado em local bem guardado, a fim de que nenhuma busca ulterior se faça necessária.’

 

“Não se incorre em culpa alguma exceto se o homem que imola o cordeiro, ou o que asperge o sangue, ou um daqueles que hão de comer o cordeiro, estiverem de posse de fermento. ‘Não oferecerás o sangue do meu sacrifício com fermento.’ (Ex 34, 25). Se algum homem imolar o cordeiro pascal com fermento, viola assim um preceito negativo, na medida em que ele próprio, ou quem asperge o sangue, ou alguém da assembleia que há de comer o cordeiro, tenham fermento em sua posse.

 

“O rabi Judá ensinou também: ‘Outrora, durante a existência do Templo, dois bolos em oferta de ação de graças (estes eram os bolos do pão ázimo da proposição, e doze bolos desses eram postos no Santo do Templo, todo shabat, junto aos frascos de metal contendo vinho, para prenunciar o pão e vinho da Missa), que tinham sido profanados, foram expostos no Templo em cima de um banco. Enquanto permaneceram ali os dois bolos, todo o povo continuou a comer pão fermentado. Quando um deles foi removido, eles se refrearam de comer, mas não os queimaram ainda; quando foram ambos removidos, o povo todo começou a queimar o hametz.’ Diz o rabon Gamaliel: ‘O hametz ordinário pode ser consumido durante as primeiras quatro horas, já as ofertas de feixes podem ser consumidas ainda durante a quinta hora, ambos contudo devem ser queimados quando começar a sexta hora.’ (Páscoa, cap. I, p. 19-25).

 

“Se o décimo-quarto de nisan cair num shabat, todo fermento deve ser removido antes do shabat. No monte do Templo havia um trono de arcos duplos. Era chamado istavanit (“colunas”), porque uma cobertura elevava-se acima do trono, e o trono era composto de dois arcos, um interior ao outro. Dado que os bolos eram aqueles que haviam sido trazidos junto com as ofertas de ação de graças, e havendo tantos deles, não tinham como ser consumidos dentro do tempo estatuído, por isso ficavam profanados ao virarem sobras. Quando estavam ambos sobre os bancos, todo o povo comia pão fermentado; quando um era removido, cessavam de comer; quando ambos eram removidos, os pães fermentados eram queimados. Havia outro sinal: Duas vacas aravam no monte das Oliveiras. Quando as duas vacas eram vistas, todo o povo comia pão fermentado; quando uma delas era retirada dali, o povo parava de comer; e, assim que a outra fosse retirada, eles começavam a queimar os pães fermentados (Pesahím, p. 25).

 

Guemará: Vemos, assim, que no começo da hora sexta todos concordam que o hametz tem de ser queimado. ‘Durante sete dias não se achará fermento algum em vossas casas (Ex 12, 19). Mas no primeiro dia fareis desaparecer o fermento de vossas casas (Ex 12, 15).’ Pela manhã pode-se comer pão fermentado, já de tarde isso não é permitido. E por ‘primeiro dia’ se entende o dia que antecede o festival. ‘Não oferecerás o sangue do meu sacrifício com fermento, nem deixarás sobrar coisa alguma, da vítima da solenidade da páscoa, até a manhã seguinte.’(Ex 34, 25) ”

O primeiro prefigurava a regra que proíbe o celebrante da Missa, caso esteja em estado de pecado mortal, de oferecer em nossos altares a vítima da páscoa judaica, o Cristo Senhor, como São Paulo diz:

‘Todo aquele que comer deste pão ou beber do cálice do Senhor indignamente será réu do Corpo e do Sangue do Senhor.’ (1 Cor. 2, 27)

 

“Enquanto for lícito comer pão fermentado, pode-se também dá-lo aos domésticos, a animais selvagens ou às aves. Pode-se também vendê-lo a estranhos ou dele haurir benefícios de outro modo qualquer. Passado esse período, porém, é ilícito auferir qualquer benefício, seja qual for, do pão fermentado, ou até mesmo usá-lo como combustível ou acender com ele um forno ou fogão. O rabi Judá disse: ‘A remoção dos pães fermentados não pode ser afetada senão por combustão.’ Com base no versículo citado faz pouco, o rabi Simeão decreta noutra boraitá (A boraitá é uma seção dos ensinamentos dos sábios (Edersheim, Life of Christ, I, 103-105)) que todas as coisas de santidade (As coisas de santidade eram as coisas ofertadas a Deus no Templo) que forem profanadas, por exemplo as carnes de sacrifícios que tenham virado sobras, têm de ser queimadas. ‘E se algo sobrar da carne consagrada, ou dos pães consagrados, até pela manhã, queimarás essas sobras com fogo. Não poderão ser consumidas, porque estão santificadas.’” (Ex 29, 34. Talmude babilônico, cap. I, p. 30, etc.)

Assim, os pedaços de pão sacrificado que sobravam dum shabat para o outro, quando eram removidos, assim como as sobras do festim pascal, se não fossem comidas pelos sacerdotes, queimavam-se, para prefigurar como o corpo de Cristo, o verdadeiro “Cordeiro de Deus”, foi sepultado no mesmo dia em que morreu. Se eles não os queimassem, eram punidos com trinta e nove chibatadas. O Texto comunica muitos preceitos positivos e negativos que, se alguém os violasse, era punido com “chibatas”. Leis severas se faziam valer sob pena de caret (“expulsão” de Israel, excomunhão), que São Paulo menciona ter sido aplicada nos primórdios da Igreja e que nos foi legada nas leis relativas à excomunhão.

“Rabh disse: ‘As vasilhas de cerâmica que foram usadas ao longo do ano têm de ser destruídas antes da páscoa.’ Por que motivo? Afinal, poderiam ser conservadas até depois da páscoa e depois usadas para outros tipos de alimento, como antes. É uma medida de precaução, para prevenir a possibilidade de serem usadas para os mesmos tipos de alimento de antes. Samuel se afinca à sua teoria particular, pois disse aos vendedores de vasilhas de cerâmica para a páscoa: ‘Abaixem o preço das suas vasilhas para a páscoa, senão decretarei que prevalece a lei segundo o rabi Simeão.’

 

“O forno era untado com gordura imediatamente depois de aceso. Rabha bar Ahilayi proibiu que se comesse o pão que ali dentro fosse assado, mesmo com sal, para que não fosse comido com kutach (Um prato feito com farinha e leite que deixava impuro e interditava o uso do forno para todo o sempre).”

Seguem-se longas discussões acerca de como as caldeiras, as vasilhas, as travessas, os pratos, etc., têm de ser limpos esquentando-os com fogo. Dois dias antes da festa começavam os preparativos nas casas. Primeiro limpavam todos os utensílios de cozinha, para que não se percebesse o cheiro do hametz (“pão fermentado”). Os vasos de metal eram suspensos sobre o fogo até ficarem incandescentes, e os utensílios de madeira eram escaldados em água fervente. Alguns destruíam as vasilhas de cerâmica chamadas circenth. A pedra de cima da mó, chamada pelach, e a pedra de baixo, chamada receb, eles desempenavam com ferramentas de ferro até parecerem novas. As prateleiras da despensa, a lata dentro da qual se guardavam os bolos, todos os utensílios de cozinha eles limpavam cuidadosamente, para prefigurar, em forma de sombra, a limpeza de nossos corações pela confissão antes de nossa Comunhão pascal.

“‘O que se deve fazer na páscoa quanto às facas?’ E ele respondeu: ‘Eu compro facas novas para a páscoa’. E Rabhina retorquiu: ‘No caso do mestre isso é apropriado, porque és rico e podes pagar por elas, mas o que um homem pobre há de fazer?’ ‘Não quero dizer exatamente facas novas, mas facas renovadas; facas cujas lâminas sejam recobertas de barro e postas no fogo, e depois de serem inteiramente queimadas são tiradas e, juntamente com seus cabos, mergulhadas em água fervente, quando ficam como novas.’

 

“‘Uma concha de madeira deve ser posta em água fervente que não tenha sido tirada do fogo.’ ‘Qual é a lei referente às louças de barro esmaltadas?’ Se era verde a cor do revestimento, não há dúvida: não podem ser usadas, mas referimo-nos às que foram esmaltadas de branco ou de preto. Se o revestimento estiver rachado, não há dúvida: não podem ser usadas. Observo que a gordura cozinhada nessas vasilhas transpira do outro lado, e é óbvio que elas a absorvem, e as Escrituras dizem que uma vasilha de barro jamais devolve o que ela alguma vez absorva.” (Lv 6, 21)

Os escribas e os fariseus levavam as coisas a extremos, e vemos que existia a observância da lavagem da louça no tempo de Cristo. “Fariseu cego”, disse Cristo, “limpa primeiro por dentro o copo e o prato, para que também fique limpo o lado de fora” (Mt 23, 26). “Porque, deixando de lado o mandamento de Deus, observais cuidadosamente as tradições dos homens, na lavagem de vasilhas e em muitas outras coisas que fazeis semelhantes a estas.” (Mc 7, 8; cf. Lc 11, 38). Os judeus só enxergam o sentido literal da Escritura e do cerimonial religioso. Parecem completamente cegos no que tange ao sentido típico ou simbólico. Não entenderam que, sob essas figuras, escondia-se a purificação do coração. Eles ensinavam que o pecado não está na mente mas no ato, que contanto que uma pessoa não cometa uma ação vista pelos outros, não tinha pecado, não importa o quão corrompido fosse o seu coração. Isso alegavam eles ter sido ensinado por suas tradições. Daí Cristo lhes ter dito:

“Vós bem fazeis por destruir o mandamento de Deus, para observar vossa tradição.” (Mc 7, 9)

Vejamos agora a maneira como os judeus do nosso tempo fazem os preparativos para a antiga páscoa.

Na Cidade de Nova York, no momento em que escrevo, habitam aproximadamente 800.000 judeus. A dona de casa do East Side, em acréscimo aos seus cuidados ordinários, tem dois guarda-louças, cujo conteúdo nunca pode misturar-se, e dois jogos de louças, de panos e de bacias para lavar louça. Estes não podem misturar-se jamais, ou isso trará problemas para a família ortodoxa. Um jogo de louças, o mais kosher (“puro”), só deve ser usado para a páscoa, enquanto o outro jogo eles usam durante o ano. Os laticínios não podem entrar em contato com os alimentos à base de carne. Nenhuma ostra, nenhum mexilhão, siri, enguia, marisco, lagosta ou outros tipos de frutos do mar entram jamais na sua cozinha, porque somente os peixes com escamas são puros para o hebreu. Mesmo estes peixes não podem ser fritos em banha ou em manteiga, mas somente em óleos vegetais. Eles parecem preferir peixes de água doce, recém-pescados ou tirados de tanques de água doce, onde são conservados para o mercado judaico.

No dia anterior à páscoa hebraica, um frenesi de limpeza da casa se apodera de todas as judias, e elas se põem a deixar a casa toda desde o sótão até aos alicerces, e tudo dentro de casa, kosher para o grande festival. Então a fúria de um batalhão de donas de casa da Nova Inglaterra se apossa de todos aqueles corações hebreus. Todo o lixo acumulado do ano é juntado: as roupas velhas, os utensílios de cozinha, os sapatos rasgados, chapéus surrados, colchões estragados, latas amassadas, baldes inúteis para carvão, etc., são atirados nas ruas pelas portas e janelas, com sumo perigo para todos os passantes, onde são recolhidos para ser transportados aos lixões.

O roçar do esfregão, da vassoura e da escova se ouve por todos os lados, enquanto mãe e filha, e crianças mais crescidas, são premidas e deixam de ir à escola, a fim de “tornar kosher todas as coisas”. Cada prato sobre a mesa pascal, cada utensílio com que se cozinha o banquete têm de ser novos, ou ao menos nunca usados exceto para a páscoa. Saltam fora das caixas, dos baús e dos esconderijos as panelas, frigideiras, pratos, louças e talheres de mesa que, na primavera anterior, haviam sido guardados ali, depois de cuidadosamente limpos e embrulhados. Mas muita coisa nova tem de ser comprada, mesmo pelos pobres; as famílias economizam dinheiro para a festa, e há uma associação de assistência pascal, fundada para ajudar os paupérrimos que, do contrário, não conseguiriam celebrar a festa em conformidade com a lei.

Ao cair do sol, os judeus acorrem todos para suas sinagogas, onde celebram serviços especiais e passam algum tempo em oração silenciosa antes de começar sua páscoa, que os judeus reformados celebram durante sete dias, os ortodoxos durante oito. Vêm depois os festejos de Sukot, quando eles constroem no quintal cabanas feitas de ramagens, de folhas e de barro, dentro das quais habitam, dormem e recebem ajoelhados os amigos, porque o costume é fazer visitas breves de casa em casa, ainda que seja proibido levar comida ou bebida durante essas visitas. Essas barracas a céu aberto são em memória do tempo em que os seus ancestrais habitaram em tendas durante quarenta anos, depois de terem fugido do Egito na primeira páscoa.
Mascates carroceiros de olhos escuros e feições hebraicas vão de porta em porta vendendo matsôt, bolos não fermentados, ervas amargas e víveres para a festa da primeira noite e para os banquetes dos entardeceres restantes. Alegria, jovialidade e contentamento iluminam todos os rostos hebreus, e se tristeza houver, é ocultada ao recordarem a libertação de seus pais da escravidão.

Há uma escola estritíssima de judeus de nossos dias, os quais se chamam a si mesmos de hassidim (“homens pios, devotos”, “os santos”), palavra esta derivada do hebraico perushim (“os separados”), donde se originou a palavra “fariseus” — os hassidim mencionados no livro dos Macabeus pelo nome de “hassideus” (1 Mac 2, 42) —; eles agarraram-se aos invariáveis costumes e tradições dos fariseus através de todas as idades até o presente. Encontram-se aqui nos E.U.A. e também no Velho Mundo, os mais ortodoxos dentre os judeus ortodoxos.

Com longas orações eles plantam o trigo, enquanto vai crescendo resguardam-no cuidadosamente de entrar em contato com uma pessoa impura ou um gentio. Com as orações prescritas eles fazem a colheita, socam e trituram a farinha, que põem em três sacos, um dentro do outro. Esses sacos eles amarram ao teto de um aposento secreto, cautelosamente guardado a chave, onde ninguém entra até a véspera da páscoa judaica, quando eles observam um estrito jejum.

Na calada da noite, com cerimônia solene, eles vão até um rio, lago ou fonte de água corrente e, com orações, retiram a “água de preceito” em bilhas especiais que, assim que ficam cheias, eles carregam com uma vara comprida sobre os ombros, de maneira que as bilhas não encostem em ninguém que possa estar legalmente impuro, contaminando a água. Então, com as orações prescritas, eles amassam e assam os bolos para a páscoa hebraica. Esses judeus de estrita observância afirmam celebrar a festa seguindo à risca as determinações estritas do Talmude.

“Todas as vasilhas nas quais se conservavam alimentos fermentados antes de serem aquecidos podem ser usadas para alimentos não levedados, com exceção das vasilhas que continham o fermento mesmo, porque é muito pungente. As vasilhas nas quais os pães fermentados eram geralmente misturados com vinagre também não podem ser usadas, porque isso equivale a fermento.” (Talmude babilônico, cap. II)

Na época de Cristo, os bolos ázimos eram feitos por eles de trigo cultivado especialmente para a páscoa judaica. Esse trigo era cultivado por pessoas piedosas, e o pai de Lázaro possuía trigais em Magdala, nas margens do Mar da Galileia.

Essa terra era lavrada com orações e preparada com grande cuidado. Quando chegava o tempo da colheita, os segadores eram avisados: “Quando amarrarem os feixes, tenham em mente que se destinam à preparação dos matsôt“, por onde verificamos que ele afirma que é do princípio ao fim que se impõe a observância dos pães ázimos.

“‘Não se podem assar pães espessos na páscoa’ (Talmude, II, p. 57). Tal é a sentença da escola da Shamai, mas a escola de Hilel permite que isso seja feito. Quão espessos devem ser eles? Disse o rabi Huna: ‘Um palmo, porque era esta a espessura dos pães da apresentação.’”

Os “pães da apresentação” eram os doze pães da proposição, colocados todo shabat junto ao vinho no Santo do Templo, para prefigurar o pão e vinho da Missa….

“No caso dos pães da apresentação, havia sacerdotes que estavam completamente habilitados para o seu trabalho, mas os pães da páscoa são preparados por pessoas comuns.”

A família Garmo, desde tempos remotos, fazia os pães da apresentação ou pães da proposição, e eram exímios em extremo, tendo eles um modo secreto de fazer pães finíssimos, nos dois sentidos da palavra, os quais se assemelhavam às nossas hóstias. Como se recusassem a revelar o processo, foram censurados nas orações do Templo.

“Os pães da proposição eram preparados com habilidade consumada, e como podem ser comparados a pães ordinários? Para aqueles, só se usava madeira seca, enquanto para estes podia-se usar madeira levemente úmida. Aqueles eram assados em forno quente, enquanto estes muitas vezes são assados em forno mais morno. Para assar os pães da apresentação se utilizava um fogão de ferro, enquanto para os bolos pascais um forno de barro era considerado suficiente. Caso se façam bolos assim, devem ser feitos finos como folhas de massa, e não espessos como pães gordos, porque neste último caso podem acabar fermentados.”

O costume de fazer pães de altar (hóstias) o mais finos possível na Igreja latina segue o antigo costume judaico. Para significar o Espírito Santo habitando na humanidade de Cristo escondido sob as espécies do pão sobre nossos altares, os judeus misturavam óleo de oliva com a farinha a partir da qual faziam os bolinhos finos.

“A quantidade de óleo misturado à massa é tão insignificante que não conta, porque um quarto de um quartilho (log) de óleo é utilizado para muitos e muitos bolos. A mulher não deve misturar a massa para a páscoa salvo com água shelanu — água “nossa” (Páscoa, p. 66, 67), ou seja, não água conservada de um dia para o outro, mas tirada naquele mesmo dia especialmente para o pão pascal.” (Zanolini, De Festis Judaeorum, c. 4, nota)

Era esta a água que o homem trazia à cidade, quando os apóstolos Pedro e João o encontraram, tal como Cristo predisse:

“Eis que ao entrardes na cidade sair-vos-á ao encontro um homem levando uma bilha de água: segui-o até à casa onde ele entrar.” (Lc 22,10-11)

 

“Uma mulher não deve misturar sua massa sob o clarão do sol, nem com água que tenha sido aquecida pelo sol. Nem, tampouco, com água que tenha sido deixada de sobra em muliar (“caldeira”), e ela não deve remover suas mãos, por via de regra, até que seu pão esteja cozido. Ela também precisa de duas bilhas cheias de água, uma para esfriar as mãos durante o amassamento da massa, a outra para umedecer sua massa antes de pô-la no forno.”

Depois de ter passado o rolo nos bolinhos para deixá-los o mais finos possível, ela deixava a marca de seus cinco dedos em cada bolinho, supunha ela que para fazê-los assar melhor, sem saber que prefiguravam as cinco chagas no corpo morto de Cristo. Os bolos judaicos para a páscoa e para o Templo, feitos de pão ázimo, nos foram legados nas hóstias com figuras da cruz, etc., e nos biscoitos finos do comércio, no “biscoito de marinheiro” dos soldados e marujos, com suas figuras copiadas das marcas dos dedos nos bolinhos pascais. Antes de assá-los, elas untavam cada bolo com azeite na forma de uma cruz ou “X” grego (Edersheim, Temple, p. 155, etc).

“O sacrifício diário contínuo no Templo (Nm 28,3) era imolado meia hora depois da hora oitava e sacrificado meia hora depois da hora nona.”

Eles começavam a contar as horas às seis da manhã. Isso diz respeito ao serviço vespertino, às três horas da tarde, sendo que o sacrifício matutino era oferecido às nove da manhã. Pois Cristo foi condenado à morte por Pilatos às nove horas, pregado à cruz ao meio-dia e morreu às três da tarde. O período mencionado aqui é das duas e meia às três e meia da tarde, porque durante esse intervalo de uma hora entoava-se a liturgia do Templo, o cordeiro era imolado, as orações eram cantadas.

“Mas no dia que antecedia a páscoa, quer calhasse de ser dia da semana ou shabat, ele era abatido meia hora depois da hora sétima e oferecido em sacrifício meia hora depois da hora oitava.”

Essa afirmação refere-se ao cordeiro pascal.

A oferenda vespertina cotidiana precede o sacrifício pascal, e o sacrifício pascal precede a queima do incenso, e o incenso precede o acender das velas (Ex 12,6; Dt 16,6). Não há nada que possa ser ofertado antes do sacrifício matutino cotidiano, exceto o incenso queimado antes do sacrifício diário (Ex 30,7).

Mishná: Se o sacrifício pascal não tiver sido abatido com a finalidade de sacrificá-lo como sacrifício pascal, ou se o seu sangue não tiver sido recebido com esse fim, ou se o sangue não tiver sido levado até o altar e aspergido com esse fim, ou se um desses atos tiver sido realizado no intento de fazer dele um sacrifício pascal, mas outro ato não tiver sido realizado com esse fim, ou vice-versa — ele não é válido.”

Um dos bolos era enviado aos sacerdotes do Templo como “oferta de primícias”. Os três bolos restantes eram para a páscoa. A massa remanescente, depois de assados os bolos, hoje chamados kikar (“círculo”), eles queimavam como oferenda ao Senhor.

“Não aprendemos contudo numa mishná que um pouquinho mais de cinco quartos de farinha, equivalendo a cinco quartilhos (log) em Séforis e a sete quartilhos e um pouquinho mais que se usaram no deserto, por seu turno equivalentes a uma décima (ornei), estão sujeitos às primícias da massa? Nossas esposas assam em pequenas quantidades na páscoa, não mais de três quartilhos de farinha por vez.

Três mulheres podem ocupar-se com a massa delas, mas da seguinte maneira: uma deve misturar a massa, outra deve lhe dar forma, e a terceira deve assá-la. A mesma mulher que mistura deve também umedecer a massa, e a que está ao seu lado deve então passar a misturá-la; enquanto a primeira assa, a última deve umedecer a massa, e a terceira mulher deve passar a misturá-la. Destarte, a primeira mulher começará a misturar, enquanto a última umedece a massa, e assim por diante, em revezamento.” (Páscoa, cap. III, p. 77)

Este era o pão não fermentado que os gregos chamavam de ázimo, mencionado quarenta e uma vezes no Antigo Testamento. São Mateus falava em “os ázimos” (Mt 26,17). Os judeus do nosso tempo, na sua páscoa, assam um pão chamado “ázimo rico, saboroso”, feito com ovos, leite, açúcar, etc., que eles dão aos doentes e aos gentios, enquanto alguns deles entregam de presente o pão pascal ordinário (Zanolini, De Festis, c. 4).

“Anteriormente as peles dos animais sacrificados eram deixadas na câmara de Parvá (um dos aposentos do Templo mencionados no tratado Midot). À noite os sacerdotes que ministravam naquela semana dividiam as peles entre si. Os mais poderosos dentre os sacerdotes se apropriavam de mais do que a sua quota. Foi dada então a ordem de que se fizesse a divisão, toda véspera de shabat, na presença de todos os homens que compunham as vinte e quatro “classes” de vigília no Templo. Ainda assim, os sacerdotes mais poderosos se apropriavam de mais do que lhes era devido. Em consequência, as pessoas que traziam sacrifícios decidiram consagrar ao uso do Templo as peles dos sacrifícios. Foi dito que não demorou muito para que fosse possível revestir o Templo inteiro com discos de ouro, de uma vara quadrada, e da espessura de um dinar de ouro. Nos períodos dos festivais, os discos eram postos no morro do Templo para serem vistos pelos peregrinos que iam chegando a Jerusalém, porque eram ricamente trabalhados e não eram falsificados.

“Havia sicômoros em Jericó, de que os sacerdotes se apropriavam à força para seu próprio uso, e como consequência disso seus donos consagravam-nos ao uso do Templo. Acerca desses ultrajes e de tais sacerdotes, o aba Saulo ben Batnit, em nome do aba José ben Anano, disse:

“Ai de mim por conta da casa de Boeto.
“Ai de mim por conta dos cajados deles.
“Ai de mim pela casa de Anano e pelas calúnias deles.
“Ai de mim pela casa de Cantera (= significa “o briguento”) e por suas plumas de escribas.
“Ai de mim por conta da casa de Ismael ben Fiabi e dos punhos deles. “Pois todos eles foram sumos sacerdotes.
“Seus filhos eram os tesoureiros.
“Seus genros eram os camareiros.
“E os servidores deles nos golpeavam a cajadadas.”

O Templo era famoso no mundo inteiro por ter sido coberto com aquelas chapas de ouro puro maciço, cada uma com cerca de 85 centímetros quadrados e assim espessa como uma moeda de 25 centavos de dólar. Noutra parte do Talmude somos informados de que eles primeiro preencheram com cera de abelha todas as fendas que havia entre as pedras de mármore branco, e fixaram as chapas com pregos de ouro. O grande edifício que continha o Santo e o Santo dos Santos era por isso chamado, nos escritos hebreus, de “a casa de ouro”. Tinha 14 metros quadrados — todas as suas paredes e teto, por dentro e por fora, revestidos de ouro (Páscoa, p. 103).

Julgue o leitor, a partir dessa declaração, qual a avareza dos sacerdotes. Outro relato diz que, a princípio, os sacerdotes eram escolhidos para o ministério semanal por ordem de entrada no Templo. Mas certa vez, enquanto subiam correndo os degraus de mármore da porta de Nicanor, um sacerdote empurrou outro para baixo, quebrando a perna dele. Noutra ocasião, enquanto eles entravam correndo, um apunhalou o outro até à morte, e o beit din (“os juízes do tribunal de justiça”) instituiu a praxe de escolhê-los para ministrar na semana seguinte contando nos dedos.

No poema que citamos sobre a degradação deles, a “casa de Anano” era a família de Anás, sogro de José Caifás, os quais sentenciaram Cristo à morte. Esse Anás tinha cinco filhos e cinco filhas e genros, que se tornaram, um após outro, sumos sacerdotes. Assim como ele, porém, foram eles, por seus crimes, depostos de ofício pelos procuradores romanos.

Mishná: Os habitantes de Jericó tinham por hábito fazer seis coisas; três delas se faziam contrariando os desejos dos sábios, e três eram feitas com a sanção destes. Eles passavam o 14.° dia inteiro enxertando palmeiras, liam o Shemá com os versículos adicionais e amontoavam o trigo novo em feixes antes de se desincumbirem do Omer (“oferta de primícias”) correspondente a estes (Páscoa, p. 99, 102, etc).

 

“Seis coisas foram feitas pelo rei Hizquiáh (Ezequias I foi o 16.° rei de Judá, nascido no ano 3309, nove anos depois da fundação de Roma, 743 antes de Cristo. A história dele se encontra em IV Reis, capítulos 15 e 16, e II Par. 27, 28), três das quais encontraram aprovação, e três reprovação. Ele fez com que os ossos de seu pai (o perverso Acás) fossem transportados numa liteira de cordas (o Talmude insere aqui a nota: “Como sinal de desrespeito”), e isso recebeu aprovação; ele fez com que a serpente de bronze fosse quebrada em pedaços (esta era a serpente de bronze que Moisés fez no deserto (Nm 21,9), a qual os judeus adoravam como um ídolo), e isso também foi aprovado; ele ocultou o livro de medicina, e isso também foi aprovado. Ele removeu o ouro das portas do Templo e o enviou para o rei da Assíria, ele obstruiu a saída superior das águas de Gion, e ele interpolou o mês de nisan, todas coisas que não foram aprovadas (Páscoa, p. 99-102).

 

“‘A partir da hora de Min’hah,’ etc. Os estudiosos indagaram: Acaso isso se refere à Min’hah longa, cuja hora começa na metade da oitava hora (isto é, às 13:30), ou então à Min’hah curta, cuja hora começa na metade da décima hora? (Isto é, à tarde, às 15:30.) Porventura não é lícito comer a partir da hora da Min’hah longa porque, desse modo, se ocuparia o tempo em que importa trazer o sacrifício pascal?

 

“Nós aprendemos que mesmo o rei Agripa (esse Herodes Agripa (Atos2) foi neto de Herodes Magno com Mariana, descendente dos Macabeus, sendo seu pai Alexandre, que o primeiro Herodes estrangulou até a morte. Cláudio, o imperador romano, constituiu-o rei sobre a Judeia. Ele foi o último rei da família Herodes. Ver Atos 25, 26), que tinha o costume de comer na nona hora do dia (às três da tarde), não devia comer na véspera da páscoa enquanto não escurecesse. Ora, se a referência era à Min’hah curta, depois da qual não é lícito comer, então o caso do rei Agripa é digno de nota. Se, porém, a referência era à Min’hah longa, qual a prova que esse caso aduz então, de que era somente porque a refeição interferiria com o sacrifício pascal, e por que o caso de Agripa é especialmente mencionado? Donde podemos inferir que a referência é à Min’hah curta.

 

Míshná: Na véspera da páscoa, a ninguém é lícito comer a partir da hora de Min’hah enquanto não terminar de escurecer. Mesmo os piores em Israel não comerão enquanto não se tiverem posicionado na ordem conveniente e confortavelmente ao redor da mesa, nem pessoa alguma tomará menos de quatro taças de vinho, ainda que lhe tenham de ser dadas mediante fundos dedicados ao sustento caritativo dos paupérrimos. Uma pessoa não pode comer coisa alguma na véspera do shabat ou de um festival, desde a hora de Min’hah em diante, a fim de que a chegada do shabat ou do festival possa encontrá-la em condições de apreciar com gosto uma refeição.

 

“Não se deve trazer uma refeição para cada comensal separadamente, a não ser que o Kídush já tenha sido recitado pelo pai de família, o chefe da casa; contudo, se a comida tiver sido posta à sua frente antes de recitado o Kídush, aí então o comensal deve cobrir com uma toalha o prato posto diante de si e pronunciar ele mesmo a bênção.”

O Kídush (“prece”) era a oração rezada antes das refeições. A mesa sempre ficava coberta, na páscoa judaica, com toalhas de mesa feitas de linho. Em casas ricas se usavam três toalhas, uma sobre a outra. Foi esta a origem das três toalhas de altar de linho que cobrem nossos altares nas igrejas de Rito latino. Os gregos usam toalhas de altar de seda.

No nono dia do mês de ab, Deus mandou que os hebreus, por causa dos pecados deles, vagueassem quarenta anos pelo deserto, vivendo do maná, figura da Eucaristia. No nono dia de ab, quinhentos e noventa e oito anos antes de Cristo, os babilônios destruíram o magnífico Templo de Salomão. Mais de seiscentos anos mais tarde, no nono dia de ab, no Ano do Senhor 70, os romanos comandados por Tito destruíram o grande Templo que Herodes construíra e que Cristo tinha visitado tantas vezes. No dia nove de ab, caiu Betar, e os judeus foram massacrados em grande número. No nono dia de ab, um ano mais tarde, Adriano passou a charrua por cima das ruínas da cidade santa. Jerusalém tornou-se uma colônia romana chamada Aelía Capítolína, e os judeus foram proibidos, sob pena de morte, de penetrar seus muros. No decurso dos séculos desde então, os judeus jejuam no nono dia de ab, em memória dessas cinco grandes calamidades que se abateram sobre sua nação.

Eles também observam três outros dias de jejum em conexão com a queda de Jerusalém: o décimo dia de tebet, quando teve início o cerco; o décimo-sétimo de tamuz, quando foi feita a primeira brecha na muralha; o terceiro dia de tishri, quando Godolias, o líder deles, foi assassinado — este dia sendo conhecido como “jejum de Godolias”.

Durante esses dias, a começar pelo primeiro de ab, não se come carne alguma, não se bebe vinho, nenhum prazer está permitido. Os “Nove Dias”, como são chamados, são dias de luto em todo o Israel, e as sinagogas ficam repletas de judeus em prantos, lamentos e jejum. Escurecem-se todas as casas, fecham-se as janelas e cortinas, e o lar é iluminado apenas pela luz de velas.

Descalços, com a cabeça coberta de cinzas, os hebreus de estrita observância dos nossos dias se vestem de saco, se reclinam sobre o piso ou em banquinhos e caixotes, e contam a seus filhos a história dos cercos e calamidades de Jerusalém. Eles leem as Lamentações de Jeremias para a família, e nas sinagogas são proferidos sermões sobre as dores de Israel. O hazan e o rabi entoam, em cadência plangente, as queixosas canções chamadas kinoth, com a assembleia cantando os sofrimentos de Israel, especialmente a Ode a Sião, de Judá ha-Levi. Na sinagoga de Jerusalém, os rolos da Lei, bem como o santuário sagrado, a Aron onde ficam depositados, são cobertos com panos pretos. Vestidos de preto, eles vão até o muro ocidental do Templo de Salomão — os grandes alicerces que permanecem ainda de pé, no vale do Tiropeon, dentro da cidade — e, virando o rosto para as antigas muradas chamadas “Muro das Lamentações”, eles entoam as orações pela restauração de Zion. Dessa cerimônia de luto, com seus trajes pretos, copiou a Igreja os paramentos pretos e as escuras decorações de luto de nossos ritos de exéquias.

É triste de vê-los ali em Jerusalém com os rostos voltados para o muro, balançando para frente e para trás e de um lado para o outro, gemendo, chorando, lamentando a destruição de sua cidade, a dispersão de Israel, a ruína do Templo. Mas parece que Deus não os ouve, porque rezam não por coisas espirituais, mas temporais — a vinda do seu Messias para fazer deles os governantes da terra inteira. Os cristãos, junto aos maometanos, só observam, e muitos caçoaram deles.

“Os sábios, contudo, disseram que era costumeiro na Judeia trabalhar até o meio-dia, no dia que antecede a páscoa, mas na Galileia não se fazia trabalho nenhum nesse dia. Na noite anterior a esse dia, a escola de Shamai proíbe que se faça qualquer trabalho, enquanto a escola de Hilel permite-o até o nascer do sol. Disse o rabi Meir: ‘Todo trabalho que tenha começado antes do décimo quarto de nisan pode ser concluído nesse dia, mas nenhum novo trabalho pode ser começado, mesmo que possa ser concluído nesse dia.’ Os sábios, no entanto, são de opinião de que os ofícios seguintes: alfaiates, barbeiros e lavadeiras, podem exercer sua vocação até o meio-dia naquele dia.

 

“Os alfaiates podem exercer sua ocupação porque todo homem pode se ver na necessidade de reparar suas vestes nos dias que se interpõem entre o primeiro e o último dia do festival. Os barbeiros e as lavadeiras de roupas podem exercer sua vocação porque os que chegam de viagem pelo mar ou os que são soltos do cárcere podem aparar o cabelo e lavar suas roupas nos dias que se interpõem entre o primeiro e o última dia do festival. O rabi José ben Judá diz que os sapateiros podem exercer sua vocação porque os peregrinos, que fazem longa viagem até Jerusalém para o festival, consertam seus sapatos nesses dias interpostos.”

Quando a páscoa hebraica caía na véspera do shabat ou no próprio shabat, para que não violassem o shabat com qualquer tipo de trabalho, eles enfiavam o cutelo sacrifical na lã da ovelha ou amarravam-no entre os chifres do bode, enquanto conduziam o animal até o altar.

Mishná: Sob quais circunstâncias é permitido levar uma oferenda festiva em acréscimo ao sacrifício pascal? Quando o sacrifício pascal é imolado em dia de semana, quando os oferentes estão em estado de pureza legal, e se ele for insuficiente para que dele comam os designados para tanto, a oferenda festiva pode ser trazida na forma de uma manada de bois, de cordeiros ou de bodes, e podem ser tanto machos como fêmeas. A oferenda festiva, levada no décimo quarto dia juntamente com o sacrifício pascal, preenche somente o dever de desfrutar alegremente do festival; contudo, não fica satisfeita por esse meio a injunção a não chegar ao Templo de mãos vazias. Deve-se consumi-la no decorrer de um dia e noite, e não pode ser consumida a não ser que esteja assada, nem por qualquer um, salvo os designados para comer do sacrifício pascal” (Dt 16,2)

Assim foram prenunciadas as contribuições que o laicado tem obrigação de fazer para o sustento da religião. As coletas em nossas igrejas remontam aos tempos apostólicos e, mais ainda, aos tempos dos reis hebreus. O seguinte tem relação com a alegria com que celebramos os domingos e festas.

“Os sacrifícios pacíficos trazidos na véspera da páscoa cumprem o dever de alegrar-se no festival, haja vista que não é preciso trazê-los no tempo em que alegrar-se já é um dever, mas podem ser trazidos previamente; não cumprem, porém, o dever de trazer a oferenda festiva, porque são consagrados, de modo que a oferenda festiva ainda tem de ser trazida.”

Sob orientações sacerdotais, o laicado imolava os cordeiros, prenunciando que os guardas suíços do palácio de Pilatos crucificaram Cristo, e o procurador romano, impelido pelos sacerdotes que gritavam: “Crucifica-o”, etc., condenou à morte o Senhor.

“Os sacerdotes removiam o sangue, o sacerdote mais próximo do altar esguichava o sangue sobre o altar, etc., como está escrito: ‘Somente o sangue deles derramareis sobre o altar, e a gordura deles queimareis em odor suavíssimo ao Senhor’(Nm 28,17).” “Não está dito: o sangue dele ou a gordura dele, mas no plural: o sangue deles e a gordura deles, o que significa que o sangue dos primogênitos, e dos primeiros dízimos, e do sacrifício pascal, deve ser aspergido, e que os pedaços que devem ser ofertados têm de ser ofertados sobre o altar (Lv 1,11).

 

“‘E ele imolá-lo-á do lado do altar que está voltado para o norte diante do Senhor, mas os filhos de Aarão derramarão o sangue dele em toda a volta sobre o altar. E ele porá do mesmo sangue sobre as córnuas do altar, ou seja diante do Senhor, no tabernáculo do testemunho, e o resto do sangue ele derramará ao pé do altar dos holocaustos.’ (Lv 4,18)

 

“O sacrifício pascal era imolado por três divisões de homens sucessivas, porque estava escrito (Ex 12,6): ‘A inteira congregação da assembleia de Israel imolá-lo-á.’ Essas três divisões eram necessárias conforme as expressões congregação, assembleia e Israel. A primeira divisão entrava até o átrio do Templo ficar cheio, quando as portas do átrio eram fechadas e a trompa soava o teki’á (um toque), o teru’á (uma sucessão de toques rápidos), e teki’á (mais um toque). Os sacerdotes se posicionavam então em fileiras duplas, com cada sacerdote segurando em mãos um cálice de prata ou um cálice de ouro, mas uma fileira de sacerdotes tinha de segurar todos os cálices de prata e a outra todos os de ouro — não podiam ser misturados. Essas taças não tinham pés embaixo, para impedir que os sacerdotes as depusessem e deixassem coagular o sangue.

 

“O israelita abatia, e o sacerdote recebia o sangue e o entregava a outro sacerdote, que por seu turno passava-o para um outro, cada qual recebendo um cálice cheio, ao mesmo tempo que devolvendo um vazio. O sacerdote mais próximo do altar esguichava-o, de um só jato, na base do altar. A primeira divisão saía, e a segunda entrava; quando esta saía, a terceira entrava do mesmo jeito que a primeira, assim também procediam a segunda e a terceira divisões.

 

“O Halel (oração de louvor) era lido por cada divisão. Se eles o concluíssem antes de completar suas funções, recomeçavam-no, e podiam até recitá-lo pela terceira vez, se bem que nunca aconteceu de haver ocasião de recitá-lo três vezes (a oração do Halel consiste na recitação dos Salmos 113 a 118, inclusive).

 

“‘As mesmas coisas que se faziam nos dias da semana eram feitas também no shabat, exceto que os sacerdotes lavavam nesse dia o átrio, contrariamente aos desejos dos sábios.’ O rabi Judá diz: ‘Uma taça era enchida com o sangue misturado de todos os sacrifícios e esguichada de um só jato sobre o altar.’”

Esse cálice com sangue misturado de todos os sacrifícios apontava para o sacrifício único do Calvário. A pele do cordeiro era removida enquanto a vítima estava amarrada à coluna, para prefigurar como Cristo foi flagelado depois de ser preso a ganchos de ferro na coluna de granito no Foro de Pilatos.

“De que maneira a vítima pascal era suspensa e tinha a pele removida? Ganchos de ferro eram fixados às paredes e colunas nos quais a vítima era suspensa e tinha a pele removida. Os que não conseguiam encontrar espaço para fazer isso assim, faziam uso de espetos finos de madeira lisa fornecidos ali para esse fim, nos quais suspendiam o sacrifício pascal, apoiando os espetos entre os ombros de duas pessoas, a fim de remover-lhe a pele. Se o 14.° de nisan caísse num shabat, uma pessoa punha a mão esquerda no ombro direito da outra, e esta punha a mão direita no ombro esquerdo da primeira, e, suspendendo assim em seus braços a vítima, removiam a pele desta com suas mãos direitas.

 

“Assim que a vítima era aberta, os pedaços que tinham de ser sacrificados sobre o altar eram removidos, postos numa ampla travessa e ofertados junto com incenso sobre o altar. Depois que a primeira divisão saía, eles permaneciam no morro do Tempo, a segunda divisão permanecia no espaço aberto entre os muros do Templo, e a terceira divisão permanecia em seu posto. Logo que escurecia, todos eles saíam para assar seus sacrifícios.

 

“O sacrifício pascal não era imolado se não houvesse três divisões de trinta homens cada. Por quê? Porque está escrito: ‘A inteira congregação da assembleia de Israel’ — destarte, ‘congregação’ quer dizer dez homens; ‘assembleia’, dez homens; e ‘Israel’, dez homens também. Era duvidoso, entretanto, se os trinta homens tinham de ser considerados conjuntamente, ou se dez homens somente de cada vez tinham de estar presentes. Assim, foi disposto que trinta homens deviam entrar, e, tão logo dez estivessem prontos, eles saíam e outros dez tomavam o lugar deles; os dez seguintes saíam em seguida, e outros dez entravam; por fim, os trinta últimos saíam juntos — desse modo, cada divisão totalizava cinquenta homens, ou todas as três divisões, cento e cinquenta homens (Páscoa, 121).

 

“O rei Agripa, certa vez, quis saber quantos israelitas havia do sexo masculino. Mandou então que o sumo sacerdote registrasse o número de cordeiros pascais. O sumo sacerdote ordenou, pois, que se preservasse um rim de cada cordeiro pascal, e verificou-se que seiscentos mil pares de rins foram preservados, o que era o dobro do número de israelitas que saíram do Egito. Isso, naturalmente, com exclusão de todos os israelitas que, estando impuros, não tinham podido oferecer o sacrifício, e de todos aqueles que, vivendo a grande distância de Jerusalém, não tinham obrigação de estar presentes. Não havia um único cordeiro pascal que não representasse, no mínimo, mais de dez pessoas.” (Páscoa, 121)

Josefo (Antiguid. jud., L. XVII, c. IX, n. 3; Guerr. jud., L. V, c. IX, n. 3) narra a mesma história da contagem dos rins, e com ele ficamos sabendo que 12.000.000 de pessoas ofereceram o sacrifício pascal naquele ano, que ficou conhecido como “a páscoa gorda”. Podemos imaginar então as vastas multidões que clamaram pela morte de Cristo, e que multidão o viu morrer. Os estrangeiros costumavam acampar ao redor de Jerusalém, apinhando os campos em todas as direções, por quilômetros. Seguiam as regras que Moisés determinara para regulamentar os acampamentos deles no deserto. O monte das Oliveiras ficava coberto com as tendas de Judá e de Benjamim; ao sul, na direção de Belém, erguiam-se as tendas de Issacar e Zabulon, mesclando-se aos filhos de Simeão, Gad e Rúben; a oeste ficavam Efraim e Manassés, enquanto na planície ao norte acampavam Dan, Aser e Neftali.

Diz o Talmude que os cálices de ouro valiam 200 denários, e os de prata, 100; os denários equivalendo atualmente a cerca de 17 centavos de dólar, cada cálice tinha o respeitável valor, respectivamente, de $ 34 e $ 17. O denário, em latim denarius, era assim chamado por causa da letra X, que significa dez.

Mishná: Como deve ser assado o cordeiro pascal? Deve-se pegar um espeto feito de madeira da romãzeira e introduzi-lo na boca dele até sair pelo ânus. A vítima pascal não pode ser assada em espeto de assar de ferro nem, tampouco, numa grelha (Páscoa, cap. 7, Primeira Mishná, p. 143).

 

Mishná: Se alguma parte do cordeiro assado tiver encostado no forno de barro sobre o qual era assado, essa parte deve ser desbastada. Se a gordura que pinga do cordeiro tiver caído no forno e depois caído outra vez no cordeiro, essa parte do cordeiro precisa ser cortada fora. Se o gotejamento, porém, tiver caído na flor de farinha, um punhado dessa farinha deve ser retirado e queimado. Se o cordeiro pascal tiver sido untado ou regado com o óleo consagrado da oferta sacrifical de elevação, e o grupo estabelecido para consumi-lo consistir de sacerdotes, eles têm permissão de comê-lo. Todavia, se o grupo consistir de israelitas, eles têm de lavá-lo até sair o óleo, caso o cordeiro ainda esteja cru.” (Páscoa, cap. 7, 146)

A romã, “maçã granulada”, chamada em hebraico rimon, era cultivada extensivamente no vale do Jordão e nas cercanias de Jerusalém, no tempo de Cristo. O espeto era estendido de forma que a sua extremidade inferior atravessasse os tendões das patas traseiras, e a peça transversal do mesmo tipo de madeira atravessasse os tendões das patas dianteiras. Essa operação era chamada de “crucificação do cordeiro”. O cordeiro permanecia inteiramente suspenso na sua cruz e era assado sobre ela, prefigurando o Cristo morto pendurado na sua cruz. Vendo esse cordeiro pascal crucificado, imagem impressionante do Crucificado, os rabinos do Talmude deixaram de fora os detalhes acerca dos espetos que atravessavam os tendões das patas. Mas outros escritores (Justino Mártir e os primeiros Padres) descrevem o cordeiro assado dessa maneira sobre a sua cruz, um emblema da Crucificação que vinha desde os dias dos reis hebreus.

“Mishná: Cinco tipos de sacrifícios podem ser trazidos mesmo que seus oferentes estejam em estado de impureza ritual, mas não devem ser comidos por eles enquanto estiverem nessa condição. São eles o Omer (“a oferta do feixe”), os dois pães de Pentecostes, os pães da apresentação do shabat, os sacrifícios pacíficos da assembleia, e os bodes oferecidos em sacrifício na festa da lua nova. Esse ensinamento pode estar de acordo com os sábios, mas nesse caso diz respeito à comunidade toda, e não a um indivíduo, e aprendemos que uma comunidade pode imolar a vítima pascal ainda que todos os seus membros estivessem contaminados de impureza.” (Páscoa, 148)

A comunidade inteira dos judeus sacrificou o verdadeiro Cordeiro de Deus, prefigurado pela vítima pascal, quando eles bradaram: “Crucifica-o!”, “Seja crucificado!”, etc., no pretório de Pilatos, e isso foi prenunciado pela passagem que acabamos de citar.

“Mishná: Se toda a assembleia, ou sua maior parte, tiver se contaminado, ou então os sacerdotes estiverem em estado de impureza mas a assembleia estiver incontaminada, o sacrifício pode ser apresentado nesse estado de contaminação. Mas se somente uma minoria da assembleia tiver ficado impura, a maioria que está pura deve sacrificar a vítima pascal no tempo determinado, e os impuros devem imolar uma segunda páscoa no 14.° dia do mês seguinte.” (Páscoa, 7, p. 154)

Os Apóstolos, os discípulos, José de Arimateia, Nicodemos, as santas mulheres e os seguidores de Cristo não pediram a morte dele, e estes eram representados pelos que são chamados de incontaminados na mishná que citamos. Para prenunciar o modo como o Senhor foi crucificado em Jerusalém, era a seguinte a lei revelada:

“Não poderás imolar a páscoa em qualquer das tuas cidades que o Senhor teu Deus te dará. Mas, sim, no lugar que o Senhor teu Deus tiver escolhido.” (Dt 16,5)

 

“Mesmo que uma única tribo esteja contaminada de impureza, e as restantes onze tribos de Israel estejam puras, os membros da tribo impura precisam trazer um sacrifício em separado, porque ele mantém que cada tribo constitui uma assembleia.” (Páscoa, 7, 155)

 

Mishná: Os ossos, tendões e outras partes remanescentes têm de ser queimados no décimo-sexto, e caso esse dia cair no shabat, devem ser queimados no décimo-sétimo, porque sua queima não sobrepuja as leis do shabat nem as do festival. Os ossos de um sacrifício pascal que permaneçam inteiros, no entanto, só podiam ser quebrados e ter a medula extraída depois de se tornarem ‘sobra’, e por isso devem ser queimados. ‘Nada sobrará dele até pela manhã. Se restar alguma coisa, queimá-la-eis no fogo.’ (Ex 12,10; Páscoa, 7, p. 162)

Esse descarte dos restos do cordeiro era uma profecia, no tempo de Moisés, de que o corpo de Cristo seria sepultado no dia em que ele morreu. Já o seguinte profetizava que, enquanto quebraram as pernas dos dois ladrões, não quebraram os membros de Cristo.

Mishná: Todo aquele que quebrar algum osso do cordeiro pascal puro, incorre na pena de quarenta açoites. ‘Nem lhe quebrareis osso algum’, ‘Numa só casa ele será comido, não levareis nada de suas carnes para fora da casa, nem lhe quebrareis osso algum’ (Ex 12,46), e por conseguinte devemos dizer que só se for quebrado osso de um cordeiro que tem de ser comido, mas não o de um cordeiro que não tem de ser comido, é que se incorre na pena dos açoites. Eles diferem, porém, a respeito do homem que quebre a cauda do cordeiro, a qual não deve ser comida, mas oferecida em sacrifício sobre o altar (Páscoa, 7, 165, 167, etc).

 

“O sótão do Santo dos Santos era ainda mais santo do que o próprio Santo dos Santos, pois enquanto neste último se entrava uma vez a cada ano, naquele se entrava apenas uma vez em sete anos, segundo outros duas vezes em sete anos, e segundo outros ainda uma só vez em cinquenta anos, e mesmo então só para ver se era necessário efetuar algum reparo (Páscoa, 7, p. 169).

 

“Sobre o Templo está escrito: ‘Então Davi entregou a Salomão, seu filho, uma descrição do pórtico e do templo, e da sala dos tesouros, e do andar superior, e dos aposentos interiores, e da casa do propiciatório, etc… Todas essas coisas, disse ele, vieram-me escritas pela mão do Senhor’, etc. (1 Cr 28, 11-20)

 

“Quando dois grupos comerem seu sacrifício pascal na mesma casa ou na mesma sala, cada qual com os rostos voltados para uma direção diferente enquanto o comem, e o bule de aquecimento contendo a água que será misturada ao vinho estiver no centro, o copeiro, ou servente, deve manter a boca fechada, ou seja não comer, enquanto serve ao outro grupo vertendo o vinho para eles. Aí então ele deve voltar o rosto para o grupo junto do qual está comendo, e não pode comer enquanto não se juntar ao seu próprio grupo.” (Páscoa, 7, p. 170)

Será que é porque os servidores entravam, dessa maneira, entre uma mesa e outra e entornavam o vinho, que os acólitos, o diácono, o subdiácono ou os coroinhas derramam a água e o vinho no cálice durante a Missa? O rito grego e os ritos orientais prescrevem água morna misturada ao vinho na Missa.

Míshná: Se o marido imolasse um sacrifício pascal para a esposa, e o pai dela também imolasse um, ela deve comer o do marido. Se ela foi passar na casa de seu pai o primeiro festival após seu casamento, e o pai dela e o marido dela imolaram cada qual um sacrifício pascal para ela, ela pode comê-lo onde preferir. Se diversos guardiães de um órfão tiverem sacrificado vítimas pascais para ele, o órfão pode ir comê-la na casa que ele preferir (Páscoa, 8, Primeira Míshná, p. 173).

 

Míshná: Se um homem disser a seus filhos: ‘Imolo a páscoa para aquele de vocês que chegar primeiro em Jerusalém’, então o primeiro deles, cuja cabeça e maior parte do corpo aparecer primeiro na porta da cidade, adquire assim direito à sua própria porção, e adquire o mesmo para seus irmãos.”
As páginas a seguir explicam e definem as regras relativas aos benefícios ou graças obtidas por aqueles para os quais era imolado o cordeiro. Isto mostra que eles ofereciam sacrifícios por pessoas e por famílias específicas. Temos assim um costume, que remonta aos Apóstolos, de oferecer Missas por pessoas, por famílias ou por intenções particulares.

 

Míshná: Se alguém que, tendo um problema de fluxo, houver observado esse corrimento duas vezes no mesmo dia, e o sétimo dia depois de cessar essa sua enfermidade cair no décimo quarto de nisan, quando já não está mais manchado de impureza, pode mandar imolar a vítima pascal para si naquele dia. Se, porém, tiver observado o fluxo três vezes em um dia, o sacrifício só poderá ser imolado para essa pessoa caso o oitavo dia, quando ela voltar a ficar pura, cair no décimo quarto de nisan (Páscoa, 8, p. 185).

 

Míshná: Para um enlutado que perdeu um parente pelo qual está obrigado a permanecer de luto no décimo quarto de nisan, para uma pessoa que está desenterrando de um amontoado de ruínas desabadas as pessoas ali soterradas, para um prisioneiro que tem garantia de soltura em tempo de comer a páscoa e para as pessoas idosas e doentes, é lícito imolar o sacrifício pascal enquanto forem capazes de dele ingerir uma quantidade, no mínimo, do tamanho de uma azeitona.” (Páscoa, 8, p. 187)

O leitor verá aqui a origem do costume de dar a Comunhão para os que não podem vir à igreja.

O que vem a seguir mostra que só Cristo e seus Apóstolos formaram o “grupo” para comer a páscoa. Só podiam sentar-se à mesa os homens, quando isentos de impureza, e sendo todos circuncisos, para prefigurar os batizados. Os não batizados são incapazes dos outros sacramentos. Por essas razões, Cristo ordenou somente homens.

“Mas aprendemos em nossa mishná que um grupo não deve ser formado de mulheres, escravos ou menores, isto é, de nenhum dos três. E Rabha replicou: ‘Não, isso quer dizer que um grupo não deve ser formado dos três juntos.’

Mishná: Um enlutado pode comer da vítima pascal na véspera, depois de tomar seu banho ritual legalmente exigido, mas não deve comer dos outros sacrifícios santos.”

Isso mostra que todos os que celebravam a páscoa judaica estavam obrigados a tomar um “banho ritual” semelhante ao dos sacerdotes que entravam em serviço no Templo. O ato de lavar o corpo era um tipo profético do batismo, e Cristo elevou-o à dignidade deste sacramento que apaga todos os pecados e infunde as três virtudes que são: a fé, a esperança e a caridade.

O Talmude cita aqui muitas normas e regulamentações relativas à “segunda páscoa”, celebrada no décimo quarto dia do mês seguinte, que observavam todos os que não pudessem celebrar a primeira. Se um judeu não celebrasse nem uma nem outra, tornava-se réu de caret (“excomunhão”). Era expulso da sinagoga e excluído de todas as relações com todo o Israel, como diz a Lei de Moisés:

“Mas se alguém está puro, e não estava em viagem, e não fez a páscoa, essa alma será expulsa de seu povo.” (Nm 9,13)

 

“Quem comer pão fermentado, sua alma perecerá do meio do ajuntamento de Israel, quer seja estrangeiro ou natural da terra.” (Ex 12,19)

 

“As seguintes pessoas estavam obrigadas a observar uma segunda páscoa: homens e mulheres acometidos de corrimento, com feridas abertas, mulheres sofrendo de menstruação e os que com elas tiveram relações sexuais durante esse período, mulheres em repouso (mulheres em trabalho de parto), os que negligenciaram a observância da primeira páscoa, quer por erro ou por compulsão, os que a negligenciaram propositalmente e os que estavam em viagem distante. ‘E o Senhor falou a Moisés, dizendo: Dize aos filhos de Israel: O homem que estiver impuro por ocasião de um morto, ou que se achar em jornada distante na sua nação, faça a páscoa do Senhor no segundo mês, no décimo quarto dia do mês, ao entardecer comê-la-ão, com pães ázimos e alfaces bravas.’ (Nm 9,10-11)

 

Caret é a pena para a não-observância da primeira e também da segunda. Assim, a conclusão é a seguinte: Se um homem preterisse propositalmente a primeira e a segunda páscoas, todos concordam que ele incorre na pena de caret. Se ele inadvertidamente preteriu ambas, todos estão de acordo que ele não é réu.

 

“Mas a pessoa que, tendo sua impureza sobre si, tiver comido da carne do sacrifício pacífico, que pertence ao Senhor, também essa pessoa deve ser expulsa de seu povo. Donde inferimos nós que, se uma pessoa impura comer da carne que só pode ser comida por pessoas puras, incorre na pena de caret; se, porém, tiver comido da carne que não era apropriada para uma pessoa pura, isto é, da carne impura, aí então não é ré de caret. Podemos dar como certo que se pessoas com problema de fluxo tiverem entrado, nesse estado de impureza, no santuário enquanto se oferecia o sacrifício, incorrem assim na pena de caret; com esse fito está escrito: ‘Manda aos filhos de Israel que expulsem do acampamento todo leproso, e todo o que padece corrimento, ou que esteja contaminado por cadáveres. Quer seja homem ou mulher, expulsai-os do acampamento, para que o não contaminem (Nm 5,2,3), habitando eu convosco’ (EDERSHEIM, Temple, 43; Jewish Cyclopedia [“Enciclopédia Judaica”], etc.).”

Esse caret (“expulsão”, ou excomunhão da igreja judaica) é, em hebraico, Anathema, Maranatha (“Vai para trás quando vem o Senhor”). Isso Cristo disse a Pedro (Mc 8,33).

Se uma pessoa não conseguir fazer sua desobriga pascal durante a Semana Santa ou no Domingo de Páscoa, a Igreja estende o período dentro do qual o preceito pascal pode ser satisfeito até ao sábado que precede o Domingo da Trindade, término do Tempo Pascal; se um cristão não fizer sua confissão e Comunhão pascal durante esse período, ele como que se torna um caret (“expulso”, “excomungado”). A Igreja, ao fazer essa lei, tinha o exemplo e sanção do próprio Deus, que havia estipulado a mesma pena para os hebreus.

“O que se deve considerar uma jornada ‘distante’? Segundo o rabi Áquiba é para além de Moodayim, e para além de todos os lugares em redor de Jerusalém situados na mesma distância. Qualquer distância além do umbral do pátio do Templo deve considerar-se contemplada por essa expressão.” (Páscoa, 9, 194)

 

“Disse Ula: ‘De Moodayim até Jerusalém a distância é de vinte e quatro quilômetros.’ Qual a distância que um homem consegue viajar em um dia? Dez parsaot

Moodayim, em tradução Modin (1Mac 13,25), era a cidade e o monte onde nasceu Matatias, o pai dos Macabeus (I Mac 2, 9, 13, 16; II Mac 13, 14). Continha os sepulcros de sua família, que Simão ali construíra (I Mac 13, 27-30; Smith, Dict., vol. 3, verbete “Modin”; Josefo, Antiguid. jud., XIII, 6, 6) erigindo sete pirâmides de pedra polida, respectivamente, para seu pai, sua mãe, ele próprio e seus quatro irmãos. “Parsaot é o plural de parsá, “uma medida de seis quilômetros e meio”, chamada em hebraico “milin”.

“Ao comer o primeiro sacrifício pascal deve-se recitar o Halel, mas não enquanto se come o segundo, da passagem: ‘Entoareis um cântico como na noite da santificada solenidade, e tereis alegria do coração como quando se caminha ao som da flauta para entrar no monte do Senhor até ao Forte de Israel. E o Senhor fará ouvir a glória da sua voz’ (Is 30,29). Por onde, na noite que introduz um festival deve-se recitar o Halel, mas na noite da segunda páscoa, quando não se segue nenhum festival, a recitação do Halel não é necessária. Ambas a primeira e a segunda páscoas exigem que o homem que oferece em sacrifício o cordeiro pascal passe a noite em Jerusalém (Páscoa, 9, p. 200).

 

“Qual a diferença entre a páscoa tal como celebrada pelos israelitas no Egito, e aquela observada pelas gerações posteriores? A vítima pascal egípcia, havia ordens específicas de que fosse adquirida no 10.° dia de nisan, e que seu sangue fosse aspergido com um ramalhete de hissopo sobre a verga da porta e sobre seus dois batentes, e também que fosse comida com pães ázimos na primeira noite da páscoa, às pressas, enquanto que nas gerações posteriores a lei da páscoa se aplica a todos os sete dias do festival. Os votos e os sacrifícios voluntários não devem ser sacrificados em um festival.

 

“Os que tiverem ouvido o Kidush ser pronunciado na sinagoga não têm de recitá-lo em casa, mas só precisam pronunciar a bênção costumeira sobre o vinho. Por que um homem deveria recitar o Kidush em casa? Para dar a seus familiares uma oportunidade de ouvi-lo. Por que o Kidush deveria ser recitado na sinagoga? Para proporcionar aos convivas, que comem, bebem e dormem nas sinagogas, uma oportunidade de ouvi-lo. Se uma pessoa ouvir a recitação do Kidush numa casa, não deve comer em outra; quanto aos aposentos de uma mesma casa, entretanto, não faz diferença.”

O Kidush consistia nas orações sinagogais feitas antes de eles se sentarem à mesa pascal. Eram rezadas ou na sinagoga ou em casa. Como o cenáculo era uma sinagoga, Cristo e seus Apóstolos começaram os serviços sinagogais da Quinta-Feira no Bimá antes da ceia, como explicaremos mais adiante.

“O rabi Huna é do parecer de que o Kidush deve ser recitado somente no lugar onde se consome a refeição. Abayi disse: ‘Quando eu estava na casa do Mestre, ao mesmo tempo que ele recitava o Kidush, ele dizia aos convidados: Comam alguma coisa desta ceia antes de irem para vossas casas, porque se fordes para casa e encontrardes as velas extintas, não podereis recitar o Kidush nos vossos lares, e assim não vos desincumbireis do dever a não ser comendo alguma coisa onde foi recitado o Kidush.’”

Eles estavam proibidos de comer o cordeiro se não houvesse velas ardendo. Nunca se realizavam quaisquer serviços religiosos em Israel sem velas acesas. Daí derivou a Igreja o costume de acender velas em todas as funções religiosas.

“Não se devem proferir duas bênçãos sobre uma mesma taça. Quando um homem entra em casa ao término do shabat, ele pronuncia a bênção sobre o vinho, a luz, o incenso, e então a benção da Habdalá (a Habdalá era a bênção pronunciada no encerramento dos serviços do shabat) sobre uma taça, e se ele não tiver outra de vinho em casa, pode deixar esta taça para depois de terminar de comer sua refeição vespertina, e então recitar a bênção após a refeição sobre a mesma taça de vinho. Rabh menciona todas essas bênçãos, mas omite a da estação, sendo de presumir que quando ele fala do festival ele se refira ao sétimo dia da páscoa, porque nesse dia a bênção da estação não se diz, e nessa data é possível que um homem beba somente uma taça de vinho.

 

“Quando isso é possível? No primeiro dia de um festival, quando um homem decerto bebe mais vinho; ainda assim, Abyi proferia sobre uma mesma taça a bênção do vinho, o Kidush da estação da luz, e a Habdalá, e finalmente a da estação, etc.

 

“Quando chegou o momento da oração Habdalá, o criado de Rabha acendeu várias velas e juntou-as em uma única chama. Disse-lhe o rabi Jacó: ‘Por que acendeste tantas velas?’, e Rabha replicou: ‘O criado fez isso por sua própria iniciativa.’

 

“Aprendemos numa boraitá: Que aquele que tem o costume de incorporar muitas bênçãos na oração Habdalá pode incorporar quantas ele quiser.

 

“Como se há de observar a ordem da Habdalá? Como segue: ‘O Qual fez uma distinção entre o santificado e o ordinário, entre luz e trevas, entre Israel e as outras nações, entre o sétimo dia e os dias de trabalho, entre puro e impuro, entre o mar e a terra seca, entre as águas superiores e as inferiores, entre sacerdotes, levitas e israelitas’, e ele concluía com: ‘Bendito seja Ele, que dispôs a ordem da criação.’”

O que vem a seguir diz respeito às sete bênçãos e orações que se encontrarão mais adiante no Séder pascal (no Cap. 12, da presente obra):

“Não é lícito começar a comer antes das orações. Nenhuma interrupção é permitida durante a cerimônia. Se o shabat, que tinha início ao pôr do sol, se introduzisse enquanto eles estavam à mesa pascal, eles paravam de comer e recitavam a Habdalá do shabat, e, depois de aduzirem leis e costumes, seguem-se as oito coisas seguintes.

 

“Primeira: Quem tiver incluído a Habdalá na sua oração vespertina, ainda assim, deve recitá-la novamente, sobre uma taça. Segunda: A bênção após as refeições deve ser feita sobre a taça de vinho. Terceira: A taça usada na bênção deve ser de um conteúdo prescrito, i.e., de um quarto de um log (quartilho), porque do contrário não se poderia dividi-la, empregando parte dela para a Habdalá, e a outra parte para a bênção. Quarta: Quem pronuncia a bênção sobre a taça de vinho precisa experimentar um pouco deste. Quinta: Assim que parte do vinho tiver sido provada após uma bênção, a taça de vinho fica imprópria para qualquer outra bênção. Sexta: Mesmo que se coma uma refeição inteira ao término do shabat, e que a santificação do dia tenha passado, haverá o dever de recitar a Habdalá. Sétima: Dois graus de santificação podem ser outorgados a uma mesma taça de vinho. Última: Toda esta boraitá está em conformidade com a escola de Shamai e com a interrupção do rabi Judá.”

Citamos essas coisas porque se referem ao quarto cálice de vinho, que cada um dos presentes à mesa deve beber. Foi este o cálice que Cristo abençoou e consagrou em seu Sangue. Segundo as regras que citamos, tem de ser um cálice grande. Quem pronunciava “a bênção sobre o cálice de vinho precisa experimentar um pouco deste”, diz o Talmude. Cristo bebeu então do cálice consagrado antes de entregá-Lo a seus Apóstolos, e esta é a razão pela qual o celebrante toma a Comunhão primeiro, antes de distribuí-La aos outros. As bênçãos sobre o cálice deram origem às bênçãos ou cruzes que são traçadas sobre os Elementos depois da consagração. Vêm a seguir muitas regulamentações minuciosas do ritual.

“Nem o Kidush nem qualquer outra bênção se devem fazer com outra coisa que não vinho. Os ensinamentos dos rabis relativos às outras bênçãos significam que o cálice, entregue para a bênção após as refeições, deve ser de vinho somente.

 

“Ao comer os pães ázimos, na noite pascal, é preciso reclinar- se em posição confortável, mas não se exige isso ao comer as ervas amargas. Ao beber o vinho, foi ensinado em nome do rabi Na’hman que é preciso assumir uma posição reclinada, e também que isso não é preciso. Todavia, essa contradição aparente não apresenta dificuldade. A declaração citada do rabi Na’hman de que é necessária a posição reclinada ao beber vinho refere-se às duas primeiras taças, e a declaração de que não é necessária refere-se às duas últimas taças. As primeiras duas taças simbolizam o começo da liberdade para os judeus anteriormente escravizados, enquanto as últimas duas taças não têm essa significação (Talmude babilónico, 225).

 

“Recostar-se não é considerado reclinar-se, nem inclinar-se sobre o lado direito é considerado reclinar-se em posição confortável. A mulher que se senta junto com o marido não precisa se reclinar enquanto come, mas, se for uma mulher proeminente, deve fazê-lo. Um filho que se senta junto ao pai deve reclinar-se.

 

“Cada taça deve conter vinho que, depois de mesclado a um quarto de água, seja vinho bom. Se vinho não mesclado tiver sido bebido, o dever também foi cumprido, não obstante isso. Se todas as quatro taças tiverem sido despejadas numa só e bebidas, o dever também foi cumprido. Se o vinho tiver sido bebido sem mescla, o dever de beber o vinho foi cumprido, mas sua feição simbólica não foi realizada. A taça deve conter a cor e o sabor de vinho tinto. O dever de beber as quatro taças recai igualmente sobre todos (Talmude babilónico, 10, p. 226).

 

“É dever de todo homem fazer com que o seu lar, família e filhos se regozijem no festival, como está escrito: ‘E te alegrarás nesta tua festa’ (Dt 16,14). Os homens com a coisa de que mais gostam, e as mulheres com o que mais lhes apraz. A coisa de que os homens mais gostam, claro, é vinho. Mas o que é que mais agrada às mulheres? Na Babilônia, vestidos multicoloridos, e na Judeia, roupas de linho prensado. Peixes pequenos devem ser consumidos, como se ensina na Mishná (Talmude, 10, p. 227): “Quando a primeira taça é enchida, a bênção referente ao festival deve ser proferida, e então a bênção sobre o vinho tem de ser pronunciada.

 

“As ervas e os vegetais são trazidos em seguida, as alfaces devem ser então mergulhadas, e partes delas consumidas, e o que sobrar deve ser deixado para depois de consumida a refeição preparada para esta noite; depois os bolos ázimos devem ser postos diante dele, bem como as alfaces, o harósset (salsa) e dois tipos de comidas cozidas, embora não seja estritamente obrigatório usar as mesmas. Durante a existência do Templo santo, o sacrifício pascal era posto diante dele. São necessárias duas imersões: uma quando o alface é mergulhado, a outra ao serem molhadas as ervas amargas. O peixe junto com dois ovos podem também servir como os dois tipos de alimento cozido. Um homem não deve pôr as ervas amargas no meio dos bolos ázimos e comê-los desse jeito. Por quê? Porque a manducação dos bolos ázimos é um preceito bíblico, enquanto a manducação de ervas amargas neste dia é somente uma disposição rabínica. Foi dito de Hilel (que viveu no século II antes de Cristo) que ele tomava um pedaço do sacrifício pascal, um bolo ázimo e algumas ervas amargas, e comia-os juntos, como está escrito: ‘Comê-lo-ão com pães ázimos e alfaces bravas.’ (Nm 9,11). O rito prescrito deve ser pronunciado sobre os pães ázimos, e um pedaço deles deve ser consumido; então outra bênção deve ser proferida sobre as ervas amargas, e um bocado delas deve ser provado, e finalmente os pães ázimos e as ervas amargas devem ser juntados e comidos ao mesmo tempo, dizendo: ‘Isto é em memória das ações de Hilel quando o Templo existia ainda’ (Talmude babilônico, X, p. 237).

 

“Quando alguma coisa é mergulhada na salsa, as mãos devem estar perfeitamente limpas, isto é, devem ter sido previamente lavadas. Por onde, inferimos nós que as alfaces devem ser mergulhadas por inteiro na salsa harósset, porque do contrário que necessidade haveria de lavar as mãos, que só assim tocariam na salsa? Se um homem tiver lavado as mãos antes de mergulhar as alfaces pela primeira vez, ainda assim deve lavar as mãos novamente ao mergulhá-las pela segunda vez. Os pães ázimos, as ervas amargas e a harósset devem ser distribuídos a cada homem separadamente, mas imediatamente antes de a Hagadá ser lida.”

A Hagadá é o Séder ou liturgia da páscoa judaica. Algumas vezes eles punham à cabeceira do divã uma mesa separada para cada pessoa. Na Última Ceia, porém, havia várias mesas, dispostas em forma de “U”. O pai de família, ou o mestre do grupo, recitava o ritual, os demais segurando em mãos o rolo com a liturgia, e todos recitavam-no junto com ele, assim como os sacerdotes recém-ordenados recitam a liturgia de ordenação junto com o bispo que os ordena. A salsa chamada harósset era uma espécie de salada feita de maçãs, castanhas, amêndoas, especiarias, etc., misturadas com vinagre.

“A que fins religiosos serve a harósset? Serve como lembrança das macieiras. Serve como lembrança da argamassa que os israelitas foram forçados a fazer no Egito. Por isso, a harósset deve ser feita de maneira que tenha sabor ácido, em memória das macieiras, e também seja espessa, em memória da argamassa. As especiarias usadas na preparação da harósset eram em recordação da palha usada na preparação da argamassa. Os vendedores de especiarias em Jerusalém ficavam bradando pelas ruas: ‘Venham comprar especiarias para fins religiosos’.

“Uma segunda taça é enchida, e o filho deve então indagar do pai a razão da cerimônia. Onde um grupo, e não uma família, celebrasse a páscoa, o mais jovem à mesa fazia as vezes do filho e formulava a pergunta: ‘Qual a razão destas cerimônias?’

 

“O rabon Gamaliel (o professor de São Paulo) soía dizer: ‘Todo aquele que não mencionar as três coisas seguintes na páscoa não cumpriu o seu dever. São elas o cordeiro pascal, os bolos ázimos e as ervas amargas. O sacrifício pascal se oferece porque o Senhor passou adiante das casas de nossos ancestrais no Egito, como está escrito: ‘Vós lhes direis: É a vítima da passagem do Senhor, quando ele passou adiante das casas dos filhos de Israel no Egito, ferindo de morte os egípcios e livrando nossas casas.’ (Ex 12,27). Os pães não fermentados são consumidos porque nossos ancestrais foram remidos do Egito, como está escrito: ‘O povo tomou, pois, a massa antes que levedasse e, atando-a nas suas capas, pô-la sobre os ombros.’ (Ex 12,34). E as ervas amargas são ingeridas porque os egípcios amarguraram a vida de nossos ancestrais no Egito, como está escrito: ‘E tornaram-lhes a vida amarga com trabalhos pesados, que envolviam barro e tijolos, e com todo tipo de serviços, com que eles eram sobrecarregados nos trabalhos do campo.’ (Ex 1,14)

 

“É incumbência, portanto, de toda a gente em todas as idades considerar como se tivesse saído pessoalmente do Egito, conforme está escrito: ‘E contarás a teu filho naquele dia, dizendo: Isto é o que o Senhor fez por mim quando eu saí do Egito.’ (Ex 13,8). Sejamos, pois, fiéis ao dever de agradecer, louvar, adorar, glorificar, enaltecer, honrar, bendizer, exaltar e reverenciar a Ele, que fez todos esses milagres por nossos ancestrais e por nós. Pois Ele libertou-nos da servidão para a liberdade; Ele mudou nossa tristeza em alegria, nosso luto em solenidade festiva. Ele nos conduziu da escuridão para a luz, e da escravidão para a redenção. Por isso, digamos em sua presença: Haleluia, entoemos a oração do Halel.”

Haleluja é em hebraico: “louvai a Ja” (Jehová, “louvai a Jehová”). Nas cerimônias litúrgicas da Igreja é: aleluia.

“Os pães ázimos e as ervas amargas têm de ser erguidos quando estiverem para ser comidos, mas a carne não precisa ser levantada, e além disso, se a carne fosse erguida, pareceria haver manducação de coisas consagradas fora do Templo.”

Esta elevação, chamada nos escritos judaicos de “agitação”, era feita da seguinte maneira. Primeiro o pão e depois o vinho eram, cada um por seu turno, erguidos e oferecidos ao Senhor, e então abaixados e “agitados” para o norte, sul, leste e oeste, traçando-se com eles uma cruz. Isso se fazia com todos os sacrifícios no Templo, o que deu origem à cerimônia da elevação e oblação do pão e do vinho, abaixados em seguida traçando-se com eles uma cruz, no Ofertório da Missa. Provavelmente também foi esta a origem da elevação da Hóstia quando é dito: “Eis o Cordeiro de Deus, eis O que tira os pecados do mundo!” antes da distribuição da Comunhão. Não se erguia a “carne”, ou o cordeiro pascal, durante a ceia pascal, porque já tinha ocorrido sua elevação e “agitação” durante a sua imolação no Templo, como descreveremos mais adiante.

“O cântico nas Escrituras (Ex 15) foi cantado por Moisés junto com todo o Israel, ao subirem para fora do mar. Quem recitava o Halel? Os profetas mandaram que em todas as ocasiões em que eles fossem libertados da aflição, deviam recitá-lo, em virtude de sua redenção.

 

“Todos os louvores proferidos no Livro dos Salmos foram proferidos por Davi, como está escrito: ‘Aqui terminaram as orações de Davi, filho de Jessé.’ (Sl 71,20). Meu filho Eleazar diz que foi Moisés, juntamente com Israel, quem o disse ao sair do mar, mas seus colegas diferem dele, defendendo que foi Davi quem o disse, mas para mim a opinião do meu filho parece mais razoável, pois como pode ser que os israelitas imolassem os seus cordeiros pascais e pegassem nos seus ramos de palmeira sem que cantassem uma canção de louvor?

 

“Todos os cânticos e hinos do Livro dos Salmos, segundo a sentença do rabi Eleazar, foram cantados por Davi visando a si próprio. O rabi Josué, todavia, diz que ele cantou-os em vista da assembleia como um todo, e os sábios dizem que alguns foram articulados por ele visando a assembleia como um todo, enquanto outros somente a si próprio, a saber: os que ele enunciou no singular visavam a si mesmo, e os exprimidos no plural visavam a comunidade como um todo. Os salmos que contêm os termos nitzua’ch e nigon significavam o futuro, os que contêm o termo maskil foram proclamados por meio de intérprete. Onde o salmo começa: ‘Le-Davi Mizmof, a Shekiná repousou sobre Davi, e então ele cantou o salmo; mas quando começa: ‘Mizmor Le-Davi‘, ele primeiro cantou o salmo, e depois a Shekiná repousou sobre ele. Por onde se pode concluir que a Shekiná não repousa sobre quem está em estado de ociosidade, ou de tristeza, ou de risadas, ou de cabeça vazia, nem sobre quem dá vazão a palavras vãs, mas somente sobre quem se alegra com o cumprimento de um dever, como está escrito (4Rs 13,15): ‘Mas agora trazei-me cá um menestrel (um músico). E, enquanto o menestrel tocava, a jand (inspiração) do Senhor desceu sobre ele.’

 

“Eles disseram: ‘Não a nós (Sl 113,1), Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá a glória’. E o Espírito Santo respondeu (Is 48,11): ‘Por amor de mim, por amor de mim é que o farei’. ‘Josué e Israel disseram isso quando combateram contra os reis dos cananeus.’ Israel disse: ‘Não a nós’, etc., e o Espírito Santo disse: ‘Por amor de mim’, etc. Débora e Barac disseram isso quando Sísara moveu guerra contra eles. Eles disseram: ‘Não a nós’, etc., e o Espírito Santo respondeu: ‘Por amor de mim’, etc. O rei Ezequias e seus companheiros disseram isso quando Senaqueribe moveu guerra contra eles. Eles disseram: ‘Não a nós’, etc., e o Espírito Santo respondeu: ‘Por amor de mim’, etc. Ananias, Misael e Azarias disseram isso quando Nabucodonosor estava prestes a jogá-los na fornalha ardente. Eles disseram: ‘Não a nós’, etc., e o Espírito Santo respondeu: ‘Por amor de mim’, etc. Mardoqueu e Ester disseram isso quando o perverso Amã ergueu-se contra eles. Eles disseram: ‘Não a nós’, etc., e o Espírito Santo respondeu: ‘Por amor de mim’, etc.” (Talmude babilónico, X, pp. 744 a 246)

Nós fizemos essa citação do Talmude para mostrar que eles tinham uma certa noção do Espírito Santo. Essas palavras, juntamente com outras que ocorrem centenas de vezes no Antigo Testamento e nos escritos judeus, mostram-nos que eles tinham uma vaga noção das Três Pessoas da Trindade.

“Até onde se deve recitar o Halel? Segundo a beit Shamai, até: ‘A mãe alegre de seus filhos’ (Sl 112,9); segundo a beit Hilel, até: ‘Que converte a rocha em um lago de águas’ (Sl 112,5); segundo outros, até: ‘Quando Israel saiu do Egito’ (Sl 114,4).”

A beit Shamai (“casa de Shamai”) e a beit Hilel (“casa de Hilel”) eram duas escolas de pensamento, fundadas por esses famosos líderes de Israel que viveram no século II antes de Cristo. Hilel em hebraico significa “rico em louvores”, e Shamai é “desolado”.

“Na leitura do Shemá” (citaremos a oração mais adiante) “e do Halel, a redenção de Israel deve ser referida no tempo pretérito, a saber: ‘Que redimiste’, etc.; já na oração que abarca as dezoito bênçãos, porém, importa referi-la no tempo futuro: ‘Que redimirá’, etc., deve apontar para o futuro, não para o passado. Na prece pela redenção, a sentença: ‘Ele faz brotar o fundamento do socorro’ deve ser proferida, e a bênção, pronunciada, depois da recitação da Haftará (os Profetas), que deve concluir-se depois da bênção pela redenção com o ‘Escudo de Davi’.

 

“Uma terceira taça é enchida então, e se pronuncia a bênção após as refeições. Depois de encher a quarta taça, sobre ela deve-se concluir o Halel e devem recitar-se as bênçãos das canções de louvor. Uma pessoa pode beber o quanto quiser entre a segunda e a terceira taças, mas não entre a terceira e a quarta. Com a quarta taça o Halel se conclui, e o grande Halel deve ser recitado também depois disso.

 

“Se é necessário recitar o grande Halel, por que o pequeno Halel precisa ser recitado na ceia pascal? Porque o pequeno Halel contém as cinco coisas seguintes: o êxodo do Egito, a divisão do Mar Vermelho, a entrega da Lei aos israelitas, a ressurreição dos mortos e os sofrimentos do Messias. O pequeno Halel é recitado por mais uma razão, a saber, porque contém orações para que as almas dos justos sejam transportadas da Geena (o purgatório, não o inferno dos condenados) para o céu, como está escrito: ‘Ó Senhor, livrai a minha alma’ (Sl 114,4).

 

“Depois que a refeição e as bebidas tiverem sido consumidas, o Senhor entregará o cálice, que foi usado para a bênção após as refeições, a Abraão, e Abraão dirá: ‘Eu não sou digno, pois de mim saiu Ismael (“Deus ouve”)’; Isaac (“riso”) será então chamado a pronunciar a bênção, mas ele se recusará, por dele ter saído Esaú (“hirsuto, peludo”); a Jacó (“o suplantador”) será oferecido então o cálice, mas ele o recusará, por se ter casado com duas irmãs, o que mais tarde foi proibido pela lei. Moisés (“eliciador”) será então requisitado a dizer a bênção, mas ele se recusará, em virtude de não ter sido destinado a entrar na Terra Prometida nem antes nem depois de sua morte; a Josué (em grego: Jesus, “Jehová salvará”) se pedirá então que aceite o cálice, e também ele o recusará, dizendo: ‘Eu não sou digno, porque morri sem filhos’. Finalmente, a Davi (“amado”) será oferecido o cálice, e ele o aceitará, dizendo: ‘Sou digno, sim, e recitarei a bênção’, como está escrito (Sl 115,13): ‘Eu tomarei o cálice da salvação, e invocarei o nome do Senhor’.”

O Talmude diz: “A taça da salvação eu erguerei.” O Davi citado aqui não é o rei Davi que seduziu a esposa de Urias, matou o marido dela, homem de sangue e de batalhas a vida toda, ao qual Deus não permitiu edificar o Templo, honra esta que estava reservada a seu filho Salomão. O Davi inocente segundo o coração de Deus mesmo era o Messias, que na páscoa ou Última Ceia tomou em suas santas e veneráveis mãos o seu quarto cálice com essas palavras, e o consagrou em seu próprio Sangue (Talmude babilônico, X, p. 256).

“É ilícito concluir a manducação da vítima pascal com uma sobremesa. O cordeiro pascal depois da hora da meia-noite torna impuras as mãos. Os sacrifícios que são rejeitados, ou que se conservaram além do tempo prescrito, também deixam impuras as mãos.”

 

(Ver o volume Pesahím, “páscoa”, do Talmude babilônico, que depois se encerra com umas poucas explicações sem importância.)

O tratado Yoma (“dia da expiação”) traz como Apêndice a seguinte carta escrita por Marco Ambíbulo, terceiro cônsul romano da Síria, cuja administração estava sediada na Cesareia. O quarto cônsul da Judeia foi Ânio, o quinto foi Galério Grato e o sexto foi Pôncio Pilatos, nomeado no ano 25 a.C., tendo sido o primeiro ato importante de sua administração transferir sua sede, de Cesareia para Jerusalém (Ver Josefo, Antiguid. jud., XIV, xi; Guerr. jud., I, X, etc.). As cenas descritas a seguir, portanto, aconteceram perto do tempo em que Cristo nasceu:

“RELAÇÃO ESCRITA ENVIADA POR MARCO,
CÔNSUL DE JERUSALÉM, A ROMA.”
(Apêndice ao tratado Yoma, “dia da expiação”.)

 

“Quanto ao culto praticado no Templo, esses judeus estavam relutantes em me informar a seu respeito, por declararem que vai contra a lei deles informar um gentio sobre a maneira como servem a Deus. Eles me esclareceram acerca de dois assuntos apenas, que em parte vi com meus próprios olhos, e me alegrei muito com o que vi. Um foi o sacrifício, que eles trouxeram na festa que chamam de páscoa; e o segundo é a entrada do sumo sacerdote, o que nós chamamos de sacerdos major, no Templo no dia que é para eles, quanto à santidade, pureza e fortalecimento da alma, o mais importante de todos os dias do ano.

 

“O sacrifício pascal que parcialmente presenciei, como também me foi descrito, a sua cerimônia toda acontece da seguinte maneira. Ao chegar o começo do mês que eles chamam nisan, por ordem do rei e dos juízes, céleres mensageiros visitaram a todos, nas imediações de Jerusalém, que possuíam rebanhos de ovelhas e manadas de gado, e os mandaram apressar-se em ir com eles para Jerusalém, a fim de que os peregrinos tivessem animais suficientes para os sacrifícios e como alimento; porque o povo era então numerosíssimo, e todo aquele que não se apresentasse no tempo designado tinha suas posses confiscadas em benefício do Templo. Consequentemente, todos os donos de rebanhos e de manadas vieram às pressas, e os conduziram a um riacho perto de Jerusalém, onde os lavaram e limparam de toda sujeira. Acreditam eles que foi tendo isso em vista que Salomão disse: ‘Como rebanhos de ovelhas que estão tosquiadas, que vem subindo do lavatório, todas com gêmeos.’ (Ct 4,2)

 

“Quando eles chegaram às montanhas que circundam Jerusalém, a multidão era tão grande que já não se via mais o gramado, dado que tudo se embranquecera em razão da cor branca da lã. Quando chegou o dia décimo — já que no décimo quarto dia do mês se trazia o sacrifício —, todos saíram para comprar o seu cordeiro pascal. E os judeus emitiram um decreto dispondo que ao sair com essa missão ninguém podia dizer ao seu próximo: ‘Abre alas’, ou então: ‘Deixa-me passar’, mesmo que quem viesse atrás fosse o rei Salomão ou Davi. Quando observei aos sacerdotes que isso não era apropriado nem polido, responderam eles que isso fora assim disposto para mostrar que, perante os olhos de Deus, mesmo na hora dos preparativos para servir a Ele e, mais especialmente, durante o serviço de culto mesmo, nessa hora todos eram iguais no recebimento de Sua bondade.

 

“Quando chegou o décimo quarto dia do mês, eles todos foram para a torre mais alta do Templo, que os hebreus chamam Lul, cuja escadaria foi feita como as das torres dos templos nossos, e seguraram em mãos três trombetas de prata, que eles tocaram. Depois de tocarem, eles proclamaram o seguinte: “‘Povo de Deus, escutai: Chegou a hora de sacrificar o cordeiro pascal, em nome d’Aquele que repousa na grande e santa morada.’

 

“Ao ouvir a proclamação, o povo vestiu seus trajes festivos solenes, porque a partir do meio-dia era um dia santo de festa para os judeus, sendo o tempo de sacrificar.

 

“Na entrada do grande edifício, do lado de fora, estavam a postos doze levitas com bordões de prata nas mãos, e no interior doze levitas com bordões de ouro nas mãos. As obrigações dos de fora consistiam em dirigir e admoestar o povo que entrava, para que com sua pressa enorme não machucassem uns aos outros nem empurrassem a fim de passar à frente em meio à multidão, para evitar brigas; porque aconteceu, numa das festas da páscoa anteriores, que um homem idoso trazendo sua vítima sacrifical foi esmagado por consequência da grande correria. Os do lado de dentro tinham de manter a ordem entre o povo que saía, para que não esmagassem uns aos outros. Deviam também fechar as portas do pátio quando vissem que sua capacidade tinha sido preenchida.

 

“Ao chegarem ao lugar do abate, fileiras de sacerdotes estavam de pé com cálices de ouro e de prata nas mãos: uma fileira tinha todos os cálices de ouro, a outra fileira tinha os cálices de prata. Isso era feito para exibir a glória e o esplendor do lugar. Cada sacerdote que estava em pé à testa da fileira recebia um cálice cheio do sangue da aspersão. Ele passava-o para seu vizinho, e este para o seu, até chegar ao altar. E o sacerdote que estava ao lado do altar devolvia o cálice vazio, que retornava de igual maneira, de modo que todo sacerdote recebia um cálice cheio e devolvia um vazio.

 

“E não ocorreu nenhum tipo de embaraço, visto estarem eles tão acostumados com o serviço que os copos pareciam voar de um lado para o outro como flechas nas mãos de um herói. Durante os trinta dias antecedentes eles treinaram aquele serviço, e descobriram assim onde é que havia possibilidade de ocorrer erro ou acidente. Havia também duas altas colunas, nas quais havia dois sacerdotes de pé com trombetas de prata nas mãos, os quais tocavam quando cada divisão dava início ao sacrifício, para alertar aos sacerdotes que, estando de pé no seu cume, dessem início ao Halel, em meio a exultações de júbilo e ações de graças, e acompanhados por todos os instrumentos musicais deles. O sacrificador também rezava o Halel. Se o sacrifício não tivesse terminado, repetia-se o Halel.

 

“Depois dos sacrifícios, eles entravam nos saguões, onde as colunas estavam cheias de ganchos e de forcados de ferro: ali eram pendurados e esfolados os sacrifícios. Havia também grande número de fardos e de varas, pois quando não havia mais nenhum gancho vazio eles punham uma vara sobre os ombros de dois dos seus, penduravam nela o sacrifício, esfolavam-no e saíam jubilosos, como quem foi para a guerra e voltou vitorioso.

 

“Aquele que não tivesse trazido o cordeiro pascal no tempo designado ficava eternamente desgraçado. Durante as funções, os sacerdotes usavam vestes escarlate, para que não fosse notado o sangue que acidentalmente espirrasse neles. O traje era curto, descendo só até o tornozelo. Os sacerdotes ficavam em pé descalços, e as mangas só chegavam até os braços, para que eles não fossem incomodados durante o serviço. Sobre a cabeça eles traziam uma mitra, ao redor da qual era amarrada uma fita que tinha três varas de comprimento, mas o sumo sacerdote, segundo me contaram eles, tinha uma fita que ele podia amarrar em torno da mitra quarenta vezes. A dele era branca.

 

“Os fornos, nos quais assavam os cordeiros pascais, ficavam diante das portas deles, a fim de, segundo me contaram eles, dar publicidade às suas cerimônias religiosas, bem como em razão das alegrias do festival. Depois de assar, eles comiam-nos em meio a exultações de júbilo, canções e ações de graças, de sorte que se ouvia de muito longe o seu vozerio. Nenhuma porta de Jerusalém era fechada durante a noite da páscoa, por causa dos que iam e vinham constantemente, que eram em número considerável. Contaram-me também os judeus que o número dos presentes na festa da páscoa foi o dobro dos que saíram do Egito, porque eles quiseram dar notícia do número ao rei.

 

“A segunda função era a entrada do sumo sacerdote no santuário. Sobre o serviço mesmo, eles não me falaram, mas, sim, da procissão de ida e de saída do Templo. Algo disso eu vi também com os meus próprios olhos, e me surpreendeu enormemente, a ponto de eu exclamar: ‘Bendito seja Aquele que comunica a Sua glória à Sua nação.’

 

“Sete dias antes daquele dia, que eles chamam dia da expiação e que é o mais importante do ano todo, eles preparam um lugar na casa do sumo sacerdote, e cadeiras para o presidente dos tribunais, o nassi (em hebraico, “o príncipe”), para o sumo sacerdote ou seu substituto (o segan), e para o rei, e além dessas também setenta cadeiras de prata, para os setenta membros do sinédrio. O decano dos sacerdotes levantou-se e proferiu um discurso cheio de fervorosa súplica, em presença do sumo sacerdote. Disse ele:

 

“‘Considera bem diante de quem tu entras, e sabe que se perderes a devoção de tua mente, de imediato cairás morto, e o perdão dos israelitas será baldado. Eis que os olhos de todos os israelitas estão voltados para ti. Investiga tuas obras, acaso cometeste algum leve pecado. Porque há pecados cujo peso iguala ao de muitas boas obras, e somente Deus Todo-Poderoso conhece seu peso. Investiga também as obras dos sacerdotes, teus irmãos de ofício, e faz com que se arrependam. Cale fundo em ti que estás para aparecer diante do Rei de todos os reis, que se assenta sobre o trono do juízo, que enxerga tudo. Como ousas aparecer quando tens o inimigo dentro de ti?’

 

“O sumo sacerdote dá então como resposta: que já se investigou a si mesmo e se arrependeu de tudo o que lhe parecera pecaminoso, que também já reuniu todos os sacerdotes, seus irmãos de ofício no Templo, e os conjurou, por Aquele cujo nome repousa ali, a que cada um confessasse as transgressões de seus irmãos de ofício assim como as suas próprias, e que ele já prescreveu a cada transgressão uma penitência correspondente. O rei lhe falou também com amabilidade, e prometeu cobri-lo de honrarias, assim que ele saísse são e salvo do santuário. Depois disso, foi publicamente proclamado que o sumo sacerdote estava em vias de tomar posse de seu aposento no Templo.

 

“Após o que, aprestou-se o povo em acompanhá-lo, desfilando à sua frente na seguinte ordem, que testemunhei pessoalmente. Primeiro foram os cuja ascendência remontava até aos reis de Israel, em seguida os que estavam mais próximos no sacerdócio, depois seguiram os que eram da casa real de Davi, aliás na mais perfeita ordem, um após o outro, e diante deles se exclamava: ‘Honrai à família de Davi.’ Seguiram-se então os levitas, diante dos quais se exclamava: ‘Honrai à família de Levi.’ Eram em número de 36.000. Nesta ocasião, os levitas substitutos trajaram vestes de seda violeta, mas os sacerdotes, em número de 24.000, se revestiram de vestes de seda branca.

 

“Vieram a seguir os cantores, os músicos, os tocadores de trombeta, depois os fechadores de portas, os preparadores de incenso, os preparadores dos santos véus, os vigias, os guardiães do tesouro, e depois um bando, que era chamado “dos cartofilácios”, depois todos os que estavam empregados no Templo, depois os setenta membros do sinédrio, depois uma centena de sacerdotes com bastões de prata nas mãos para abrir caminho, depois o sumo sacerdote e, atrás dele, os sacerdotes mais antigos, em pares.

 

“Na esquina de cada rua estavam os diretores dos colégios, que lhe falaram assim: ‘Sumo sacerdote, entra em paz. Roga ao nosso Criador por nossa preservação, para que possamos nos ocupar do estudo da sua Lei.’

 

“Quando a procissão chegou ao monte do Templo, fizeram uma parada e rezaram pela preservação dos membros da casa de Davi, depois pelos sacerdotes e pelo Templo, em vista do que, a exclamação do ‘Amém’ foi tão alta, por causa da grande multidão, que as aves que ali sobrevoavam se precipitaram ao chão.

 

“Depois disso o sumo sacerdote inclinou-se perante todo o povo muito respeitosamente e, aos prantos, separou-se de todos eles, e dois sacerdotes substitutos conduziram-no ao seu aposento, onde ele se despediu de todos os sacerdotes, seus irmãos no ministério.

 

“Tudo isso aconteceu durante a procissão até o Templo. Todavia, na procissão que saiu do Templo (após a cerimônia toda ter acabado, sete dias depois), ele foi duplamente honrado, porque a população inteira de Jerusalém desfilou à frente dele, e a maioria com velas ardentes de cera branca, e todos vestidos de branco. Todas as janelas estavam enfeitadas com lenços multicolores e iluminadas de modo deslumbrante, e, segundo me contaram os sacerdotes, durante muitos anos o sumo sacerdote, por causa das grandes multidões e correria, não conseguiu chegar à casa dele antes da meia-noite, porque embora todos eles jejuassem, contudo não iam para casa antes de se persuadirem de que podiam beijar a mão dele.

 

“No dia seguinte, ele preparou um grande banquete, para o qual convidou seus amigos e parentes, e fez desse dia um feriado, por ocasião de seu retorno, são e salvo, do santuário. Depois disso, ele mandou um ourives fazer uma tabuleta de ouro gravada com a seguinte inscrição: ‘Eu, fulano de tal, sumo sacerdote, filho de sicrano e beltrana, e no grande e santo Templo a serviço d’Aquele que ali faz repousar o seu nome, no ano da criação assim e assado. Que Aquele que me agraciou com o exercício daquela função favoreça também o meu filho depois de mim, a desempenhar a função diante do Senhor.’”

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