Só quem desconhece o significado da palavra «felicidade» é perigosamente infeliz. É insuportável a vida apenas para aqueles que ignoram o motivo porque vivem; os homens, em tal estado de alma, equacionam, confundem felicidade com prazer (o que não é a mesma coisa) e identificam alegria com prurido das extremidades nervosas (o que não é verdade). Coisas que sejam do exterior, nunca nos trazem paz interior. Quanto mais persistentemente se procurar a satisfação e a finalidade da existência em alguma coisa fora do nosso domínio, tanto mais precária ela será e mais sujeito se estará a desilusões.
Há dois movimentos para a felicidade. O primeiro é o nosso afastamento do exterior… de uma excessiva absorção pelas coisas do mundo. O segundo movimento é muito mais profundo: é uma ascensão do que é inferior em nós para o que é superior, do nosso egoísmo para o nosso Deus. O homem moderno tem experimentado o primeiro movimento; as coisas exteriores têm-se transformado para ele em outras tantas fontes de sofrimento. Guerras, crises, inseguranças e vacuidade da vida têm aterrado tanto os homens, que procuram eliminar os seus contatos com o mundo exterior e começam a procurar satisfação no seu interior, embora limitado. É esta a razão por que a psiquiatria está a ter tamanha relevância: alarmada com o que encontra fora de si, a alma moderna recolheu às sombras e começou a procurar contentamento na análise do subconsciente, das ansiedades e receios, dos desalentos e fracassos.
Mas tal auto-recalcamento pode representar uma prisão, se se estiver fechado a sós com o próprio eu, porque não há colete de forças mais apertado que o homem encerrado na sua própria pessoa.
A cura nunca se fará, usando um escalpelo psicanalítico, para libertar o íntimo pus moral e vê-lo depois escorrer; seria isto um ato mórbido para o doente e para o clínico. O remédio consiste, antes, em descobrir por que se está só e temeroso da solidão — de fato a maior parte das pessoas tem medo de estar só, sem saber por que essa sensação as amedronta.
O problema dos nossos dias é saber como encontrar a paz interior, e é nisto que o século XX se diferencia do século XIX. Há cem anos, olhavam os homens para o mundo exterior, em busca de respostas para os seus problemas: adoravam a ciência ou a natureza, e esperavam que a felicidade viesse do progresso, da política ou da riqueza. O homem do século XX está agastado consigo mesmo. Está ainda mais preocupado com o problema sexual do que com o próprio prazer sexual; está mais interessado na atitude mental a tomar perante ele, do que na sua satisfação física e na procriação dos filhos.
Absorvem-no os seus próprios valores, disposições e atitudes.
Embora, nos nossos dias, se tenham escrito muitos disparates da vida interior do homem, o que é certo é que o século XX está mais perto de Deus, do que o século XIX. Vivemos nas vésperas de um dos maiores renascimentos espirituais da história humana. As almas, quando se sentem mais afastadas de Deus, a ponto de desesperarem, é então que, por vezes, mais próximas estão d’Ele. A uma alma vazia, pode o Divino enchê-la; uma alma perturbada pode o Infinito pacificá-la. Mas uma alma apenas preocupada consigo mesma e, além disso, orgulhosa, é inacessível à graça.
O homem moderno foi humilhado: nem as suas vaidosas esperanças de progresso, nem a ciência resultaram, como esperava. Não chegou ainda ao ponto de se humilhar a si mesmo. Está ainda preso a si mesmo e o seu horizonte não vai além de si mesmo. Podem os psicanalistas esquadrinhar-lhe os pensamentos, por mais alguns anos; mas não vem longe o tempo, em que os homens hão de pronunciar um aflitivo apelo a Deus, para os elevar da cisterna vazia do seu próprio eu. Santo Agostinho sabia-o muito bem, quando disse:
«Os nossos corações estão inquietos, enquanto não descansarem em Ti»
É por esta razão que, embora nos ameace uma guerra catastrófica, os tempos não são tão maus como parecem. O homem moderno não se voltou ainda para Deus, mas, ao menos, voltou-se para si mesmo. Com a graça de Deus, mais tarde, ultrapassar-se-á e transcender-se-á a si mesmo, e já agora o está tentando. Nunca se procurou algo que não se soubesse que existia; atualmente, a alma desiludida anda à procura de Deus como da lembrança de um nome que conhecia.
À diferença que existe entre os que encontraram a Deus na fé e os que ainda O estão buscando, é a mesma que existe entre a esposa, que é feliz no gozo da companhia do seu marido, e a rapariga que não sabe se jamais o encontrará e, por isso, talvez tente atrair os homens por meios ilícitos. Os que procuram prazeres, fama e riquezas andam todos em busca do Infinito, mas estes caminheiros estão ainda nos arrabaldes da Cidade Eterna. Os que têm fé penetraram já no seu real lar do Infinito e encontraram «a paz, que o mundo não pode dar». Assim como alguém pode descortinar, a grande distância, um vulto, e, contudo, não reconhecer nele o amigo, há muito tempo perdido, assim também se pode sentir a necessidade do Infinito e desejar o perene êxtase de amor, e nisso não reconhecer Deus.
Por mais perverso que se seja, ninguém há que esteja sujeito aos prazeres ilícitos e não tenha consciência da sua sujeição e da sua escravidão. Talvez seja esta a razão por que os alcoólicos muitas vezes são mentirosos; os seus lábios negam uma escravidão que o seu viver tão visivelmente testemunha. Pouco desejosos de confessar o seu erro, esses homens recusam ainda admitir a Divina Verdade; a sua tristeza, porém, e a sua vacuidade, finalmente, conduzi-los-ão ao Deus de misericórdia.
Está, hoje, o nosso mundo exterior em dificuldades desesperadas, mas o mundo interior do homem de modo algum o damos por perdido. O mundo da política e da economia é incapaz de acompanhar o desenvolvimento psicológico do homem. O mundo está longe de Deus, mas os corações humanos não. Eis porque a paz virá menos das mudanças políticas que do próprio homem. Impelido pelo tumulto exterior a refugiar-se na própria alma, o homem elevar-se-á acima de si mesmo para a felicidade para que foi criado.
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(SHEEN, Dom Fulton. Rumo à Felicidade – WAY TO HAPPINESS. Tradução de Dr. A. J. Alves das Neves, pároco de São Pedro da Cova. Livraria Figueirinhas, Porto, 1956, p. 16-20)