Dom Henrique Soares
Esta é a nossa fé, bendita seja a Palavra de Deus…
Qual o sentido do milagre da multiplicação dos pães?
Primeiramente, trata-se de um milagre, uma ação sobrenatural, messiânica do Senhor Jesus! Ação messiânica porque destinada a revelar que Jesus é o Messias e que tipo de Messias Ele é!
A narrativa é muito simples: uma multidão tinha ido a Jesus “porque tinha visto os sinais que Ele realizava nos doentes” (Jo 6,2). Jesus, “acolhendo-as, falou-lhes do Reino de Deus e aos necessitados de cura, restitui a saúde” (Lc 9,11).
“Estava próxima a Páscoa, a Festa dos judeus”: João dá esta informação para que se possa interpretar bem o sinal que Jesus irá realizar: não é partilha (absolutamente nada no texto afirma isto ou dá a entender isto; é milagre eucarístico messiânico: o pão dado por Jesus será a nova e definitiva Páscoa!
Existem alguns que querem ver como lição deste evento uma partilha: as pessoas partilham, na partilha, o pão aparece e todos ficam saciados! Não há nada disso no texto! Não é partilha nem há partilha alguma: há um milagre do Senhor e um milagre no sentido de prefigurar e preparar a Eucaristia, Páscoa dos cristãos, que supera a Páscoa dos judeus!
Há outros textos no Novo Testamento que falam de partilha; este não! Somente uma interpretação ideológica e forçada da Palavra de Deus poderia insistir aqui em partilha… Em geral, os que forçam e adulteram o milagre do Senhor referindo-se a partilha, são os mesmos que negam os milagres de Jesus… é muito triste instrumentalizar a Palavra do Senhor para espúrios propósitos ideológicos! Quanto mal já se fez com isto!
“Havia muita relva naquele lugar” (Jo 6,10)
Recorde o Salmo 23/22,1-2.5a:
“O Senhor é meu pastor, nada me falta. Em verdes pastagens me faz repousar. Diante de mim preparas a mesa…”
Eis o cumprimento deste Salmo em Jesus!
Agora, observe os gestos de Jesus: toma o pão, dá graças, parte, distribui (cf. Mt 14,19: “Tomou os cinco pães, elevou os olhos ao céu e abençoou. Em seguida, partindo os pães, deu-os aos discípulos, e os discípulos às multidões”).
São os quatro gestos eucarísticos por excelência!
Observe que tais gestos estruturam a própria liturgia da Eucaristia:
tomou o pão ( = apresentação das ofertas),
deu graças ( = a oração eucarística),
partiu ( = a fração do pão no Cordeiro de Deus)
e deu aos discípulos ( = a comunhão).
Todos ficaram saciados! Jesus é maior que Eliseu (que saciou cem pessoas – cf. 2Rs 4,42s) e maior que Moisés (pois este deu o maná, enquanto Jesus vai dar-Se a Si mesmo como Pão da Vida no Pão eucarístico, prefigurado no pão multiplicado por puro dom de Deus: “É Meu Pai Quem dá o verdadeiro Pão” – Jo 6,32). Ele é aquele que sacia Israel ( = doze cestos que sobram. Doze é o número de Israel e da Igreja, novo Israel).
“Vendo o sinal que Ele fizera, aqueles homens exclamavam: ‘Esse é verdadeiramente o Profeta que deve vir ao mundo'” (Jo 6,14)
Extasiado, o povo reconhece que Jesu é o Profeta prometido em Dt 18,15.18! O povo esperava um novo Moisés. Como Moisés, Jesus faz o povo descansar num lugar deserto (cf. Mt 14,15) e o alimenta: o povo vê nele o novo Moisés prometido, o Profeta igual a Moisés, que Israel esperava (cf. Jo 1,21).
Observe o v. 15: feliz pela barriga cheia, o povo deseja fazer do Senhor Jesus um rei… Sempre a velha e renovada maldita tentação: reduzir Jesus a um líder político ou social e desfigurar Sua verdadeira missão: na força do Santo Espírito, instaurar o Reino de Deus, o Pai, que é anunciado pela Sua vida e pregação, mostrado efetivamente nos Seus milagres, inaugurado na Sua santa Páscoa de morte e ressurreição, anunciado, divulgado e tornado presente pela Igreja, na sua vida, na sua pregação e, sobretudo, nos seus sacramentos, e consumado na Glória, quando Ele mesmo, da parte do Pai, pleno do Espírito Se manifestará em Glória.
“Jesus, sabendo que viriam buscá-Lo para fazê-Lo rei, refugiou-Se, de novo, sozinho, na montanha” (Jo 6,15)
Insisto: a narrativa de João termina com uma tentação de reduzir Jesus a líder político social! Significativo, não é?
O Senhor sempre vence esta tentação rezando: sobe a montanha e abandona-Se à vontade do Pai, o Rei, cujo Reinado Ele viera trazer! Interessante que o resolver a questão do pão, mostrar poder político e social e seguir uma lógica humana de messias foi exatamente o que o Diabo propôs a Jesus – e adulando-O com o título de “filho de Deus”. Jesus rejeitou! E continuará sempre rejeitando… Mesmo que o Diabo, pai de mentira, continue se disfarçando de amigo, de anjo de luz… (cf. Mt 4,1-11)
“Sede sóbrios e vigilantes! Eis que o vosso adversário, o Diabo, vos rodeia como leão a rugir, procurando a quem devorar! Resisti-lhe, firmes na fé!” (1Pd 5,8)
***
“Sobre o Reino de Deus”
Tem paciência? Quer compreender? Então, enfrente o longo texto! É para os fortes!
Caro Irmão, gostaria de partilhar com você algumas meditações sobre um dos textos mais encantadores de todo o Evangelho. Trata-se do capítulo treze de São Mateus. Aí Jesus diz o chamado “discurso das parábolas do Reino dos Céus”.
Se você observar, São Mateus, para mostrar que o nosso Salvador é o novo Moisés, resume a pregação de Jesus em cinco discursos (como cinco são os livros da Torá, livros tradicionalmente atribuídos a Moisés): o Discurso da Montanha (Mt 5-7), o Discurso Apostólico (Mt 10), o Discurso das Parábolas do Reino (Mt 13), o Discurso sobre a Igreja (Mt 18) e o Discurso Escatológico (Mt 24-25). Observe que o centro é o Discurso das Parábolas do Reino, bem no meio dos cinco! É que o Reino dos Céus (ou Reino de Deus – Mateus usa “céus” porque evita escrever ou pronunciar a palavra “Deus” por respeito e temor reverencial) é o centro da pregação de Jesus. Pois bem, neste discurso ele vai abrir o coração e nos revelar traços, lampejos do mistério do Reinado de Deus.
Mateus reúne sete parábolas porque sete significa completude, perfeição…
Acompanhe o texto:
“Naquele dia, saindo Jesus de casa, sentou-Se junto ao mar. Em torno Dele reuniu-se uma grande multidão. Por isso, entrou num barco e sentou-Se, enquanto a multidão estava em pé na praia. E disse-lhes muitas coisas em parábolas”.
Observe bem a doçura, o encanto desta introdução. Jesus está em Cafarnaum, ao que tudo indica na casa de André e de Pedro. Saindo de casa, Ele vai à beira-mar e senta-Se na praia… Imagine o Salvador tranquilamente sentado, contemplando o mar e o balanço da água, observando, pensativo, o vai e vem dos barcos de pesca, fitando as montanhas do outro lado do mar, na Transjordânia, região da Decápole… Em que pensava? Em que se ocupavam Seus pensamentos? Qual era a sede do Seu Coração naquele dia, talvez naquele entardecer?
Sem que Ele percebesse, as pessoas vão se aproximando, vão cercando-o, sedentas da Palavra de Deus, mais que de pão… Elas querem ouvir o Senhor, pois de Seus lábios saem palavras do sabor de mel, com lampejos de infinito, com traços de Deus… Sua palavras enchem o coração de paz, fazem quase que adivinhar o coração de Deus – aquele Deus a Quem Jesus ousadamente chama de Abbá-Pai…
Agora já é tanta gente… Jesus levanta-Se, entra num barco e pede que O empurrem um pouco, três, quatro metros talvez… Que cena tão bela: Ele sentado no barco e a multidão sentada – alguns em pé – escutando na praia… E o vento que vinha do mar trazia, com a aragem fresca, as palavras do moço de Nazaré… E Jesus sentado, como um Mestre, na barca imagem da Igreja… nos contando os segredos do Reino! – Fala, Senhor! Queremos Te escutar! Fala-nos do Reino…
“Eis que o semeador saiu a semear”…
Não esqueça: a parábola do semeador é a primeira das sete sobre o Reino dos Céus… O Reino dos Céus é como o semeador que saiu a semear a semente, isto é, a palavra do Reino… Este semeador é, primeiramente, o próprio Jesus e depois, todo aquele que continua a obra de Jesus… É assim: o Reinado de Deus foi semeado por Jesus… É ainda semeado por aqueles que, em nome de Cristo, como Igreja, saem jogando a semente no campo dos corações… Esse Reino é vivo, fecundo como uma semente: pode crescer, pode abrigar as aves do céu, pode aconchegar toda a humanidade… Mas (que escândalo!), o Reino é, ao mesmo tempo, frágil, quase que impotente, pois depende de mim, de você: eu posso ser leviano e deixar que as aves de tantas futilidades devorem as sementes do Reino; posso ser raso, superficial e sem profundidade interior, a ponto de queimar a vida do Reino que foi jogada no meu coração; posso ser tão apegado a tantas coisas que sufoco o Reino – aquele Reino que Jesus disse estar dentro de nós e no meio de nós… Posso, por fim, ter um coração que escuta, que acolhe e deixa germinar o Reino porque deixa Deus reinar de verdade na minha vida… E, então, a semente do Reino dará fruto em mim, o Reino de verdade acontecerá, e poderá dar trinta, sessenta, cem por um, dependendo da minha disponibilidade para acolhê-lo e fazer germinar… Em Paulo de Tarso, em Agostinho de Hipona, em Bento de Núrcia, em Bernardo de Claraval, em Teresa d’Ávila, em Madre Teresa, em João Paulo II deu cem por um… Em outros dará sessenta, trinta… Em mim, quanto dará? Uma coisa é certa – e é escandalosa, surpreendente: o Reino não acontecerá em mim se eu não me abrir para ele; eu não entrarei no Reino se não permitir que o Reino entre e frutifique no meu coração!
E Jesus, continuou, sentado, revelando os segredos do Reino:
“O Reino dos Céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo. Enquanto todos dormiam, veio o seu inimigo e semeou o joio no meio do trigo e foi-se embora. Quando o trigo cresceu e começou a granar, apareceu também o joio. Os servos do proprietário foram procurá-lo e lhe disseram: ‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Como então esta cheio de joio?’”
Que escândalo esta parábola; como nos maltrata! Olhamos o mundo, campo de Deus, e vemos tantos sinais de joio, tanta maldade, tanta dor e sofrimento… Senhor, por que fizeste o mundo assim? Por que permites o mal? E Jesus explica, docemente:
“Um inimigo é que fez isto”
E nós, impacientes; nós, que nos julgamos sábios e temos vontade de dar conselhos a Deus, perguntamos, angustiados e impacientes:
“Queres, então, que vamos arrancá-lo?”
Diante da nossa pressa, o Senhor nos responde:
“Não, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis também o trigo. Tendes certeza realmente que sabeis distinguir o joio do trigo? Já vistes que também no vosso próprio coração há trigo e joio?”
Ah, Irmão! A escandalosa paciência de Deus! O modo misterioso que o Senhor tem de dirigir o mundo! O campo deste mundo, a seara da vida, não estão perdidos. Ainda que apresente tanto joio, o trigo do Reino está presente nele: Deus reina em tantos corações, está presente de tantos modos! O problema é que não podemos calcular, não podemos separar com um bisturi o trigo do joio… E nos impacientamos, nos amarguramos e, tanta vez nos revoltamos contra Deus e quase que descremos… porque Deus não cabe na nossa lógica, não faz como gostaríamos… E o Senhor insiste:
“Deixai-os crescer juntos até a colheita. No tempo da colheita, direi aos ceifeiros: Arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado; em seguida, recolhei o trigo no meu celeiro”
Compreende, Irmão, como é o Reino? Percebe que ele não obedece a nossos cálculos, não cede à nossa lógica, não liga para nossos prazos? O Reinado é de Deus e não nosso! Como é preciso que eu e você nos convertamos para perceber isso e acolher a palavra desse Jesus tão independente, tão senhor de si, tão mergulhado nos tempos e modos do Pai…
A brisa do mar traz, uma a uma, as palavras de Jesus, suaves, doces e cortantes… E o povo escutando aquelas estórias tão bonitas… E Jesus, mansamente, falando com o coração, continua:
“O Reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. Embora seja a menor de todas as sementes, quando cresce é maior do que qualquer hortaliça e torna-se árvore, a tal ponto que as aves do céu se abrigam nos seus ramos”
Então, é assim? O Reino não é grande, vistoso, potente, como esperávamos, como gostaríamos? Quer dizer que ele é pequenininho como uma semente menor que o coentro? Quer dizer que ele não se mostra primeiro nos megaeventos, nas grandes realizações, nos shows de pirotecnia, nos nossos grandes projetos? Então, ele não está nos nossos projetos sócio-políticos? Então, o Reino não tem nada a ver com as nossas ideologias ou projetos de poder?
Ah, que Reino escandaloso, doloroso, difícil e aceitar! Ele se manifesta no que é pequeno, no que é simples, no dia-a-dia! Desde Jesus, ele está aí… E vai crescendo, e vai crescendo sempre, de modo que só Deus sabe… Mas, que ninguém se iluda: no tempo certo – tempo de Deus! – ele estará tão grande, tão frondoso, que até as aves dos céus, isto é, toda a humanidade, poderá aninhar-se nele! Essa sementinha é capaz de crescer, tem o vigor do Espírito de Deus e vai sim, ser uma árvore frondosa…
Veja, meu Irmão, como é difícil, porque escapa aos nossos cálculos, escapole de nossos prazos, extrapola e desmoraliza a nossa lógica! Se o Senhor Jesus, nosso bendito Salvador, não nos converter, nós desistimos, nós não veremos nada, não compreenderemos a dinâmica do Reino que ele implantou!
“Contou-lhes outra parábola: ‘O Reino dos Céus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e pôs em três medidas de farinha, até que tudo ficasse fermentado’”
Mais uma parábola; tão curtinha, tão simples e óbvia… Tão desafiadora e consoladora… O Reinado de Deus no mundo, o Reino dos Céus é pouquinho, pequenininho, imperceptível como uma pitada de fermento jogada em três medidas de farinha (o equivalente a 3 x 39,4 litros: tanta farinha – 120 litros para tão pouco fermento!). E, no entanto, pouco a pouco, tudo fica fermentado, pois que o fermento vai impregnando toda a massa. Assim é o Reino: tão pouquinho, tão pequeno ante tanta farinha e, no entanto, está presente, está agindo, está impregnando o mundo, mas de um modo lento, cuja dinâmica nos escapa!
Note, Irmão, como nos custa tudo isso! Por um lado, Jesus nos dá a certeza da força do Reino de Deus, nos garante que ele impregnará tudo… Mas, por outro lado, como nos é difícil aceitar os modos, os prazos, as demoras, as humildes aparências desse Reino…
“Jesus falou tudo isso às multidões por parábolas. E sem parábolas nada lhes falava, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: Abrirei a boca em parábolas; proclamarei coisas ocultas desde a formação do mundo”
Assim, Jesus sacia os ouvintes, que tinham sede de Infinito, que tinham sede de compreender os caminhos de Deus, os tempos do Reino…
Levanta-se, sai do barco, e, “deixando as multidões, entrou em casa”… Agora, com os discípulos, continua a falar sobre o Reino dos Céus. O coração continua vibrando… O Mestre continua a revelar seus segredos aos seus íntimos, coração a coração:
“O Reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido no campo; um homem o acha e torna a esconder e, na sua alegria, vai e vende tudo o que possui e compra aquele campo”
Que comparação bela, que imagem fascinante, instigante!
O Reino é um tesouro, mas escondido. Pode ser que alguém passe por ele, pise nele e não o perceba… Nem todos encontrarão o Reino. Por quê? A resposta pertence ao mistério insondável do encontro da providência de Deus com a liberdade do homem. Assim é o Reino: um tesouro, o maior tesouro da existência! E quando alguém o encontra, quando deixa ao menos um pouco que Deus, o Pai de Jesus, invada a vida e reine na sua existência, então descobre, encantado, o tesouro de grande valor que encontrou! E vai, cheio de alegria, vende tudo, larga tudo, vende tudo quanto é, tudo quanto construiu, tudo relativizando, para conquistar aquele campo onde se acha o tesouro. É muito bonito nesta parábola como Jesus associa a descoberta do Reino com a alegria: o Reino não é um fardo, não é uma obrigação: é um dom, uma graça, uma festa, uma alegria!
E Jesus prossegue, continua, doce, empolgado, sereno, falando do Reino, deixando os seus discípulos com saudades do Infinito, saudades de Deus:
“O Reino dos Céus é ainda semelhante a um negociante que anda em busca de pérolas finas. Ao achar uma pérola de grande valor, vai, vende tudo o que possui e a compra”
O Reino é como uma pérola. Há tantas delas na vida: a pérola da saúde, de alguém que a gente ama, de ter uma família, a pérola de nossa profissão, de nossos bens, de nossos amigos e inteligência… Tantas pérolas, todas preciosas, todas amáveis… Mas, quando se encontra de verdade o Reino, quando de verdade alguém sentiu o gostinho de deixar Deus invadir o coração com sua doçura, com sua paz, com sua graça amorosa e cheia de misericórdia, então, tudo muda para esse alguém, tudo ganha um novo sentido: as outras pérolas não deixam de ser pérolas, mas tornam-se relativas e seu valor, sua preciosidade passam a ser medidos em referência ao Reino: vale o que me aproxima do Reino; o que dele me afasta e o impede no meu coração já não tem valor! Quem experimentou o Reino no seu coração tudo coloca em função desse Reino! É assim o Reino: vale a pena largar tudo, relativizar cada realidade por ele, a pérola de grande valor, a mais bela e preciosa de toda:
“Formosura que excedeis a toda formosura, sem magoar dor fazeis e sem dor desfazeis o amor das criaturas!”
Os discípulos sabiam do que Jesus estava falando: tinham encontrado o Reino, experimentavam o coração em festa, uma festa cheia de doçura e de paz; haviam deixado tudo por aquela pérola de grande valor. Jesus lhes mostrara, lhes dera aquela pérola. Por isso amavam-no tanto…
E o Mestre contou-lhes mais uma parábola, tão bela, tão da paisagem da Galieia, tão da vida deles:
“O Reino dos Céus é ainda semelhante a uma rede lançada ao mar, que apanha de tudo”
Que graça, que escândalo, esse Reino. Graça porque apanha de tudo; o coração do Pai é amplo, como uma casa grande e espaçosa que tem muitas moradas – nele há lugar até pra mim, pra você, que agora me lê… Mas, pensando bem, essa mesma graça nos escandaliza tanto: por que tantos pecadores na Igreja, por que tanta gente escandalosa que temos que aceitar e acolher como nossos irmãos? Escândalos nas comunidades, escândalos no clero, escândalos na vida religiosa, escândalos no meu coração… Escândalos dos que usam a Igreja para seus projetos ideológicos ou de poder…
Por que, Senhor, toleras tudo isso? Por que a rede do Reino que anuncias e trazes também pesca, recolhe e acolhe aqueles que, por mim, estariam bem longe, abandonados no mar alto? Escandalizamo-nos porque queremos a misericórdia para nós e, para os outros, a dureza da justiça. Mas, o coração de Deus não é como o nosso… O coração do Deus cujo Reino Jesus anuncia e traz é o coração do Abbá, o coração do Pai, do Papai de Jesus!
“Quando está cheia, puxam-na para a praia e, sentados, juntam o que é bom em vasilhas, mas o que não presta, deitam fora. Assim será no fim do mundo: virão os anjos e separarão os maus dentre os justos e os lançarão na fornalha ardente”
Um dia (não dia nosso, mas dia de Deus, dia e hora que somente Deus conhece) a rede do Reinado de Deus estará cheia: este tempo terminará, a história desembocará na Glória… A rede será puxada… Quando, Senhor? Não sabemos; não nos pertence! De que modo, Senhor? Não nos compete saber: pertence aos segredos de Deus – Bendito sejas tu, Senhor nosso Deus, que guardas os segredos!
A rede será puxada… Sou alagoano, da beira de mar, de mar bonito, lindo… Já vi tantas vezes puxarem a rede. Ela é grande, ampla… Como demora a chegar à praia… Sinto uma impaciência danada, esperando para vê-la chegar com a pesca farta… Só Deus sabe a hora em que a rede chegará à praia… Chegará, certamente; mas na hora em que ele achar conveniente! E, então, sim: os peixes bons serão separados dos maus – haverá sim, um discernimento; ocorrerá sim, um juízo de Deus! Os peixes bons serão recolhidos nos cestos do coração do Pai – há tantos cestos, tantas moradas… Mas, os peixes ruins serão jogados fora, pois servem somente para o fogo queimar…
Agora, Jesus olha docemente seus discípulos. Silêncio. Eles estão pensativos, absortos ainda no balanço das ondas, no sopro suave da brisa, perdidos nos mistérios do Reino. E Jesus, o Salvador, o bendito e santo Messias, pergunta placidamente, com voz mansa e terna:
“Entendestes todas essas coisas?”
– Ó Jesus, que eu compreenda!
Neste mundo descrente, que eu creia;
neste mundo impaciente, que eu tenha a paciência do Pai;
neste mundo que grita que só há um reinado do homem, que eu vislumbre o Reino que anuncias e revelas; por ele viva e nele espere e dele seja um dia participante!
Qual a missão de Jesus, nosso Senhor?
Ele veio salvar a humanidade, redimindo seus pecados e levando todos à plena comunhão com o Pai no Espírito. Esta comunhão começa na terra e será plena e definitiva no Céu, Glória e Vida do Deus Uno e Trino. Para isto fomos criados, disto temos sede e somente nisto está a verdadeira Vida!
Jesus somente anunciou o Reino de Deus?
Não! Com Sua Paixão, Morte e Ressurreição, Ele realmente inaugurou esse Reino. Jesus, nosso Senhor, trouxe-no e continua a nos trazer, realmente, o Reinado de Deus, o Pai!
O Pai, para ressuscitá-Lo dos mortos, derramou sobre Ele a plenitude do Espírito.
Ora, onde está o Espírito do Pai, o Espírito de Deus, aí está o Reinado de Deus, pois todo aquele que se deixa conduzir pelo Espírito faz a vontade de Deus e vive na vontade de Deus, deixando efetivamente que Deus reine! Nesse coração, nessa vida, portanto, Deus reina!
O Reino, primeiro, esteve presente plenamente em Jesus, pois Ele deixou que o Pai reinasse Nele inteiramente:
“Eu vim, ó Pai, para fazer a Tua vontade! Não se faça a Minha vontade, mas a Tua, ó Pai!”
Depois da Ressurreição, Jesus, nosso Senhor, derramou e derrama o Seu Espírito, recebido do Pai, sobre a Sua Igreja, para que, no Seu Espírito, nós façamos como Ele fez e tenhamos os sentimentos Dele: deixemos o Pai reinar totalmente na nossa vida e, através de nós, na vida do mundo! Eis o Reinado de Deus!
Por isso Ele ensinou a pedir:
“Venha o Teu Reino, seja feita a Tua vontade!”
O Reino está onde a vontade do Pai é feita! Há manuscritos muito antigo do Evangelho segundo Lucas que, no Pai-nosso, trazem no lugar de “Venha o Teu Reino” o pedido:
“Venha o Teu Espírito e nos purifique!”
Eis: onde está o Espírito do Pai, dado por Jesus, a vontade do Pai é feita, como foi feita por Jesus! Aí o Reino acontece!
O Reino de Deus não está em estruturas, mas no coração de cada um de nós! Quem se deixa conduzir pelo Espírito de Cristo, abre-se, como Ele, para a vontade do Pai! Assim, o Reino entra nesse coração!
Os santos foram isto: homens impregnados do Reinado de Deus! Nunca procuraram a própria vontade, mas acima de tudo e em tudo, a vontade de Deus! Onde vivem os santos, o Reino aparece e dá frutos!
Como Jesus, nosso Senhor, realizou esta missão de salvação?
Ele inaugurou o Reino de Deus (Pai) anunciado prometido pelos profetas de Israel.
Com Sua Encarnação, Sua vida, Sua palavra e Seus milagres, Jesus anunciou o Reinado de Deus,
explicou esse Reinado e revelou a força do mesmo: pequeno e pobre de recursos, este Reino está presente no mundo, trazido por Jesus, o Cristo, e irá crescendo e desenvolvendo-se como o grão de mostarda, como o fermento na massa, como a rede jogada no mar.
No Dia Final, Dia de Cristo – não antes – ele se manifestará com toda a força, de modo definitivo e pleno!
Jesus, nosso Senhor, pensou na Igreja? Fundou a Igreja?
Absolutamente, sim! Exatamente como instrumento do Reino, lugar do Reino, servidora do Reino! A Igreja existe para ser sinal e presença do Reino do Pai, pelo Filho, no Espírito. A primeira palavra da Eucaristia em rito bizantino é precisamente esta:
“Bendito seja o Reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo!”
A Igreja,
nasceu e nasce da força potente do Espírito do Cristo ressuscitado,
vive na potência desse Espírito do Cristo obediente ao Pai,
na força desse Espírito, anuncia e proclama com autoridade a Palavra do Reino,
na energia do Santo Espírito, ministra os sacramentos do Reino, sobretudo a Eucaristia, para que os fieis, comungando com o Corpo e o Sangue do Imolado-Ressuscitado, tenham os sentimentos de Cristo e as atitudes de Cristo e recebam já, o alimento que tem em si o Espírito de Ressurreição, o Espírito que é Vida eterna!
Assim, a Igreja vive para o Reino de Deus!
O modo de viver e conviver dos seus filhos deve ser tal que exprima realmente que Deus reina na vida dos cristãos, neles e entre eles!
A Igreja é início e presença sacramental do Reino. Aqui, neste mundo, de modo imperfeito, e, no Dia de Cristo, no mundo que há de vir, de modo pleno na plenitude da Glória!
Finalmente, o que é o Reino de Deus?
É Deus, o Pai, reinando através do Filho no Espírito, no coração de cada pessoa e, através das pessoas, no mundo, em toda a criação!
Não somos primeiro nós que entramos no Reino, mas o Reino que entra em nós, quando, através de Jesus e como Jesus, sustentados pela força do Seu Espírito, deixamos que o Senhor Deus reine na nossa vida!
Acolher esse Reino bendito exige sempre e de todos a conversão, pois nossa tendência é queremos, nós mesmos, ser os reis de nossa vida: A vida é minha, gritamos! Mas, assim, o Reino jamais terá lugar em nós!
Neste mundo, este Reino será sempre precário, porque sempre poderemos nos fechar para a vontade do Senhor… Mas, ainda que nos excluamos do Reino com nossa dureza, querendo nós mesmos ser o rei de nossa vida, o Reino triunfará e no Dia de Cristo, tal triunfo será definitivo!
Aquele que, consciente e livremente, se fecha para o Reinado de Deus, ficará fora desse Reinado por todo o sempre, “nas trevas exteriores, onde há choro e ranger de dentes”.
Assim, em tudo o que se fizer por amor ao Cristo e em união com Cristo, em todo gesto de amor verdadeiro, em toda luta contra o pecado, em toda genuina piedade, aí o Reino de Deus está presente, atual e atuante!
O Reino de Deus pode ser identificado com algum projeto de poder, alguma ideologia ou algum sistema político-econômico? Pode ser identificado com algum tipo de progresso econômico, científico ou social?
De modo algum!
O Reino tem como critério somente o Senhor nosso Jesus Cristo! O Reino não está em estruturas, mas em corações! As estruturas são fruto dos corações!
O critério do Reino é a união com Jesus, o amor a Jesus, os sentimentos e modo de viver de Jesus, nosso Senhor!
Tudo o que for de acordo com o Evangelho de Cristo, tudo quanto levar à união com Cristo, tudo que for compatível com a Cruz e a Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo serve para o Reino; o que não levar a Cristo, não serve para o Reino de Deus!
Nenhum progressos técnico, político, econômico ou social pode ser identificado com o Reinado de Deus! Fazer isto, seria desfigurar a grandeza, perenidade, profundidade e eternidade do Reino do Senhor! Seria também trair a missão e a palavra do Salvador e Senhor nosso, Jesus Cristo!
O cristão aplaude a aprecia tudo quanto contribuir para que a humanidade e o mundo sejam mais de acordo com o sonho de Deus e exprima os valores do Seu Reinado: Reino de paz, de verdade, de justiça, de amor, de misericórdia, de perdão, de piedade, de retidão. Mas, os cristãos nunca se iludiram: sabem que neste mundo, tudo quanto construimos é precário e imperfeito!
Não há mais Reino de Deus no mundo rico que no mundo pobre! Pelo contrário: são os pobres de quaisquer pobrezas que sejam, que melhor percebem a fugacidade da vida e mais se abrem para Deus e o Seu Reinado!
Quem confunde as coisas que passam com o Reino que não passa termina absolutizando o que é relativo e adorando ídolos ideológicos, a eles servindo com cegueira e levando outros ao engano e à morte da alma! Assim são as ideologias e os sistemas totalitários: nazismo, fascismo, marxismo… Só Deus é Rei; só Jesus Cristo é o Senhor! O que passa disto, vem do Maligno!
Por último: onde podemos ver com mais clareza o Reino de Deus neste mundo?
Nos santos de Cristo! Neles, Deus reina totalmente, como reinou em Jesus, nosso Senhor! Os santos têm os sentimentos de Cristo, a vida de Cristo, porque são conduzidos pelo Espírito de Cristo, que é Espírito do Reino, que é o próprio Reino!
Assim, convertamo-nos e deixemo-nos conduzir pelo Espírito, de modo a ter os mesmos sentimentos do Cristo Jesus, que Se fez obediente ao Pai até a morte de cruz.
Deste modo, como Jesus, o Cristo, nosso Senhor, seremos totalmente transfigurados na Glória de Deus e, já neste mundo, seremos tochas que iluminam e enchem de Vida divina este mundo ferido e cansado… Até o Dia de Cristo, quando Ele entregará o Reino a Deus Seu Pai, e o Pai, pelo Filho, no Espírito, será tudo em todos!
Alguns dos Santos Padres da Igreja diziam que nós, no Senhor transfigurados, somos o Reino que Cristo entregará ao Pai no final de tudo!
Esta é a certeza da nossa fé, a razão da nossa esperança e o motivo da nossa caridade! Amém.