Sciens Jesus quia omnia consummata sunt, ut consummaretur Scriptura, dixit: Sitio – “Sabendo Jesus que tudo estava cumprido, para se cumprir ainda a escritura, disse: Tenho sede” (Jo 19, 28)
Sumário. É dupla a sede que sofre Jesus moribundo: a sede corporal, causada pelo cansaço das caminhadas, pela tristeza interior e pelo muito sangue derramado. Outra sede espiritual, isso é, o desejo da salvação eterna de todos os homens, que O faz anelar maiores tormentos, se for preciso. Ah! Se nos lembrássemos sempre desta dúplice sede do Senhor, não procuraríamos delicadezas supérfluas e esforçar-nos-íamos por reconduzir as almas a Deus. Longe de nos queixarmos das tribulações, desejá-las-íamos maiores por amor de Jesus Cristo.
I. Quando Jesus estava próximo à morte, disse: Tenho sede — Sitio, a fim de nos manifestar a grande sede corporal que experimentava, quer pelo cansaço causado pelas muitas caminhadas, quer pela tristeza interior, mas principalmente pelo muito sangue derramado no horto, na flagelação, na coroação de espinhos e finalmente sobre a cruz, onde corria abundantemente das chagas das mãos e dos pés, como de quatro fontes. — Jesus Cristo quis padecer este tormento pungentíssimo para que compreendamos quão caro lhe custaram a nossa gulodice e intemperança, causadoras de tantas queixas e murmurações nas famílias e nas comunidades sob pretexto de saúde e de necessidade.
Mais do que pela sede corporal foi Nosso Senhor aflito atormentado por uma sede espiritual, nascida, como escreve São Lourenço Justiniani, da fonte do amor: Sitis haec de amoris fonte nascitur. Com efeito, porque é que Jesus, que não faz menção das outras penas imensas padecidas sobre a cruz, se queixa unicamente da sede? Ah, exclama Santo Agostinho, a sede de Jesus Cristo é o desejo de nossa salvação. Jesus, assim acrescenta São Gregório, ama as nossas almas com excesso de amor e por isso almeja que tenhamos sede dele: Sitit sitiri Deus.
São Basílio dá mais outra explicação e diz que Jesus Cristo manifesta a sua sede para nos dar a entender que pelo amor que nos tem, morria com o desejo de padecer por nós, mais ainda do que tinha padecido: O desiderium Passione maius! Meu irmão, lembremo-nos muitas vezes da dúplice sede de Jesus Cristo. Então não procuraremos mais as delicadezas supérfluas e nos esforçaremos por reconduzir as almas ao seio paternal de Deus; em vez de nos lamentarmos das cruzes que Ele nos envia, aceitá-las-emos com resignação e com desejo de carregarmos por seu amor outras cruzes mais pesadas.
II. Qual foi o alívio que os judeus deram à sede ardente do Redentor? Somente aquele que Davi predissera tanto tempo antes: Dederunt in escam meam fel, et in siti mea potaverunt me aceto (1) — “Deram-me na minha comida fel e na minha sede me propinaram vinagre”. Ó barbaridade inaudita! Exclama São Lourenço Justiniani, ó crueldade sem limites Para apagar a sede a um pobre moribundo, dá-se vinagre misturado com fel! E o povo que trata assim Nosso Senhor é o mesmo que por Ele foi tantas vezes beneficiado com água milagrosa!
Mas de igual maneira e com a mesma ingratidão apagam a dúplice sede de Jesus Cristo os cristãos que pecam por intemperança e que, em vez de reconduzirem as almas ao regaço paterno de Deus, as afastam d’Ele pelos seus maus exemplos. Se no passado nós também temos sido do número de tais ingratos, peçamos perdão ao Senhor e roguemos-Lhe nos dê a graça de O amarmos mais fervorosamente para o futuro.
Ah, meu Senhor, Vós tendes sede de mim, verme desprezível, e eu não terei sede de Vós, meu Deus infinito? — Suplico-Vos pela sede que padecestes sobre a cruz, dai-me uma grande sede de Vos amar e de Vos agradar em tudo! Prometestes dar-nos tudo quanto Vos pedirmos: Petite et accipietis (2). Eis o único favor que Vos peço: o dom de vosso amor. Reconheço minha indignidade, mas a glória de vosso Sangue seja o fazer-Vos amar por um coração que Vos tem desprezado tanto tempo; o abrasar no fogo do amor a um pecador todo cheio de lodo do pecado. Mais do que isto é o que fizestes morrendo por mim.
Ó Senhor infinitamente bom, quisera amar-Vos tanto quanto mereceis. Comprazo-me no amor que Vos têm as almas, vossas diletas, e mais no amor que tendes a Vós mesmo; com ele uno o meu amor miserável. — Amo-Vos, ó Deus eterno, amo-Vos, ó amabilidade infinita. Fazei que eu cresça sempre mais em vosso amor, multiplicando os atos de amor e procurando agradar-Vos em todas as coisas, sem interrupção e sem reserva. Fazei com que, miserável e vil como sou, seja ao menos todo vosso.
— Maria, minha Mãe, intercedei por mim. Fazei-o pela Paixão de vosso divino Filho.
Referências:
(1) Sl 68, 22
(2) Jo 16, 24
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 202-204)