Lição 1: Os Livros Sapienciais
Após os livros históricos, o cânon do Antigo Testamento apresenta os livros sapienciais ou didáticos, que são: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes ou Qoheleth, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico ou Sirácida.
Os livros sapienciais cultivam a Sabedoria. Por sabedoria entendiam os judeus mais antigos um conjunto de normas que guiavam a vida prática e moral dos jovens e dos adultos. Todo povo tem sua sabedoria de vida expressa, não raro, em provérbios, como: “Quem vai ao vento, perde o assento”, “Um dia é da caça, outro dia é do caçador“, “Em casa de ferreiro, o espeto é de pau“… Essa sabedoria foi sendo cultivada com especial interesse desde a instauração da monarquia em Israel (séc. XI a.C.): na corte do rei, os sábios instruíam os jovens sobre o comportamento a assumir durante as refeições, diante dos amigos, dos estranhos, dos tribunais, no comércio, etc.; ver Pr 1,2-6; 10,1.5.16; 11,1; 12,4.11.28…; Eclo 10,1-5; 11,7-9.29-34; 13,1-3… O rei Salomão ficou sendo, para os judeus, o rei sábio por excelência, mais sábio do que os outros reis e sábios dos povos vizinhos (que também cultivavam a sabedoria); ver 1 Rs 5,9-14.
Aos poucos a sabedoria foi tomando caráter religioso; tem suas raízes no temor do Senhor e procura agradar a Deus; ver Pr 1,7; 6,16; Jó 28,28; Eclo 1,11-21.. . É um dom que o Senhor concede; ver Jó 32,8; Ecl 2,26; Eclo 1,1; 2,6s; Sb 7,27…
Com o tempo, os sábios atribuíam ao próprio Deus a sabedoria; Deus realizou a obra da criação com sabedoria; ver Pr 8,32-36; Eclo 24,1-22; Sb 1,4s. Mais ainda: a sabedoria de Deus foi tão estimada que os sábios a descreveram como uma pessoa subsistente ao lado de Deus (está claro que os judeus não chegaram a entrever o mistério da Santíssima Trindade; a personificação da sabedoria ficou no plano meramente poético); ver Pr 8,1-21; Eclo 24,1-31; Sb 7,22-30; Jó 28,1-28. São Paulo, desenvolvendo o pensamento judaico, dá a Cristo (2ª pessoa da Santíssima Trindade feita homem) o título de “Sabedoria de Deus” (cf. 1 Cor 1,24).
Durante o exílio (587-538 a.C.) e depois, os sábios foram tomando importância crescente no povo de Israel. Ajudavam os israelitas a refletir sobre a sua história, sobre as promessas de Deus, sobre o sentido da deportação… reliam com os fiéis deprimidos as Escrituras antigas e explicavam-nas em seu sentido mais profundo; ver Eclo 17,1-14; 44,1-50,24; Sb 10,1-19,21. Precisamente dessa reflexão sobre o sofrimento e a Providência resultaram os livros de Jó e do Eclesiastes. Por causa do seu papel de relevo em Israel, os sábios (também ditos “escribas”) fizeram as vezes dos profetas, que se tornaram raros depois do exílio; embora com menos rigor de linguagem do que os Profetas, orientavam os fiéis no caminho da piedade e da fidelidade à Lei de Deus.
Dentre os sete livros sapienciais, Jó, Pr, Ecl, Eclo, Sb, representam bem as expressões da sabedoria administrativa, moral e religiosa de israel. Os livros dos Salmos e do Cântico menos adequadamente são enumerados nessa categoria.
Lição 2: O livro de Jó (I)
O livro de Jó aborda o problema do sofrimento do homem reto; por que sofrem os bons? A tese mais antiga em Israel afirmava que todo sofrimento é castigo dos pecados do indivíduo, ao passo que vida longa, saúde, dinheiro, boa fama seriam o prêmio dado pelo Senhor aos seus fiéis; cf. Dt 8,6-18; 28,1-30,20; SI 33(34), 13-15; Pr 3,7.13-18… Esta concepção se impunha aos judeus pelo fato de que ignoravam a existência de uma vida póstuma consciente; julgavam que, após a morte, o indivíduo perdia a lucidez da mente e se encontraria adormecido no cheol, incapaz de receber alguma sanção. Por isto admitiam a retribuição do bem e do mal nesta vida mesma. Eis, porém, que, com o decorrer do tempo, esta concepção se evidenciou discutível; na verdade, nem sempre os bons são recompensados pelo Senhor com os favores desta vida e nem sempre os maus são punidos com doença e miséria; os Profetas e sábios foram notando isto em Jr 12,1-6; Si 76(77); MI 3,14-16; Ecl 7,15s; 8,14.
Ora precisamente sobre este pano de fundo foi escrito o livro de Jó. O autor apresenta um homem reto, Jó, que perde seus bens e sua saúde (Jó 1,1-2,10). Três amigos comparecem para fazer-lhe companhia e lhe recomendam que acuse seus pecados, pois, se foi ferido de tal maneira, deve ter graves faltas, Jó, porém, afirma sua inocência e julga que a sua situação é inexplicável (4,1-31,40); apela para o juízo de Deus (31,35s). Aparece então um jovem chamado Eliu, que, em parte, confirma os dizeres dos amigos de Jó, em parte tenta nova explicação (Deus pode permitir o sofrimento dos bons para preservá-los do orgulho); cf. cc. 32-37. Finalmente Deus intervém majestosamente e impõe o silêncio a Jó e seus amigos; ninguém é capaz de sondar os desígnios da Providência Divina; Deus é sábio demais para que o homem lhe possa pedir contas dos seus planos; cf. cc. 38-41. Jó então reconhece sua incapacidade de julgar Deus (42,1-6). Deus o recompensa, restituindo-lhe a saúde e os bens materiais (42,7-17).
Como se vê, Deus não confirma a tese antiga, que explicaria o sofrimento como castigo de pecados pessoais, mas também não expõe o sentido do sofrimento, especialmente quando afeta os bons. A explicação do problema só poderia ser dada quando os judeus tivessem noção de que, após a morte, existe outra vida, em que os homens conservam plena consciência do que lhes acontece e, por isto, são capazes de colher os frutos das obras praticadas na terra. Ora somente no séc. II a.C. (Jó é talvez do século V a.C.) Israel chegou a noção de vida póstuma consciente. Na era cristã, Jesus Cristo, o justo que sofre em expiação dos pecados alheios e ressuscita dentre os mortos, projetaria nova luz sobre o sentido do sofrimento.
Assim o livro de Jó se coloca na fase de transição entre as concepções mais antigas referentes ao sofrimento e a mensagem do Novo Testamento.
Lição 3: O livro de Jó (II)
1. Perguntamos agora: qual o gênero literário de Jó?
O herói do livro parece ser um personagem histórico. É mencionado em Ez 14,14-20 juntamente com Noé e Daniel (não Daniel); estes deviam ser três personagens não-israelitas famosos no Oriente antigo por sua virtude e sua sabedoria. Fora de Israel, o nome Jó ocorre sob a forma A-ia-ab; assim, por exemplo, era chamado um rei de Pela (Palestina antiga), vassalo do Egito no séc. XIV a.C.
Pode-se dizer que a história atribuída a Jó e seus amigos pelo autor sagrado é real? Examinemos o texto bíblico:
a) Verificamos que apresenta estrutura artificiosa. Com efeito, o livro consta de prólogo (1,1-2,3) e epílogo (42,7-17) em prosa, enquadrando o corpo do livro, que é poético.
O corpo do livro (3,1-42,6) consta de diálogos e monólogos como os das obras sapienciais da antiga literatura oriental. A disposição dos discursos é simétrica: dois monólogos de Jó (3,1-26 e 29,1-31,40) servem de moldura a três ciclos de pronunciamentos: em cada ciclo, um amigo de Jó acusa e Jó responde; outro amigo acusa e Jó responde; o terceiro amigo acusa e Jó responde. O último monólogo do herói termina rigorosamente no estilo de uma apelação jurídica, autenticada e apresentada ao juiz (ver 31,35). A resposta do Supremo Juiz encerra harmoniosamente os debates (38,1-42,6). Quanto aos quatro discursos de Eliu (cc. 31-37), julga-se que foram acrescentados a este esquema já completo.
Uma tão artificiosa composição do livro sugere que o autor não esteja descrevendo a história propriamente, mas desenvolvendo outro gênero literário, que seria o do diálogo filosófico-religioso.
b) Notemos ainda o caráter convencional de alguns números do livro.
Antes de sua desgraça, Jó tem 7 filhos e 3 filhas. A prole numerosa é sinal de bênção, conforme os israelitas, sendo a prole masculina a mais estimada. “Sete filhos”, eis o número que caracteriza a fecundidade abençoada, conforme 1Sm 2,5; Rt 4,15. Por isto, quando Javé recompensa Jó no fim do drama, dá-lhe, em vez dos sete filhos sacrificados pelo flagelo, quatorze rapazes, ficando em três o número de filhas (cf. 42,13). Observemos que também o profeta Hema, homem de Deus, tinha 14 filhos e 3 filhas (cf. 1Cr25,5). A proporção sete a três ou duas vezes sete (quatorze) a três, no livro de Jó, parece artificiosa mais do que real. Com efeito, além do fato de que 7 e 3 já por si eram símbolos de totalidade na mística oriental, é de notar que Jó possui sete mil ovelhas e três mil camelos (1,3). Os três amigos, ao comparecerem diante do infeliz, permanecem em silêncio, aterrorizados, durante sete dias e sete noites (2,13).
O cenário celeste e os episódios que ai ocorrem, são nitidamente artificiosos: Deus aparece como monarca em sua corte; servem-lhe os anjos, dentre os quais um tem função interessante: intitula-se em hebraico o Satã (com artigo!), isto é, o Adversário, Adversário não de Deus, mas dos homens. Tem encargo de Promotor da Justiça, que acusa diante de Deus os homens infiéis; por isto percorre o mundo para inspecionar os homens. Em conseqüência, tem livre acesso junto a Deus, que o trata amigavelmente e lhe concede mesmo a missão de submeter Jó à prova. Donde se vê que o Satã do livro de Jó não é o anjo rebelde, sedutor dos homens, cuja existência real é atestada pela Sagrada Escritura (Gn 3,1; Lc 11,15.18s). O título de Acusador ou Satã, que ainda é substantivo comum no livro de Jó, tornou-se posteriormente o nome próprio do anjo decaído (cf. 1 Cr 21,1). – Donde se vê que as deliberações do Senhor com os anjos, seus ministros, no céu são apenas uma forma literária. O autor sagrado usou-a para apresentar a imediata causa do drama que no corpo do livro é objeto de debate: se a situação de Jó parece inexplicável, isto se deve ao fato de que os homens na terra não conhecem as vias ocultas de Deus.
Em conclusão: os traços literários atrás apontados parecem demonstrar suficientemente que o autor de Jó tinha em vista um ensinamento não de ordem histórica, mas de ordem sapiencial ou de ordem filosófico-religiosa. Mais precisamente: o que lhe interessava, era debater um problema muito focalizado tanto na literatura bíblica como na profana: o enigma do Justo que padece. Ora a discussão de um tema em termos abstratos não era familiar aos israelitas nem aos antigos orientais. Foi por isto que, a fim de propor suas considerações sobre o problema, o autor sagrado quis utilizar uma narrativa de fundo histórico que circulava no mundo oriental: o drama de um homem digno e aflito chamado Jó. Este drama serviu-lhe de ponto de partida para as suas meditações; ele não hesitou em ornamentá-lo e dramatizá-lo, a fim de o tornar veículo de suas idéias; com raro talento ele escreveu os artifícios da didática na trama histórica primitiva.
Daí se originou o livro de Jó, no qual é difícil discernir os traços de história propriamente dita e os recursos típicos do gênero literário.
Assim o livro de Jó se apresenta como um dos mais belos poemas da literatura sapiencial antiga.
2. E qual a mensagem desse livro?
O autor quis exprimir suas dúvidas a respeito da concepção tradicional que associava quase mecanicamente virtude e felicidade, pecado e desgraça temporal. Para fazê-lo, escolheu a forma de um debate entre diversos sábios. Logo no inicio é posto o problema: eis um justo, Jó, que sofre.
Na discussão do problema, a tese tradicional tem três advogados, que são os três amigos de Jó; incitam o infeliz a confessar seus pecados.
Jó não se dobra ao convite, pois ele nada tem que o acuse. O herói torna-se assim o porta-voz das dúvidas relativas à antiga sentença judaica; aponta o caso dos ímpios que prosperam, e professa perplexidade diante dos seus sofrimentos.
Os longos debates se terminam com a entrega da questão a instância superior, à Sabedoria Divina. Eis, porém, que o Senhor, em vez de dar a explicação desejada, impõe silencio a Jó: não queira o homem pedir contas a Deus; reconheça, antes, a sabedoria do Criador, atestada pelas maravilhas da natureza, e entregue-se, confiante, a ela.
Por conseguinte, reverência e confiança constituem a atitude que o autor sagrado quer incutir diante do problema da dor. Pondo em xeque a explicação antiga, ele não sabe propor nova sentença, que dependeria da revelação de vida póstuma consciente e da obra do Cristo Jesus.
Todavia o livro indica a solução prática estritamente religiosa, que é válida até hoje. Sim; mesmo depois de Cristo, o homem não pode indicar o porquê de todos os seus sofrimentos; faça, porém, um ato de confiança absoluta na infalível Providência Divina. E não será frustrado.
O Novo Testamento voltará a tratar do assunto, mostrando que o sofrimento é disposto por Deus não como mera punição do pecado, mas como remédio do próprio mal; o patíbulo da Cruz sobre o Calvário foi erguido como árvore da vida e da ressurreição gloriosa. O homem, portanto, não sofre unicamente para pagar um tributo à Justiça, mas para se purificar do pecado e voltar ao Pai com Cristo – o que é a suma felicidade.
Para aprofundar o estudo, veja:
GRELOT, R, Introdução à Bíblia. Ed. Paulinas 1971.
GRÜEN, W., O tempo que se chama hoje. Ed. Paulinas 1977.
Perguntas sobre o Livro de Jó
1) Leia atentamente Pr 8,1-36 e Eclo 24,1-34. E responda: qual é o sujeito que fala nesses capítulos? Como é que os cristãos os podem entender (cf. 1a Etapa, módulo IV)?
2) Em Jó 19,25-27 Jó fala da ressurreição dos mortos? A sua Bíblia diz alguma coisa em nota de rodapé?
3) Como é que o livro de Jó explica o sofrimento do inocente?
4) Que faltava ao autor de Jó para explicar melhor o sofrimento?
5) Como é que Jó entendia o Cheol? Leia Jó 3,16; 7,6-10; 10,8s.18-22; 14,10-12.18-22.