Parte III Capítulo XIX
Ó Filotéia, ama a todos os homens com um grande amor de caridade cristã, mas não traves amizade senão com aquelas pessoas cujo convívio te pode ser proveitoso; e quanto mais perfeita forem estas relações, tanto mais perfeita será a tua amizade. Se a relação é de ciências, a amizade será honesta e louvável e o será muito mais ainda se a relação for de virtudes morais, como prudência, justiça, fortaleza; mas se for a religião, a devoção e o amor de Deus e o desejo da perfeição o objeto duma comunicação mútua e doce entre ti e as pessoas que amas, ah! Então tua amizade é preciosíssima. É excelente, porque vem de Deus; excelente, porque Deus é o laço que a une, excelente, enfim, porque durará eternamente em Deus. Ah! Quanto é bom amar já na terra o que se amará no céu e aprender a amar aqui estas coisas como as amaremos eternamente na vida futura. Não falo, pois, aqui simplesmente do amor cristão que devemos a nosso próximo, todo e qualquer que seja, mas aludo a amizade espiritual, pela qual duas, três ou mais pessoas se comunicam mutuamente as suas devoções, bons desejos e resoluções por amor ele Deus, tornando-se um só coração e uma só alma.Parte III Capítulo XVIII
Certas amizades loucas entre pessoas de diverso sexo, e sem intenção de casamento, não podem merecer o nome de amizade nem de amor, pela sua incomparável leviandade e imperfeição. São abortos ou, melhor ainda, fantasmas da amizade. Prendem e comprometem os corações dos homens e das mulheres, entrelaçando-os em vãs e loucas afeições, fundadas nessas frívolas comunicações de miseráveis agrados de que acabo de falar. E ainda que estes loucos amores por via de regra vão parar e despenhar-se em carnalidades e lascívias muito baixas e torpes, contudo não é este o primeiro desígnio dos que andam nestas conversas, aliás não seriam já amizades, senão desonestidades manifestas. Algumas vezes passarão até muitos anos sem que entre os que estão contagiados desta loucura haja algo diretamente contrário a castidade do corpo, porque se contentam unicamente com desafogar os corações em anseios, desejos, suspiros, galanteios e outras ninharias e leviandades deste teor, levados por diversos fins. Uns não têm senão o desígnio de saciar o seu coração, dando e recebendo provas de amor, seguindo nisto a sua inclinação amorosa, e estes tais escolhem os amores, consultando apenas o seu gosto e propensão, de sorte que, apenas se lhes depara algum sujeito agradável, sem examinar o seu interior nem o seu procedimento, começam esta comunicação de namorados, e metem-se dentro das miseráveis redes, de que depois muito lhes custará sair. Outros deixam-se levar a isso por vaidade, parecendo-lhes que não é pequena glória agarrar e prender os corações com o amor. E estes, fazendo a sua escolha por ostentação, deitam os seus anzóis, e estendem as suas redes em lugares de bela aparência, elevados, famosos e ilustres. Outros são levados pela sua inclinação amorosa e ao mesmo tempo pela vaidade; porque, embora tenham o coração atreito e inclinado ao amor, não querem porém meter-se a ele senão com alguma vantagem de glória.Parte III Capítulo XVII
O amor ocupa o primeiro lugar entre as paixões; ele reina no coração e dirige todos os seus movimentos; apodera-se de todos eles, comunicando-lhes a sua natureza e as suas impressões; torna-nos semelhantes àquilo que amamos. Conserva, Filotéia, o teu coração livre de todo o amor mau, porque se tornaria imediatamente um coração mau. O mais perigoso de todos os amores é a amizade, porque os outros amores podem afinal existir sem se comunicar; mas a amizade é fundada essencialmente nesta redação entre duas pessoas, sendo quase impossível que as suas boas e as suas más qualidades não passem de uma para a outra. Nem todo o amor é amizade, pois que podemos amar sem ser amados; neste caso só há amor, mas não há amizade; porque a amizade é um amor mútuo, e se o amor não é mútuo, não pode ser chamado amizade. E ainda não é bastante que o amor seja mútuo, é necessário também que as pessoas que se amam conheçam esta afeição recíproca, de modo que, se a ignorarem, têm amor, mas não têm amizade. Em terceiro lugar requer-se que haja alguma comunicação. entre as pessoas que se amam, a qual é ao mesmo tempo o fundamento e o sustentáculo da amizade.Parte III Capítulo XVI
Se és de fato pobre, Filotéia, esforça-te, então, por sê-lo também de espírito; faze da necessidade uma virtude e negocia com esta pedra preciosa da pobreza segundo o seu alto valor. O mundo não o conhece e não sabe estimar o seu valor; entretanto, tem um brilho admirável e é dum grande preço. Tem um pouco de paciência; em tua pobreza estás em muito boa companhia. Nosso Senhor, a Santíssima Virgem, sua Mãe, os apóstolos, tantos santos e santas foram pobres e, podendo ter riquezas, as desprezaram. Quantas pessoas que podiam ocupar no mundo um lugar saliente, apesar de todas as contradições dos homens, foram procurar com avidez nos conventos ou nos hospitais a santa pobreza! Muito se esforçaram por achá-la e bem sabes quanto o custou a Santo Aleixo, a Santa Paula, a São Paulino, a Santa Angela e tantos outros. E a ti, Filotéia, ela se apresenta espontaneamente; nem é preciso que a procures e te esforces por adiá-la; abraçá-la; abraça-a, pois, como a querida amiga de Jesus Cristo, que nasceu, viveu e morreu na maior pobreza.Parte III Capítulo XV
O célebre pintor Parrásio desenhou um retrato do povo ateniense, que foi tido em conta de muito engenhoso; porque, para pintá-lo com todos os traços do seu caráter leviano, variável e inconstante, ele representou em diversas figuras do mesmo quadro os caracteres opostos da virtude e do vício, da cólera e da brandura, da clemencia e da severidade, do orgulho e da humildade, da coragem e da covardia, da civilidade e da rusticidade. Dum modo semelhante, Filotéia, eu queria que teu coração unisse a riqueza com a pobreza, um grande cuidado com um grande desprezo dos bens temporais. Esforça-te ainda mais que os filhos do mundo por conservar e aumentar os teus bens; pois, não é verdade que aqueles a quem um príncipe incumbiu de cuidar de seus parques, os cultivarão c procurarão tudo o que os possa embelezar, com muito maior diligencia do que se fossem seus próprios? E por que isso? É porque os consideram como propriedade de seu príncipe, de seu rei, a quem querem agradar.Parte III Capítulo XIV
Malditos, pois, são os ricos de espírito, porque deles é a miséria do inferno. Rico de espírito é todo aquele que tem o espírito em suas riquezas ou a ideia das riquezas em seu espírito; pobre de espírito é todo aquele que nenhuma riqueza tem em seu espírito nem tem o seu espírito nas riquezas. Os alciões fabricam seus ninhos dum modo admirável; a sua forma é semelhante a uma maçã, apenas com uma pequena abertura em cima; colocam-nos a beira do mar e tão firmes e impenetráveis são que, subindo as vagas a praia, nenhuma gota d'água pode entrar, porque se conservam boiando e flutuando com as ondas; permanecem no meio do mar, sobre o mar e senhores do mar.Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.