Por Dom Henrique Soares da Costa
Amigo, vai aqui um pouco de catequese para que nossas ideias sejam realmente católicas, fieis à constante Tradição Apostólica presente na Igreja de Cristo:
A Bíblia não é um livro único; é uma coleção de 73 escritos, produzidos num arco de cerca de 1.300 anos.
Neles, nesses livros, está contida a Palavra de Deus, porque foi o próprio Espírito do Senhor quem, misteriosamente, como só Ele sabe fazer, inspirou tudo quanto os autores sagrados escreveram.
É um incrível e admirável mistério: por trás das palavras humanas dos autores daqueles textos está a Palavra única do próprio Deus!As palavras da Sagrada Escritura são tão humanas: há erros gramaticais, erros de história, erros de ciência; há o modo de escrever próprio de cada autor humano e até mesmo o seu modo de pensar, limitado pelo tempo e a cultura a que pertenceram, pode ser descoberto naqueles dizeres tão humanos… Na grande maioria dos casos, nem mesmo os autores sagrados imaginavam que o que estavam escrevendo eram textos inspirados pelo Senhor…
Foi o Povo de Israel, no tempo da Antiga Aliança e, depois, nestes tempos da Nova e eterna Aliança, foi a Igreja católica, inspirada pelo Espírito do Cristo Senhor, que permanece nela e a conduz sempre mais à verdade plena (cf. Jo 16,12-15; 1Tm 3,15), quem foi discernindo quais escritos eram inspirados por Deus e quais não eram…
Este trabalho de discernimento de quais eram os livros inspirados por Deus, dentre os tantos que os cristãos escreveram no período apostólico, foi feito pela santa Igreja a partir do século II, século após século, e foi autoritativamente determinado no Concílio de Trento. E a Igreja, Esposa do Cristo, fez tal discernimento serenamente, pois sabe muito bem que o seu Senhor não a abandona (cf. Mt 16,19; 18,18; 28,19-20; Jo 14,18).
Só a Igreja tem a autoridade de fazer esse discernimento; e ela o fez, com a autoridade que o Senhor mesmo lhe concedeu e a assistência divina do Espírito Santo que Cristo Jesus lhe garantiu.
De modo geral, seguiram-se os seguintes critérios: eram inspirados pelo Espírito de Deus (1) os escritos tidos como ligados diretamente à Tradição Apostólica, mais especificamente, os escritos considerados de origem direta ou indireta de um Apóstolo e (2) os escritos proclamados na Liturgia sobretudo das grandes Igrejas da Antiguidade, de modo especial Roma, Alexandria e Antioquia e as demais Igrejas apostólicas, isto é, as comunidades fundadas diretamente pelos Apóstolos ou seus auxiliares, os varões apostólicos.
Foi assim que a santa Mãe católica, com o instinto de fé que o Cristo Senhor lhe concede na força do Santo Espírito, fez este discernimento tanto dos livros do Antigo quanto do Novo Testamento. Por isso mesmo, alguns livros do Antigo Testamento que os judeus não consideram inspirados por Deus – e isto por motivo nacionalista e por polêmica com os cristãos -, a Igreja desde cedo os utilizou e os considerou como sendo Palavra de Deus, sendo vários deles citados no Novo Testamento direta ou indiretamente.
Mas, que se esteja bem atento: Deus não Se revelou primeiramente na Bíblia! Revelou-Se na história do povo de Israel e, na plenitude dos tempos, revelou-Se de modo pleno na Pessoa de Jesus Cristo, o próprio Filho eterno feito carne, feito homem.
A Palavra de Deus por excelência não é a Bíblia; é Jesus Cristo, o Verbo, a Palavra que Se fez carne e habitou entre nós!
A Bíblia nos traz o testemunho dessa revelação: ela pode ser chamada Palavra de Deus somente porque nos traz a Palavra que é Jesus; de modo que nas palavras da Bíblia, encontramos a Palavra de Deus e esta Palavra é o nosso bendito Salvador, Jesus Cristo, o Verbo eterno feito carne!
Do Gênesis ao Apocalipse, a mensagem última das Escrituras Sagradas é sempre Jesus: Jesus prometido, preparado e anunciado no Antigo Testamento; Jesus aparecido, entregue, contemplado, aprofundado, adorado e proclamado no Novo Testamento. Toda a Escritura santa é uma pedagogia para o Cristo, todas as palavras das Escrituras condensam-se em Cristo, toda e cada passagem da Escritura em Cristo encontra sua clareza, seu sentido último. Como diziam os medievais, Cristo é a Palavra abreviada, concisa, desdobrada nas palavras das santas Escrituras. Como dizia Santo Elredo de Rieval:
“Jesus é a Palavra breve, mas que diz tudo e tudo leva à perfeição sobre a terra, ponde fim à Lei e aos profetas com o duplo mandamento do amor”
São João da Cruz, num de seus escritos, assim imagina o Pai nos falando:
“Já te disse todas as coisas em Minha Palavra; põe os olhos unicamente Nele; porque Nele tenho dito e revelado tudo, e Nele encontrarás ainda mais do que desejas saber. Este é o Meu Filho amado: escutai-O”
Assim sendo, não cremos na Bíblia; cremos em Jesus e só a Ele adoramos! Temos as Escrituras por revelação do Senhor precisamente por causa de Jesus, porque Ele disse que elas dão testemunho Dele:
“Vós perscrutais as Escrituras porque julgais ter nelas a Vida eterna; ora, são elas que dão testemunho de Mim!” (cf. Jo 5,39)
Não amamos Jesus por causa da Bíblia; amamos a Bíblia por causa de Jesus! Como também não cremos na Igreja por causa da Bíblia, mas cremos que a Bíblia é Palavra de Deus porque a Igreja nos ensinou assim! Cremos na Igreja por causa de Jesus e consideramos as Escrituras como Palavra de Deus por causa da Igreja!
Jesus Cristo! Ele o centro, é Ele a Palavra única do Pai!
Quando escutamos, quando lemos as Escrituras e nelas meditamos, em última análise é Jesus mesmo que procuramos, é a Ele que encontramos, com Sua salvação, Sua Vida, Sua plenitude, aquela da qual recebemos graça sobre graça! No século XII, o grande teólogo Hugo de São Vítor exclamava:
“Toda a divina Escritura constitui um único livro e este único livro é Cristo, porque toda a Escritura fala de Cristo e encontra em Cristo o seu cumprimento”
Por isso, no caminho de Emaús, em cada Missa e até mesmo a cada vez que entramos em contado com a Sagrada Escritura, Corpo verbal do Senhor imolado e ressuscitado, Jesus mesmo nos fala Dele e nos revela no texto sagrado tudo quanto diz respeito a Ele e ao plano de salvação do Pai que Ele, o Filho amado, veio realizar. Deste modo, quem frequenta a Escritura e em cada parte dela não encontra o Cristo, não a compreende, tendo o entendimento encoberto por um véu que impede de saborear o sentido último desses textos sagrados.
Assim é que a Igreja, impelida pelo Santo Espírito, escutando as Escrituras cheias do Santo Paráclito, escuta o próprio Deus que nos fala em Jesus, o Verbo único e eterno, e tudo quanto ali está escrito torna-se uma Palavra viva para nós, tudo quanto Deus revelou na história do Seu Povo e maximamente em Jesus Cristo, torna-se presente na vida da Igreja, sobretudo nos sacramentos, e na nossa, que somos membros do Seu Corpo.
Pensando bem, é impressionante pensar que Deus nos fala: fala à Sua Igreja, fala a cada um de nós, na Sua Palavra que é Jesus Cristo Senhor nosso (cf. Hb 1,1-2)!
Mas, a Escritura somente pode ser compreendida retamente quando acolhida, lida, ouvida na Tradição Apostólica, conservada íntegra na Igreja católica pela ação do Santo Espírito. O próprio Novo Testamento todo não é senão a Tradição Apostólica colocada por escrito e nela interpretada continuamente pela Igreja santa e apostólica e católica! Até mesmo o Antigo Testamento, somente à luz do Cristo anunciado segundo a Tradição dos Apóstolos, chega ao seu sentido pleno!
É uma reciprocidade bendita e impressionante, uma circularidade admirável: a Tradição Apostólica, presente na Igreja, interpreta retamente as Escrituras, que fora dela, seriam texto disponível a qualquer arbitrariedade de intérpretes aleatórios e, por outro lado, as Santas Escrituras ancoram e fundamentam a Tradição viva, sempre presente, de geração em geração, na vida da Igreja! Dito com outras palavras: a Tradição Apostólica é o ar, é o ambiente, é o meio vital no qual as Escrituras são vivas e retamente interpretadas (na Igreja santa católica e apostólica as Escrituras estão em casa!) e as Escrituras são o ancoradouro e o critério para que a Igreja bem interprete de modo vivo e dinâmico, sempre progressivo (cf. Jo 16,12-15), a Tradição Apostólica, que nos testemunha continuamente a fé transmitida uma vez por todas aos santos (cf. Jd 3).
Alguns têm a ilusão de interpretar as Escrituras de modo neutro, ao pé da letra, fora de uma tradição! É uma triste ilusão, uma estreita cegueira, uma ingenuidade tremenda! Os textos sagrados sempre são interpretados por nós a partir de ideias e valores que já trazemos, nossos e do grupo no qual estado inseridos! É totalmente impossível fugir disto!
A questão é que quem lê e escuta e guarda a Palavra Santa na comunhão da Igreja una, santa, católica e apostólica, guarda as Escrituras no seu autêntico sentido, garantido pelo Espírito de Cristo, que não permite que a Igreja erre na sua fé (cf. Mt 16,19; Jo 16,12-15; 1Tm 3,15). Quem foge dessa Tradição Apostólica, lê e interpreta a Palavra a partir de tradições humanas, de mestres que inventaram escolas de interpretação de sua própria cabeça e, portanto, fora do seu ambiente natural, que é a Igreja católica e apostólica. Assim, abendona-se a Tradição Apostólica e cai-se nas tradições deste ou daquele grupo, cada um interpretando do seu modo e achando que está fazendo “A Interpretação”! Por exemplo: a percepção torta de que só a fé salva, de que as obras não contam para a salvação, a insistência anacrônica na guarda do sábado, a proibição de transfusão de sangue, o litígio ultrapassado e estulto por causa de imagens, a grave negação do Batismo de crianças, a falta de consciência do significado sacramental e sacrifical da Eucaristia… Tudo isto deriva de interpretações que têm fundamento não no texto bíblico, mas em tradições humanas já determinadas de como o texto deve ser lido! Em outras palavras: consciente ou inconscientemente, esta gente lê o texto com um “pre-texto” inventado por mestres humanos, fundadores de tradições humanas; e, ingenuamente, acham que estão interpretando com toda a fidelidade! ! Tanto são tradições prévias à leitura do Texto Santo que, nesses grupos religiosos, se alguém interpretar o texto de modo diverso daquele que o grupo determina, é obrigado a deixar o grupo, porque não está interpretando a Escritura segundo a TRADIÇÃO daquele grupo!
Mais uma coisa: a Escritura Sagrada revela o Rosto do Senhor e desvela Seu amor divino a quem a escuta com um coração fiel e humilde.
O curioso, o soberbo, o descuidado, nada encontrará a não ser uma coleção de textos antigos, do passado… No entanto, quando escutamos e lemos essas Santas Palavras – que trazem a Palavra que é Jesus Cristo Senhor – em docilidade ao Santo Espírito e em comunhão com a santa Igreja, então, a Escritura torna-se doce como o mel, luminosa como o sol do meio-dia, profunda como o céu, vivificante no Santo Espírito e cortante como espada de dois gumes.
Mas, atenção: a Escritura não foi dada a cada pessoa de modo privado, individual… Como nela mesma está escrito: ela não se presta a interpretações privadas (cf. 2Pd 1,19-21)! A Sagrada Escritura foi dada à Igreja e somente é Palavra viva na vida da Igreja Povo de Deus! Ouvir ou ler a Escritura fora da mente e do coração da Igreja é ser condenado a não colher seu sentido unitário e profundo.
Ela é como um álbum e família, o álbum da nossa família, pois os textos foram escritos por nossos Pais na fé tanto os do Antigo Povo quanto os primeiros membros da santa Igreja. Assim, alguém estranho à família pode pegar as mesmas fotos, olhá-las, saber os lugares e as situações documentados nas fotografias… Mas, somente quem é da família sentirá o coração vibrar, somente quem vivenciou aquelas histórias, com aquelas tonalidades e acentuações pode realmente compreender o sentido das fotos…
É assim com a Bíblia: nascida na Igreja, confiada à Igreja para guardá-la fielmente, ouvi-la atentamente, meditá-la piedosamente, amá-la fervorosamente, celebrá-la na Eucaristia (Palavra feita carne na Carne de Cristo) e levá-la ao mundo como anúncio e testemunho de Jesus Salvador, somente na Igreja pode ser colhida em todo o seu sentido e verdade. Fora da Igreja, a Escritura é palavra feita pedaços, às vezes, feita confusão, é texto submetido ao capricho de mil pretextos, que o desvirtua e faz esconder mais que revelar o verdadeiro rosto de Jesus.
Para terminar, o desafio: Experimente! Tome a Escritura (pode ser a leitura da Missa de cada dia), escute-a com o coração, medite-a com amor e procure ouvir o que o Senhor diz à Igreja e a você. Sua vida encher-se-á de nova luz – aquela luz que é o próprio Cristo, Palavra viva e vivificante do Pai!