Humiliavit semetipsum, factus oboediens usque ad mortem — “Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até a morte” (Fl 2, 8)
Sumário. A fim de nos ensinar a obediência, o Filho de Deus desce ao seio de uma virgem, sua criatura, e se faz servo não só de Maria e José, mas ainda de Pilatos, que o condena à morte, e dos algozes, que o açoitam, coroam de espinhos e crucificam. E, apesar de tal exemplo, quantos não há que, recusando obedecer a Jesus Cristo e aos seus representantes, se fazem escravos do demônio! Se, infelizmente, fomos tão loucos, reparemos depressa a nossa falta e roguemos ao Senhor que nos prenda nos seus doces laços.
I. Para a salvação dos homens desce à terra o Verbo Eterno. Donde é que desce? A summo coelo egressio eius (1). Desce do seio de seu Pai eterno, no qual foi gerado desde a eternidade, entre os resplendores dos santos. E aonde desce? Ao seio de uma Virgem, filha de Adão, que, em comparação com o seio de Deus, não é senão horror; pelo que a Igreja canta: Non horruisti Virginis uterum — “Não tivestes horror ao seio de uma Virgem”. E com razão; pois, no seio do Pai o Verbo é Deus como o Pai, é imenso, onipotente, perfeitamente feliz, Senhor supremo, em tudo igual ao Pai.
No seio de Maria é criatura, é pequeno, fraco, aflito, servo e inferior ao Pai: Formam servi accipiens — “Tomou a forma de servo”. Refere-se, como sendo um prodígio de humildade, que Aleixo, filho de um senhor romano, quis viver como servo na casa de seu pai. Mas que é a humildade deste santo em comparação à de Jesus Cristo? Entre o filho e o servo do pai de Santo Aleixo havia, sem dúvida, alguma diferença de condição; mas entre Deus e servo de Deus a distância é infinita. Demais, o Filho de Deus, sendo já servo de seu Pai, quis ainda, por obediência, fazer-se servo das suas criaturas, isto é, de Maria e José: Et erat subditus illis (2) — “E estava-lhes sujeito”.
Também Jesus se fez servo de Pilatos, que o condenou à morte, aceitando a condenação por obediência; fez-se servo dos algozes, que o açoitaram, o coroaram de espinhos e crucificaram. A todos obedeceu humildemente, entregando-se-lhes nas mãos. Ah! Depois disto recusaremos ainda obedecer aos representantes deste amável Senhor? Sujeitar-nos ao serviço de Jesus Cristo, que para nossa salvação se sujeitou a uma servidão tão dolorosa e humilhante?
A sermos servos deste tão grande e tão amável Senhor, preferiremos a escravidão do demônio, que não ama àqueles que o servem, mas os odeia e trata como um tirano, tornando-os infelizes e miseráveis nesta vida e na outra? Se porventura temos sido tão insensatos, por que não saímos depressa desta desgraçada escravidão?
II. Tenhamos ânimo! Já que pela graça de Jesus Cristo estamos livres da escravidão do inferno, abracemos e apertemos com amor as doces correntes que nos fazem servos e amigos de Jesus Cristo, e nos merecerão depois a coroa do Reino eterno entre os escolhidos do paraíso.
Amadíssimo Jesus meu, Vós sois o Rei do céu e da terra; mas por meu amor Vos fizestes servo até dos algozes, que Vos rasgaram as carnes, feriram a cabeça, e enfim cravaram de mãos e pés na cruz, para Vos fazerem morrer de dor. Adoro-Vos como meu Deus e meu Senhor, e envergonho-me de aparecer diante de Vós, quando penso por que miseráveis satisfações rompi tantas vezes os vossos santos laços, dizendo-Vos na face que não mais Vos queria servir. É com justiça que mo reprochais: Rupisti vincula mea, dixisti: non serviam — “Rompeste os meus laços, disseste: não servirei”.
O que ainda me faz esperar o vosso perdão, ó Salvador meu, são os vossos merecimentos e a vossa bondade, que não sabe desprezar um coração contrito e humilhado: Cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies (4). Confesso, meu Jesus, que fiz mal em Vos desagradar; confesso que pelos meus pecados mereço mil infernos. Ah, castigai-me como quiserdes, mas não me priveis da vossa graça e do vosso amor. Pesa-me sumamente de Vos ter desprezado, e amo-Vos de toda a minha alma. Tomo a resolução de, no futuro, não servir e não amar senão a Vós. Pelos vossos méritos, ó Senhor, prendei-me a Vós pelas cadeias do vosso santo amor, e não permitais me suceda ainda sacudi-las.
Amo-Vos sobre todas as coisas, ó meu Libertador; antes quero ser vosso servo que possuir o universo: de que serve o mundo a quem é privado da vossa amizade? Ó meu dulcíssimo Jesus, não permitais que me separe de Vós; não permitais que me separe de Vós! E esta a graça que Vos peço e sempre quero pedir. Peço- Vos também a graça de renovar continuamente este pedido: Meu Jesus, não permitais que me separe do vosso amor. Também a vós imploro esta graça, ó Maria, minha Mãe; ajudai-me pela vossa intercessão a não me separar mais de Deus.
Referências:
(1) Sl 18, 7.
(2) Lc 2, 51.
(3) Jr 2, 20.
(4) Sl 50, 19.
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até à Undécima semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 384-387)