“Foi feito por nós maldição, porque está escrito: Amaldiçoado é todo aquele que é suspenso no lenho” (Gl 3,13).
O Senhor revelou um dia a Santa Margarida de Cortona que durante sua vida inteira não experimentou uma só consolação sensível. A tristeza que ele experimentou no jardim de Getsêmani era tão grande, que bastaria para tirar-lhe a vida, e essa tristeza ele não a sofreu só, então, mas o afligiu sempre desde o primeiro instante de sua encarnação, pois todas as penas e ignomínias que ele deveria suportar até à morte lhe estavam sempre presentes.“Grande como o mar é a tua dor” (Lm 2,13).
Foi uma vez vista na terra este grande portento: o Filho de Deus, o rei do céu, o senhor do universo, desprezado como o mais vil de todos os homens. Diz Santo Anselmo que Jesus Cristo na terra quis ser tão desprezado e humilhado que os desprezos e as humilhações que ele recebeu não podiam ser maiores. Ele foi tratado como desprezível: “Não é este o filho do carpinteiro?” (Mt 13,55); foi postergado por sua origem: “De Nazaré pode vir alguma coisa boa?” (Jo 1,46); foi tido por louco: “Tem demônio e perdeu o juízo; por que o estais ouvindo?” (Jo 10,20); foi considerado como um glutão e amigo do vinho: “Eis um homem comilão e que bebe vinho” (Lc 7,34); foi julgado feiticeiro: “É em nome do príncipe dos demônios que ele expele os demônios” (Mt 9,34); passou por herético: “Não dissemos com toda a razão que és um samaritano?” (Jo 8,48).“Nós o vimos... desprezado e como o último dos homens, como o homem das dores” (Is 53,2).
Assim o profeta Isaías descreve nosso Redentor. Salviano, considerando os padecimentos de Jesus Cristo, escreve:“Varão das dores e experimentado nas enfermidades” (Is 53,3).
Ó amor de meu Jesus, não sei como hei de apelar-te: mui doce vos mostrastes para conosco, ó Jesus, amando-nos tanto depois de tantas ingratidões, e mui cruel para convosco mesmo, sobrecarregando-vos com uma vida cheia de dores e uma morte amarga para pagar os nossos pecados. Santo Tomás escreve que Jesus para salvar-nos do inferno se submeteu à dor em grau máximo, ao vitupério em grau supremo. Bastaria que ele sofresse qualquer dor para satisfazer por nós a justiça divina; quis, porém, sofrer as injúrias mais vis e as dores mais agudas para nos fazer compreender a malícia de nossas culpas e o amor que nutria por nós em seu coração.“Ó amor, não sei como hei de chamar-te, se doce, se cruel, pois pareces ser ambas as coisas”.
Comumente entendem os intérpretes por tal fiador a Jesus Cristo, que, vendo-nos incapazes de satisfazer a justiça divina por nossos pecados, se ofereceu voluntariamente a pagar por nós, e de fato pagou as nossas dívidas com seu sangue e com sua morte. Não era suficiente o sacrifício das vidas de todos os homens para compensar as injúrias feitas por nós à divina Majestade; era necessário que a ofensa feita a um Deus fosse satisfeita só mesmo por um Deus, o que realizou Jesus Cristo:“Não te esqueças nunca da graça que te fez o que ficou por teu fiador, porque ele expôs a sua alma por ti” (Eclo 29,20).
Nosso Salvador, pagando pelo homem como fiador com seu sangue, obtém-lhe por seus merecimentos a graça de contrair um novo pacto com Deus, de lhe ser concedida a graça e a vida eterna se ele observar a lei divina. E este acordo Jesus como ratifica na instituição da Eucaristia, dizendo:“Em tanto Jesus foi feito fiador de melhor aliança” (Hb 7,22).
Com isso ele queria significar que aquele cálice com seu sangue era o instrumento ou a escritura de segurança pela qual se firmava um novo pacto entre Deus e Jesus Cristo, por meio do qual se concedia a graça e a vida eterna a todos os homens que lhe permanecem fiéis.“Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue” (1Cor 11,25).
Em todas as perseguições, calúnias, desprezos, privações de bens e de honras que sofremos nesta vida, quem é que melhor nos pode fortalecer para sofrermos com paciência e resignação, senão Jesus Cristo desprezado, caluniado e pobre, que morre nu e abandonado de todos em uma cruz? Nas enfermidades, que coisa há que mais nos console do que a vista de Jesus crucificado? Quando nos achamos doentes, repousamos num leito bem cômodo; mas Jesus, quando na cruz, onde devia morrer, teve por leito um tosco de madeiro, no qual esteve suspenso por três cravos, e por travesseiro, para apoiar a cabeça ferida, aquela coroa de espinhos que não cessou de o atormentar até à morte. Quando estamos enfermos, temos ao redor do leito parentes e amigos que se compadecem de nós e nos procuram distrair; Jesus morre no meio de inimigos que, mesmo na ocasião em que ele agonizava e estava a expirar, o injuriavam e escarneciam, dando-o como um malfeitor e sedutor. Nada há, certamente, como a vista de Jesus crucificado para aliviar um enfermo nos seus sofrimentos, especialmente quando ele se vê abandonado pelos outros na sua doença. Unir então as suas penas com as de Jesus Cristo é o maior alívio que pode experimentar um pobre enfermo.“Entregou-se a si mesmo por nossos pecados” (Gl 1,4).
Meditação XV. Para o Sábado Santo
1. “Estava, porém, junto à cruz de Jesus sua Mãe” (Jo 19,25). Consideremos nesta rainha dos mártires uma espécie de martírio mais cruel que todo outro martírio, uma mãe vendo morrer um filho inocente, justiçado num patíbulo infame: “Estava em pé”. Desde a hora em que Jesus foi preso no horto, os discípulos o abandonaram; não, porém, sua Mãe: ela o assiste até vê-lo expirar diante de seus olhos. “Estava junto dele”. As mães fogem quando vêem seus filhos padecendo e não os podem socorrer: estariam prontas a sofrer as dores em lugar dos filhos, mas quando os vêem padecer sem poder auxiliá-los, não suportam tal pena e por isso fogem e vão para longe. Maria, não; ela vê o Filho no meio dos tormentos, vê que as dores lhe roubam a vida, mas não foge, nem se afasta, antes se encosta à cruz na qual o Filho está morrendo. Ó Mãe das dores, não me desdenheis e permiti que vos faça companhia na morte do vosso e do meu Jesus.Meditação I. Para o Sábado da Paixão
1. Avizinhando-se o tempo de sua Paixão, nosso Redentor deixa Betânia para se dirigir a Jerusalém. Achando-se perto dessa ingrata cidade, Jesus a contempla e chora. “Vendo a cidade, chorou sobre ela”. Chora, prevendo sua ruína em conseqüência do grande crime que aquele povo iria em breve cometer, tirando a vida ao Filho de Deus. Ah, meu Jesus, chorando então sobre aquela cidade, choráveis também sobre a minha alma, vendo a ruína que eu mesmo me procurava com meus pecados, obrigando-vos a condenar-me ao inferno depois de haverdes morrido para me salvar. Ah, deixai-me chorar o grande mal que me fiz, desprezando a vós, sumo bem, e tende compaixão de mim.Capítulo XI
O mistério da paciência.
1. Falar de paciência e de sofrer é tratar de uma coisa que os amantes do mundo não praticam e nem sequer entendem. Só as almas que amam a Deus e compreendem e põem em prática. São João da Cruz dizia a Jesus Cristo:E Santa Teresa exclamava freqüentemente:“Senhor, eu nada mais vos preço que padecer e ser desprezado por vós”.
Santa Maria Madalena de Pazzi:“Ó meu Jesus, ou sofrer ou morrer”.
Eis como falam os santos extasiados por Deus, e assim falam porque sabem muito bem que uma alma não pode dar uma prova mais segura de seu amor para com Deus do que padecendo voluntariamente para dar-lhe gosto.“Senhor, sofrer e não sofrer”.
Capítulo X
Só nele há salvação.
1. “Não há salvação em nenhum outro” (At 4,12). São Pedro diz que toda a nossa salvação está em Jesus Cristo, que por meio de sua cruz, na qual sacrificou por nós sua vida, nos abriu o caminho da esperança de recebermos todos os bens de Deus, se formos fiéis a seus preceitos. Ouçamos o que diz da cruz São João Crisóstomo:A cruz, isto é, Jesus crucificado, é a esperança dos fiéis, porque, se não tivéssemos Jesus Cristo, não haveria salvação para nós, é o arrimo para os coxos, nós todos somos coxos no atual estado de corrupção e, fora da força que nos comunica a graça de Jesus Cristo, não temos outro para trilhar o caminho da salvação; é a consolação dos pobres, isto é, de nós todos, pois tudo o que temos o temos de Jesus Cristo; é a destruição dos soberbos, já que os sequazes de Jesus Cristo não podem ser soberbos vendo-o morto, qual malfeitor, na cruz; é o triunfo sobre os demônios, pois só o sinal da cruz basta para afugentá-los; é a mestra dos principiantes: que belos ensinamentos não dá a cruz àqueles que começam a palmilhar o caminho da salvação; é o lema dos navegantes: oh! como a cruz nos guia nas tempestades da vida presente: é o porto dos que perigam: os que se acham em perigo de perder-se pelas tentações ou fortes paixões encontram um porto seguro recorrendo à cruz; é conselheira dos justos: quantos santos conselhos não dá a cruz nas tribulações da vida; é o repouso para os aflitos: que coisa poderá aliviar mais os atribulados do que contemplar a cruz em que padece um Deus por seu amor? É o médico dos enfermos, que, abraçando a cruz, ficam curados de todas as chagas da alma; é a glória dos mártires, pois sua maior glória consistia em se tornarem semelhantes a Jesus Cristo, rei dos mártires.“A cruz é a esperança dos cristãos, o arrimo dos coxos, a consolação dos pobres, a destruição dos soberbos, o triunfo sobre os demônios, a mestra dos jovens, o leme dos navegantes, o porto para os que estão em perigo, a conselheira dos justos, o descanso dos atribulados, o médico dos enfermos, a glória os mártires” (Hom. de cruc. t. 3).