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História de Melquisedec, de Sião e do Cenáculo

Sumário. Quem foi Melquisedec? Diversas opiniões. Significado da palavra. Relatos atinentes a ele. Os judeus e os orientais em geral dizem que era Sem, o filho mais velho de Noé. Nemrod, inventor do paganismo. Tradições judaicas referentes a Adão. Por que o Calvário era chamado Gólgota. Melquisedec funda Jerusalém. O porquê da vocação de Abraão a sair de Ur. Por que Abraão deu o dízimo a Melquisedec. História de Sião, Cidade de Davi. Os tesouros que Davi acumulou para construir o Templo. Por que Herodes construiu o cenáculo. Por que se encerram relíquias dos Santos na pedra do altar. Por que os mortos são enterrados debaixo das igrejas. O cenáculo era da família de Cristo. A primeira catedral do mundo. A Liturgia de São Tiago no cenáculo. História do cenáculo depois de Cristo. Sião no tempo presente e seus habitantes. Descrição da sala onde Cristo rezou a primeira Missa, etc.

CRISTO escolheu o cenáculo para nele celebrar a páscoa, porque ali viveram, morreram e foram sepultados Melquisedec, Davi, Salomão e todos os reis da família de Davi anteriores ao cativeiro babilônico.

Melquisedec entra na história com este nome na narrativa dos quatros reis mesopotâmicos que foram à Palestina, capturaram Lot, sobrinho de Abraão, e partiram em demanda de sua terra de origem. Abraão instigou seus servos, arremeteu contra eles à noite, resgatou Lot, tomou os despojos deles e, no caminho de volta, passou por Salém, que era como Jerusalém era chamada então.

“Mas Melquisedec, o rei de Salém, trazendo pão e vinho, pois era sacerdote do Deus Altíssimo, abençoou-o e disse: ‘Bendito seja o Deus Altíssimo, graças a cuja proteção teus inimigos estão em tuas mãos.’ E deu-lhe o dízimo de tudo.” (Gn 14, 18-20)

Aqui, pela primeira vez nas Sagradas Letras, encontramos um sacerdote “do Deus Altíssimo” a ofertar o “pão e vinho” da páscoa judaica e da Missa. Passam-se oito séculos de silêncio e, 1.100 anos antes de Cristo, Davi escreveu acerca do sacerdócio de Cristo:

“És sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec.” (Sl 109,4)

Depois, esse grande rei-pontífice não aparece mais na Sagrada Escritura, até que São Paulo, na sua Epístola aos Hebreus, menciona-o oito vezes como tipo de Cristo (Hb 5,6-10;6,20;7,1-10,11,15-17).

Nos tempos patriarcais, o chefe da tribo ou o rei uniam na sua própria pessoa os dois encargos, o de sacerdote e o de governante. Abraão era sacerdote, e sacrificou animais sofredores, pois da sua raça nasceram os sacerdotes da família de Aarão — os sacerdotes hebreus que instaram a morte de Cristo — assim como tinham imolado, no tabernáculo e no Templo, as vítimas que prefiguravam a Crucificação.

Mas aqui, pela primeira vez na história, surge uma outra ordem de sacerdotes, esse misterioso Melquisedec a ofertar o pão e o vinho da Última Ceia e da Missa. Para ele Abraão pagou o dízimo — a décima parte dos frutos de sua vitória. Portanto, o sacerdócio de Melquisedec era superior ao de Abraão; estava destinado a ser eterno; apontava para o sacerdócio de Cristo, da Última Ceia e da Igreja Católica. A inteira cena profética, naquele vale junto à cidade sagrada, foi emblemática do futuro.

Aparecem vagamente, a princípio, o pão e o vinho nos sacrifícios patriarcais, mas já com mais nitidez no cerimonial do Templo, e mais claramente ainda na páscoa judaica. Magistralmente Santo Agostinho explica o profético Noé, nu na sua tenda depois de beber vinho, imagem do Cristo crucificado quase desnudo. Seu filho Cam, insultando-o, prefigurou o povo judeu zombando do Senhor agonizante (S. Agostinho, De civitate Dei, L. XVI, c. I e II). Ao vinho, outro filho seu, Melquisedec, adicionou o pão, e daí por diante o pão e o vinho foram ofertados sempre com os sacrifícios cruentos do Templo hebreu.

Quem foi Melquisedec?

Os hereges antigos afirmam que era o próprio Espírito Santo, que em forma humana apareceu como o “Rei Justo”. Mas isso está errado. Orígenes, Dídimo e outros daquela época dizem que era um anjo, mas isso não podemos sustentar (S. Agostinho, Quest. in Gen., Quest. LXII).

É certeza que ele foi um homem. Ele era o rei de Salém, que assim Jerusalém era chamada então, o qual oferecia em sacrifício pão e vinho (Epifânio, Heres., 56; S. Cirilo, etc). Outros consideram-no um dos reis cananeus, que viveu uma vida santa em meio às tremendas corrupções daquela época (Teodoro, Eusébio, etc).

Entrando na história para abençoar Abraão, para receber a décima parte de tudo o que este tinha, sem que se diga nada de concreto sobre donde ele veio, sua história, seus pais, sua origem e fim, dele diz São Paulo:

“Sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, mas assemelhado ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb 8,3)

Não segundo o sacerdócio de Aarão, matando incontáveis animais prefigurando a morte horrenda do Redentor, mas segundo a ordem desse grande sumo sacerdote é que Jesus Cristo na Última Ceia oferendou pão e vinho.

Melquisedec (“rei de paz”), reinando naquela Palestina onde os reis eram então chamados de Abimelec — como no Egito se nomeavam Faraó e, mais tarde, Ptolomeus —, na sua inocência e justiça foi uma impressionante figura de Cristo, o Rei espiritual e Sumo Sacerdote do gênero humano. Inácio de Antioquia (Epist. ad Philadel.) e outros Padres dizem que ele foi virgem, sem pai nem mãe, prenunciando o Redentor que não teve mãe no céu, pai na terra nem posteridade (S. Agostinho, De Doct. Christ., L. IV, XLV; Epist. CLXXXII, V).

Muitas obras doutas sobre o assunto trazem diversas soluções. Mas as tradições orientais e os escritores judeus e samaritanos aclaram a dificuldade. Os Targuns do Pseudo-Jônatan e de Jerusalém (Rashi, in Gen. XIV), as obras cabalistas judaicas (Apud Bochart, Phaleg, Parte I, L. II, sec. 69), os autores rabínicos (Schotgen, Hor. Heb. II, 645), os samaritanos (Citado por S. Epifânio, Her. LV, 6) dos tempos antigos juntamente com Lutero, Melancton, Lightfoot, Selden, etc., dizem que Melquisedec era o patriarca Sem, único sobrevivente do dilúvio, filho mais velho de Noé e seu herdeiro, rei e sumo sacerdote do mundo (Ver Bereshith Rabbah, S. 9, etc.).

Noé estabeleceu o direito de primogenitura, segundo o qual o filho mais velho devia suceder o pai na sua propriedade, realeza e sacerdócio, costume este que chegou até nossos dias. Nas monarquias, o filho mais velho se assenta no trono de seu pai, ou torna-se dono dos bens da família. Disso cantou Virgílio:

“O rei Ânio era realmente o rei dos homens e o sacerdote de Febo” (Eneida, III, V. 80).

Portanto, Sem era o herdeiro de Noé.

Qual o significado da palavra Melquisedec?

A palavra hebraica para rei é melek, e para justiça, tsadiq, esta última derivada do babilónico sadyk (“o justo”). Logo, o nome desse Pontífice-Fundador de Jerusalém é “meu rei é justo”. Em nossos dias, em Tell el-Amarna no Egito, foram descobertas tabuletas de terracota inscritas na língua babilônica, uma língua diplomática das nações, cem anos antes de Moisés guiar os hebreus a saírem da terra do Nilo. Ao morrer Melquisedec, Adoni-Zedeque, seu sucessor como rei de Jerusalém, mandou essas tabuletas para o rei egípcio, contando do grande rei Melquisedec, seu predecessor, que fundara a cidade, declarando que ele tinha cinco filhos. Encontra-se grande cópia de tradições judaicas e árabes relativas a esse personagem. Smith, no seu Dicionário, sob o verbete “Shem”, afirma:

“Presumindo-se que os anos atribuídos aos patriarcas nas cópias atuais da Bíblia hebraica estejam corretos, resulta que Matusalém, que nos seus primeiros 243 anos foi contemporâneo de Adão, tinha, após Shem nascer, quase 100 anos de sua longa vida ainda a percorrer. E, quando Shem morreu, Abraão tinha 148 anos de idade, e Isaac estava casado fazia nove anos. Logo, há apenas dois elos — Matusalém e Shem — entre Adão e Isaac. De maneira que os relatos primitivos da Criação, e da Queda do homem, que chegaram até Isaac, provocariam, independentemente de sua ins¬piração, a mesma confiança que se concede prontamente a um conto que chegue até o leitor por meio de duas pessoas, bem conhecidas dele, interpostas entre ele próprio e o ator principal original dos acontecimentos relatados. Não há improbabilidade cronológica nessa antiga tradição judaica, que reúne pessoalmente Sem e Abraão.”

Sem ou Shem (“nomeada”, “renome”, ou “amarelo”), pai dos asiáticos de pele amarela, nasceu antes do dilúvio, quando Noé tinha 500 anos de idade (Gn 5,31).

“Ele (Sem) gerou Arfaxad dois anos depois do dilúvio, e Sem viveu depois de gerar Arfaxad quinhentos anos.” (Gn 11,10,11)

Quando este último estava no seu trigésimo quinto ano, gerou Salé. E, quando Salé tinha trinta anos de idade, seu filho Héber nasceu (Gn 11,12-15). Héber tornou-se pai de Faleg aos trinta e quatro anos. Este último teve um filho aos trinta anos que recebeu o nome de Reu, ao qual, aos trinta e dois anos, nasceu um filho chamado Sarug. Esse Sarug no seu trigésimo ano gerou Nacor, e este, aos vinte e nove anos, teve um filho, Taré, que no seu septuagésimo ano tornou-se pai de Abraão (Gn 11,12-26).

De acordo com essa relação, Abraão nasceu 352 anos depois do dilúvio, quando Sem tinha 450 anos de idade.

“Sem viveu depois de gerar Arfaxad quinhentos anos” (Gn 11,11)

Nascido 92 anos antes do dilúvio, Sem viveu até Abraão chegar ao seu quadragésimo sexto ano. Josefo diz o seguinte:

“Abraão, que consequentemente foi o décimo depois de Noé, nasceu no ducentésimo nonagésimo  segundo ano depois do dilúvio” (Antiguid. jud., L. I, c. VI, n. 5)

Donde se segue que Sem morreu quando Abraão tinha noventa e dois anos, e oitenta anos antes do nascimento de Isaac.

Logo, Sem morreu quando Abraão tinha ou quarenta e seis, ou noventa e dois, ou cento e quarenta e oito anos de idade, e pode ter sido aquele grande pontífice da humanidade, sumo sacerdote das nações, que os cananeus chamavam de Melquisedec. As tradições hebraicas e orientais trazem a seguinte solução, que pensamos ser a melhor, para a dificuldade. Mas não dizemos que as assertivas seguintes sejam todas verdadeiras. Julgue por si mesmo o leitor.

Adão moribundo disse a seu filho Set:

“Agora eu morro pelo meu pecado, mas não me sepultes enquanto Deus não te mostrar o lugar onde dormirei até que venha o ‘Germe da mulher’, que esmagará a cabeça da serpente” (Gn 3,15)

Eles embalsamaram o corpo, legaram-no adiante os patriarcas, Noé trouxe o crânio na arca e, antes de morrer, 350 anos depois do dilúvio, entregou-o a Sem, seu filho mais velho, comunicando-lhe a tradição.

Nasceu da família de Cam seu neto Nemrod (“valente”, ou “o rebelde”), que se transmitiu entre as nações pagãs como Baal, Bel, o deus Júpiter, Hércules, Thor, etc.

“Ele foi neto de Cam e homem atrevido com grande força nas mãos. Persuadiu-os a não a atribuir a Deus, como se eles serem felizes não proviesse dele, mas a crer que era a coragem deles mesmos que lhes assegurava aquela felicidade. Ele também mudou o governo, transformando-o em tirania, por não ver outra maneira de apartar os homens do temor de Deus e de os tornar permanentemente dependentes do poder dele próprio. Disse também que se vingaria de Deus caso este cogitasse inundar o mundo novamente. Para tanto, construiria uma torre alta demais para ser alcançada pelas águas, e ficaria vingado de Deus por este ter destruído os ancestrais deles.” (Josefo, Antiguid. jud., L. I, c. IV, n. 2)

Esse Nemrod afastou a humanidade da religião de Adão; ensinou que o céu era um teto de cristal; que os seus ancestrais, os patriarcas, foram para o céu e se tornaram os planetas; que as forças naturais eram deuses, e assim ele fundou o paganismo. Guiadas por ele, as setenta e duas famílias, nascidas dos netos de Noé, construíram a Torre que chamaram Bab Il (“porta de Deus”, na língua babilónica) — que os hebreus mais tarde mudaram para
Babel (“confusão”) —, daí chamarem a cidade vizinha de Babilônia (“cidade da porta de Deus”) (Dutripon, Concord. S. Scripture, verbete “Babel”).

A infidelidade, o culto de adoração a seus pais-patriarcas, a degradação da mulher, a imoralidade e a irreligião grassavam pelo povo, tiranizado por esse perverso Nemrod. Antes, porém, que a Torre de Babel fosse concluída, Deus mudou a língua deles de modo que cada família falasse uma língua diferente, e já não conseguisse entender as outras famílias, então elas tiveram de se separar. Os filhos de Jafé migraram para as costas meridionais do Mar Cáspio; os filhos de Sem permaneceram na casa de seu pai, a Ásia, porque era ele o mais velho; as tribos escuras de Cam foram para a África, excetuando-se as tribos que se tinham rebelado contra Sem por conta da divisão dos continentes. Estas permaneceram nas ricas planícies entre o Tigre e o Eufrates, onde fundaram o império babilônico, de que Nemrod foi o primeiro rei. Dessas setenta e duas famílias ou tribos vieram as grandes nações da antiguidade.

Sem, pai de numerosas tribos, filho mais velho e herdeiro do poder civil e do poder sacerdotal de Noé, foi despojado de toda autoridade nessa revolta. Abandonado sozinho em idade avançada, tendo seus filhos partido, um anjo mandou-o vir, que lhe mostraria onde enterrar o crânio de Adão. Por muitos dias cheios, rumaram os dois para o ocidente até chegarem a um outeiro, no qual sepultou ele a relíquia de nosso primeiro pai, e chamou-o Gólgota, palavra babilônica que significa “o lugar do crânio”. Os gregos traduziram- na mais tarde como Cranion, e os romanos como Calvaria — Calvário. Ali o anjo mandou-o resguardar a relíquia do primeiro homem.

As Revelações de Moisés, um livro antigo tido em alta conta pelos judeus, faz uma longa narrativa de como os anjos embalsamaram o corpo de Adão.

“E Deus disse a Adão: ‘Eu te instalarei no teu reino, sobre o trono daquele que te enganou, e ele será derrubado neste local (o Calvário), para que te assentes por cima dele’. Ao seu lado foi enterrado o corpo de Abel, e ali deitaram Eva quando morreu, seis dias depois de Adão. Assim, os trinta filhos de Adão sepultaram nossos primeiros pais com o sacerdote Abel a seu lado. E o arcanjo Miguel disse a Set: ‘Sepulta assim todo homem que morrer, até o dia da ressurreição’.”

Citamos isso como um espécime de numerosas tradições orien¬tais duvidosas. A caminho de Damasco, não longe das vastas ruínas de Baalbek, em meio às montanhas do Líbano eles te mostram os sepulcros de Noé e dos patriarcas. Talvez Adão tenha sido sepultado ali e, mais tarde, seu crânio tenha sido subtraído e guardado como relíquia do primeiro pecador e santo. A Igreja, ao honrar as relíquias dos santos, segue os costumes das raças antigas, especialmente dos hebreus. Na Igreja do Santo Sepulcro eles mostram o túmulo de Melquisedec.

Pouco menos de um quilômetro ao sul erguiam-se picos rochosos escarpados, cercados em três lados por vales profundos, que Sem fortificou e chamou de Sião (“a protuberante”). Ali erigiu ele seu palácio, em redor do qual ergueu-se uma cidadezinha que ele chamou de Salém (“paz”), da saudação oriental salama (“paz”), palavra usada até hoje nesses países, assim como dizemos: “Como vai você?”

Nas migrações das tribos, os filhos amaldiçoados de Canaã (Gn 10,16), os jebusitas, os hititas, que os gregos chamavam de fenícios, haviam colonizado a terra, onde tinham construído muitas cidades e vilarejos. Não conhecendo Sem, quem era ele nem donde vinha, chamaram-no de “o Rei Justo”, o Rei de Salém, na língua deles: Melquisedec.

Último dos grandes patriarcas pais das nações, herdeiro da paternidade, da realeza e do sacerdócio de Noé, remontando a antes do dilúvio até Abel e Adão, no seu palácio em Sião, no lugar exato onde Jesus Cristo celebrou a Última Ceia, esse grande rei e sumo- sacerdote oferendou pela primeira vez o pão e vinho da Missa.

Ele era então o último elo com o mundo antediluviano. Não sobreviveu qualquer escrito, registro ou monumento dos tempos anteriores a Deus haver eliminado a maldade do mundo mediante as águas de sua ira, salvo Sem, que os preservara segundo os costumes patriarcais daquela época, quando o filho mais velho era o herdeiro e depositário único de todo o saber, propriedade e sacerdócio de seu pai.

Na Caldeia, em Ur (“luz do luar”), onde a Lua era adorada, cidade que é hoje a decaída Tell el-Muqayyar (“morro construído com betume”), vivia Abraão. O pai dele ganhava a vida fabricando ídolos e os vendendo, diz o Talmude. Mas seu filho não acreditava neles, e Deus lhe deu fé sobrenatural e mandou-o ir para a Palestina, onde ele encontraria esse grande rei-pontífice, do qual aprenderia a religião de Adão, a história da criação, do pecado original do homem, a profecia do Redentor, a história do mundo antes do dilúvio. Conforme o costume patriarcal essas verdades foram legadas a Isaac, a Jacó, aos hebreus como tradições, até que Moisés as coligiu todas no livro do Gênesis.

Dizem os rabinos judeus que Sem chamou a cidadezinha de Salém (“paz”) (S. Agostinho, Enar. in Ps. XXXIII, Ser. 1, V); que, depois de oferecer Isaac em sacrifício no monte Moriá, Abraão nomeou a cidade Jiréh (“posse”); que os dois grandes patriarcas disputaram acerca do nome da cidade, mas afinal chega¬ram a um acordo que consistia em unir as duas palavras, resultando em Jerusalém (“a cidade da paz”) (Young, Concord. of the Bible; Edersheim, Temple, 3; Smith, Dic. of Bible, verbete “Jerusalem”, etc), palavra encontrada seiscentas vezes no Antigo Testamento, e setenta vezes no Novo.

Os hebreus chamavam-na de Ariel (“leão de Deus” ou “lareira de Deus”) (Is 29,1,2,7; Ez 43,15); os judeus helenistas diziam que era a Agia Pólis (“a cidade santa”) (Mt 4,5; 27,53); quando a destruiu Adriano, os romanos nomearam- na Ælia, em homenagem ao primeiro nome dele (Ælius Hadrianus). Era a mais santa de todas as cidades da terra, por causa d’Ele, que fora predito viria e ali redimiria a nossa raça.

Quando Omar, primo de Maomé, capturou-a, os muçulmanos chamaram-na el-Kuds (“a santa”), beit-el-Makdis (“a casa do santo santuário”); es-Sherif (“a venerável” ou “a nobre”). Para eles Jerusalém é um lugar sacratíssimo, onde viveram os profetas que eles retêm inspirados, e aos olhos deles Jerusalém só perde em santidade para Meca, onde nasceu Maomé, e Medina, onde ele viveu.

Sem, portando o nome de Melquisedec, viveu em Sião, estando o seu palácio construído no exato local onde Herodes erigiu o cenáculo onde Jesus Cristo rezou a primeira Missa (Ver Josefo, Antiguid. jud., L. VII, c. III, n. 2). Esse grande “rei-profeta do Deus Altíssimo” (em hebraico, vehu cohen), “trazendo pão e vinho” (Hotseti mincha), ofereceu esse sacrifício em ação de graças pela vitória que Deus concedeu a Abraão; ofertou esse pão e vinho a Deus como imagem da Missa, e não, como escreveu Calvino, como alimento para as tropas de Abraão.

E Abraão “deu-lhe o dízimo de tudo” (Ver Migne, Cursus Comp. S. Scripturæ, v. 47; Gên. XIV, 20). Por que fez isso? Para mostrar que viria um sacerdócio, a oferecer o sacrifício da Missa com o pão e o vinho, que seria superior ao sacerdócio aarônico oferecedor de sacrifícios cruentos, animais sofridamente imolados no Templo pelo corpo sacerdotal que havia de nascer da raça de Abraão.

Abraão deu o dízimo a Melquisedec porque era este o costume naqueles tempos. Os pagãos davam o dízimo, ou seja, a décima parte dos despojos de suas vitórias, para seus sacerdotes (Lívio, L. 6). Diz Xenofonte (Cyro. L. 6):

“Pois desse dinheiro coletado dos cativos, a décima parte consagrada a Apolo ou a Diana de Éfeso recebiam os pretores.”

Agesilau escreve:

“As oferendas, ou seja os frutos da terra, a cada duzentos anos cem talentos ou mais, os efésios dedicam a décima parte disso a Deus.”

Cristo era, então, sacerdote segundo a ordem de Melquisedec quando ofereceu pão e vinho na Última Ceia e sacerdote segundo a ordem de Aarão quando trouxe o cordeiro pascal ao Templo para ser sacrificado (Ver Migne, Cursus Comp. S. Scripture, xxv, 319 a 325, v. 47, etc).

Sem e Abraão adormeceram com seus pais e foram sepultados, um em Sião, o outro em Hebron, sessenta anos se passaram que a história silencia, e os jebusitas, filhos do terceiro filho daquele malvado Canaã, capturaram Sião, fortificaram suas muralhas, e suas moradas ergueram-se em volta da fortaleza de Melquisedec. Eles chamaram a cidade de Jebus (“espezinhada”), em memória de seu pai.

Era um lugar de extraordinária fortaleza. Escavações recentes em Jerusalém expuseram as antigas muralhas, que se estendiam desde perto da porta de Jafa, descendo ao fundo do vale do Tiropeon, a separar Sião de Moriá, e que continuavam ao longo dos declives ao sul e para o oeste, ladeando o vale do Hinom até chegarem ao ponto inicial. Revelam que Sião deve ter sido, naquele tempo, uma acrópole (“uma cidadela”). Chamavam-na então de “a pedra enxuta”. O vale do Tiropeon era então oito, dez e e vinte e quatro metros mais baixo do que hoje, enquanto que ao sul e a oeste erguiam-se as muralhas muitas dezenas de metros acima dos vales do Hinom e do Cedron. Num local um fragmento do antigo muro de Sião ao norte foi construído rente ao penhasco e, embora subisse só até o topo do rochedo atrás de si, tinha ainda assim quase doze metros de altura defronte ao desfiladeiro frontal (recentes escavações em Jerusalém). Isso ficava do lado norte de Sião em face da cidade atual. Ali o terreno era mais plano, onde hoje a longa rua de Davi sobe suavemente da cidade moderna até Sião (Ver Migne, Cursus Comp. S. Scripture, III, 1474, etc).

No repertório de imagens do Antigo Testamento, Sião era protótipo da Igreja com seu Sacrifício Eucarístico, enquanto Jerusalém era emblemática do Céu, e esses sentidos se encontram em centenas de textos (S. Agostinho, Enar. in. Ps. XCVIII, n. iv; Epist. CLXXXVI, n. VIII).

Quando os hebreus vitoriosos sob a liderança de Josué varriam a Palestina, os gabaonitas (“habitantes de colina”) possuíam quatro cidades um pouco ao norte de Jerusalém — sendo uma delas “A cidade sobre a colina que não tem como ser escondida” (Mt 5,14), que ainda pode ser vista cerca de oito quilômetros ao norte de Jerusalém. Eles enganaram Josué (Js 9), e foram condenados a ser “cortadores de lenha e carregadores de água”. Seus descendentes viviam em Ofel e davam alojamento e serviam refeições aos sacerdotes judeus enquanto estes serviam no Templo. Os hebreus não conseguiam tomar Jerusalém, por causa de suas poderosas fortificações. O vale do Hinom dividia então as tribos de Judá e de Benjamim, e mais tarde a linha divisória estendeu-se através do centro do Templo.

Por 824 anos os filhos jebusitas de Canaã possuíram Jerusalém, até Davi (“o amado”) consolidar-se firmemente no seu trono em Hebron. A cidade ficava no elevado contraforte da cordilheira central que cruzava o centro do reino hebreu, e era um lugar de força extraordinária. Depois de ele reinar sete anos em Hebron, todos os chefes das doze tribos juraram lealdade a Davi, consolidando firmemente a dinastia dele.

Saindo de Hebron, trinta e dois quilômetros ao sul, sobre essas colinas da Judeia, Davi fez suas tropas marcharem, cercou Jerusalém e prometeu tornar general de seus exércitos ao primeiro que escalasse as muralhas. Apesar dos defensores cegos e aleijados que haviam sido postos nas muralhas para zombar dos soldados de Davi, Joab (“Jehová é pai”), filho de Sárvia (“bálsamo”), sobrinho de Davi, escalou as muralhas (Josefo, Antiguid. jud., L. VII, c. III, A. I).

“E Davi tomou a fortaleza de Sião, que é a cidade de Davi.” (2Rs 5,7)

“Depois que Davi expulsou da cidadela os jebusitas, ele reconstruiu Jerusalém, nomeou-a Cidade de Davi e ali habitou durante todo o tempo de seu reinado… Ora, depois que escolheu Jerusalém como sua capital real, seus negócios prosperaram cada vez mais pela providência de Deus, que cuidou que se aprimorassem e tivessem incremento. Hirão (“o de nobre estirpe”), rei dos tírios, enviou-lhe embaixadores e formou com ele uma aliança de amizade e apoio mútuo. Enviou-lhe também presentes, mudas de cedro e máquinas, e homens peritos em construção e arquitetura, a fim de construírem para ele um palácio real em Jerusalém. Ora, Davi erigiu edifícios em redor da cidade baixa. Anexou também a cidade baixa, formando com ela um só corpo. E, depois de tudo circundar de muralhas, nomeou Joab para tomar conta delas. Foi Davi, portanto, quem primeiro expulsou os jebusitas de Jerusalém e chamou-a pelo seu nome único de Cidade de Davi, porque sob a égide de nosso antepassado Abraão ela era chamada de Solima ou Salém.” (Josefo, Antiguid. jud., L. VII, c. III, n. 2)

O palácio de Davi ficou célebre. Foi construído no mesmo terreno do palácio de Melquisedec. Ali Davi preparou um lugar para a arca; ali se realizaram as grandes cerimônias mosaicas, até que Salomão construiu o seu famoso Templo sobre Moriá, outro monte, um pouco a nordeste. Desde então, Sião tornou-se um lugar sagrado na história dos hebreus, aí celebraram eles as festas solenes nos dias de Davi, e chamaram Sião de “a montanha santa”.
Nas paredes do palácio, as notificações da administração de Davi, suas leis, etc., eram afixadas. A fortaleza era chamada de Melo (“multidão”), e vistosas casas e palácios se erguiam ao redor do cimo da Cidade de Davi, de Sião e de Melquisedec.

Descendo fundo nos lisos rochedos calcários onde Melquisedec foi sepultado, Davi escavou passagens, aposentos e sepulcros. Ali escondeu ele vastos tesouros, para a construção do Templo que Deus lhe disse que seu filho Salomão edificaria — o ouro e a prata totalizando US$ 19.349.260 atuais, juntamente com bronze, metais e outros tesouros de valor muito mais inestimável. O túmulo dele interessa-nos pelas razões mencionadas mais adiante.

“Ele foi sepultado por seu filho Salomão em Jerusalém, com grande majestade e com todas as outras pompas fúnebres com que soíam ser sepultados os reis. Além disso, ele teve sepultadas consigo grandes e imensas riquezas, cuja vastidão pode-se conjecturar facilmente pelo que direi agora. Pois mil e trezentos anos depois, o sumo sacerdote Hircano, quando cercado por Antíoco, o qual era chamado ‘o piedoso’, abriu um aposento do sepulcro de Davi, tirou trezentos talentos e entregou parte dessa soma a Antíoco, conseguindo por esse meio que o cerco fosse levantado, como informamos ao leitor noutra parte. Depois dele, e isto muitos anos mais tarde, o rei Herodes abriu outro aposento e tirou grande quantidade de dinheiro, e contudo nenhum dos dois chegou até os túmulos dos reis mesmos, porque os corpos deles foram sepultados debaixo da terra com arte tal, que não apareciam nem para os que entrassem nos seus mausoléus” (Josefo, Antiguid. jud., L. VII, c. XV, n. 3. Ver Migne, Cursus Comp. S. Scripturee, 11, 783, etc)

Salomão (“o pacífico”) estendeu uma ponte de pedra atravessando o profundo vale do Tiropeon que separa Sião de Moriá, sob a qual passava aquela que no tempo de Cristo era chamada de Rua dos fabricantes de queijo. Herodes, com sua mania de construção, ampliou essa ponte, que ficou assim com quinze metros e meio de largura e cento e sete metros de comprimento, sua entrada situando-se a sudoeste da área do Templo. Foi através dessa ponte que Cristo e seus apóstolos passaram, quando carregaram o cordeiro para a páscoa ou Última Ceia. Parte da imposta oriental é hoje chamada de arco de Robinson.

Salomão ampliou e fortificou a antiga fortaleza edificada por Melquisedec e Davi. Ali permaneceu a arca da aliança, desde o tempo em que Davi colocou-a no palácio dele, até Salomão terminar seu famoso Templo sobre o monte Moriá (2Rs 6; 3Rs 8). Agora, no terreno do palácio de Melquisedec e do palácio de Davi, erguia-se o grande palácio de Salomão, que levara treze anos para ser construído (3Rs 7). Era famoso por sua majestade e magnitude. Os aposentos da corte, as prisões, os corredores e os salões — era tudo de fino mármore da Judeia e de cedro do Líbano. Foi incendiado e totalmente destruído pelos babilônios, quando capturaram Jerusalém (4Rs 25. Nota – o leitor encontrará as diversas opiniões acerca dessa vasta soma acumulada por Davi em Migne, Cursus Completus Sacre Scripture, vol. II, pp. 637 a 650).

No liso e fundo rochedo judaíta de cor branco-amarelecida que há debaixo daquele palácio, ao lado do sepulcro de Davi foram escavadas outras catacumbas e galerias, e ali Salomão e todos os reis da Judeia foram sepultados junto com a profetisa Holda (“a felina”) (Talmude babilónico, Ebel, 60). Quando Jerusalém foi reedificada, depois do cativeiro da Babilônia, Sião foi outra vez fortificada como cidadela da cidade. Os macabeus ampliaram a fortaleza de Sião e ali viveram como sumos sacerdotes guerreiros. Reforçaram a birah (“fortaleza” no rochedo), a noroeste da área do Templo, que Herodes depois reformou e chamou de Antônia. Ali morou Pilatos, e ali Cristo foi julgado e sentenciado à morte.

Herodes, o idumeu, nascido da tribo de Judá, o último dos reis hebreus, que estava predito reinaria até que viesse o Messias (Gn 49,10), tendo ouvido falar dos imensos tesouros de Davi escondidos em seu sepulcro, antes de começar a construir seu famoso Templo vinte anos antes de nascer Cristo, fez uma busca pelos tesouros que Davi escondera debaixo do seu palácio.

“Quanto a Herodes, despendera ele vastas somas com as cidades tanto dentro como fora do seu próprio reino. E tendo ele sabido que Hircano, que fora rei antes dele, abrira o sepulcro de Davi e dali tirara três mil talentos de prata, e que uma quantia muito maior tinha sido deixada para trás, o bastante aliás para cobrir todas as suas necessidades, ele teve durante um bom tempo intenção de tentar a mesma jogada. E então ele abriu aquele sepulcro durante a noite e ali penetrou, e procurou que não se ficasse sabendo disso na cidade, mas só levou consigo seus amigos fiéis. Dinheiro mesmo, ele não encontrou nenhum, como fizera Hircano, mas o mobiliário de ouro e os bens preciosos que ali tinham sido deixados, todos estes ele os levou. Contudo, ele tinha grande desejo de fazer uma busca mais diligente e adentrar ulteriormente, mesmo indo até aos corpos de Davi e de Salomão, quando dois de seus guardas foram mortos por uma labareda de fogo que irrompeu sobre os que entravam, conforme diz o relato. Aí então, ele ficou terrivelmente amedrontado, saiu dali e construiu um monumento propiciatório, memorial daquele pavor em que estivera, e este de pedra branca, na boca do sepulcro, também isso com grandes despesas.” (Josefo, Antiguid. jud., L. XVI, c. VII, n. I)

Assim, por sobre os sepulcros dos grandes reis foi erguida a pilha de edificações que os romanos chamaram de cenáculo (“o salão de banquetes”) (Ver Migne, Cursus S. Scripture, III, 909), porque ali se celebravam banquetes públicos. Os gregos chamaram-no de huperoon (“alto”) ou de anageon (“formoso”), e os judeus de aliyah (“câmara”), porque era o aposento mais alto e mais amplo, o melhor e mais santo, excetuando-se o Templo, dentre todos os lugares da cidade sagrada no tempo de Cristo. Estava ricamente mobiliado com tapetes, capachos e tapeçarias — suas paredes eram todas decoradas, e sua mobília, suntuosíssima, como convinha àquele edifício em cima dos sepulcros dos reis que dormem nas catacumbas de pedra ali embaixo. Celebravam-se ali os serviços sinagogais, e era a maior e melhor das 480 sinagogas de Jerusalém no tempo de Cristo.

Mencionamos os mortos que dormem debaixo de Sião. As relíquias de reis e de profetas ali repousavam na noite em que Cristo celebrou sobre elas a primeira Missa, e disse: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). Todos os incidentes daquela noite — a sala, os arredores, as funções — imprimiram-se na mente dos apóstolos.

Quando saíram para implantar a Igreja em meio às nações, eles rezaram Missa sobre os restos mortais dos santos e dos mártires. Perseguidos em Roma, eles ofereceram o sacrifício nas catacumbas. Eles mais tarde puseram as relíquias em pedras de altar, e assim, através das idades, esse costume prevaleceu até nossos dias em todos os ritos e liturgias da Cristandade.

O clero de Rito latino usa uma pedra, para pôr sobre ela o Cálice e a Hóstia, e nessa pedra, como num pequeno sepulcro, as relíquias dos santos são postas e como forradas ou lacradas, assim como o foram as relíquias dos profetas e reis debaixo do cenáculo. Os cristãos orientais, que só usam seda para as toalhas de altar, põem as relíquias dos santos nas duplas pregas de seda que formam o revestimento do altar, sobre o qual descansam os Elementos Eucarísticos.

Todos os cristãos orientais seguem o mesmo costume. Seguimos seu rastro no passado remontando até aos tempos apostólicos, para além das perseguições romanas e antes mesmo do que as catacumbas. Alguns autores dizem que se originou nas catacumbas, mas indo mais fundo descobrirão que provém da Última Ceia.

Quando os apóstolos saíram para fundar igrejas, em muitas terras eles encontraram costumes de sepultar os mortos venerandos dentro de pirâmides (“com formato de labareda”) e de túmulos (“montículos”), enquanto os gregos chamavam seu cemitério de necrópole (“cidade dos mortos”). Os cristãos seguiram as lições de Sião e da Última Ceia. Em galerias, debaixo das igrejas, os primeiros cristãos enterraram seus mortos. O costume foi seguido até os tempos modernos na Europa, onde personagens históricos dormem ainda nas igrejas. Aqui nos E.U.A., sepultam-se os bispos debaixo das catedrais. Esses costumes remontam a Sião e ao cenáculo.

Sião é um monte mais elevado que o de Moriá, a nordeste, onde se erguia a “casa de ouro” do grande Templo, refletindo sobre a cidade a luz do sol. Sião fica 800 metros acima do nível do mar, e 1.200 metros acima do Mar Morto. O Templo, com seu sacerdócio e sacrifícios, devia cessar. A Igreja, com seu sacerdócio e Sacrifício
Eucarístico, havia de ser eterna. Por isso, ao longo do Antigo Testamento, 177 vezes os profetas, com palavras candentes, manam as glórias de Sião, imagem da Igreja, ao mesmo tempo que condenam Moriá, com seu sacerdócio judaico desviado.

No tempo de Cristo, em torno do cenáculo erguiam-se as casas dos judeus mais abastados, dos ricos fariseus, dos doutos escribas, dos juízes do sinédrio. José Caifás e seu sogro Anás tinham ali palácios dignos de príncipes. Sião era o quarteirão residencial aristocrático de Jerusalém. Logo, quando nós escolhemos os bairros mais ricos e mais abastados de nossas cidades como terrenos para nossas catedrais e igrejas, nós seguimos, talvez sem pensar, o exemplo de Cristo quando celebrou a primeira Missa em Sião.

O cenáculo pertencia à família de Davi. A Mãe do Senhor era Princesa da família real e herdeira de Davi. Por isso, Cristo, Príncipe da Casa de Davi, tinha direito ao edifício. José de Arimateia e Nicodemos eram os líderes da assembleia sinagogal que prestava culto no cenáculo. Ali reuniram-se os apóstolos, os discípulos e os seguidores de Cristo para os serviços sinagogais, naquela histórica noite da Quinta-Feira, e também naquela véspera de shabat enquanto o corpo do Senhor jazia no sepulcro. Ali permaneceram eles durante essas quarenta horas, até que ele ressurgiu dos mortos. Daquele lugar, seguiram-no 500 pessoas, descendo o vale do Tiropeon, atravessando o Cedron e subindo as encostas do Olivete, no dia da Ascensão. Ao subir o monte das Oliveiras, que os árabes chamam hoje de gebel et-tur, o Senhor, antes de subir aos céus, mandou Tiago tomar conta dos discípulos em Jerusalém.

Dia após dia eles se reuniam ali para os serviços sinagogais, preparando-se para a festa de Pentecostes, à espera do prometido Paráclito. Eles estavam no cenáculo nesse dia, quando, às nove da manhã, o Espírito Santo — a nuvem de fogo da Shekiná da sarça ardente, do Sinai, do tabernáculo, do Templo e do Tabor — encheu a sala da Última Ceia e choveu línguas de fogo sobre eles, dando a cada apóstolo ciência da língua da nação para a qual havia de pregar.

“Naquela quarta-feira”, diz um escritor antigo (Dion. Barsilibus, Hist. da Liturgia de S. Tiago), “São Tiago primeiro rezou a Missa segundo sua Liturgia, que ele declarou ter recebido do Senhor, sem mudar palavra.” Os apóstolos utilizaram o cenáculo como igreja enquanto permaneceram em Jerusalém. Ao mesmo tempo que o exército romano, sob a égide de Tito, descia em marcha, do norte, para sitiar a cidade santa, no Ano do Senhor 70, Simeão, que fora eleito bispo depois de Tiago ter sido jogado do pináculo do Templo e morto com uma pedra de pisoeiro, pregou sobre as palavras do Senhor que prediziam o terrível cerco e destruição da cidade, e avisou-lhes que fugissem. Numa ribanceira a leste do Mar da Galileia, aninhava-se então a cidadezinha de Pela, e ali encontraram eles um lar enquanto perdurou a guerra, após o que retornaram, para encontrar Jerusalém como um amontoado de ruínas.

Em redor da torre Antônia e do Templo, havia se travado o combate renhido que Josefo descreve tão vividamente (Guerr. jud.). Os romanos ignoravam de todo o grupelho de cristãos que exercia o culto no cenáculo, e o edifício sofreu poucos danos. Depois da guerra, a Liturgia da Missa de São Tiago voltou a ser seguida. O cenáculo foi chamado de “Igreja dos Apóstolos” ou “Igreja de Sião”. Os peregrinos nos primeiros tempos fizeram referência a ela.

Uma vez mais os judeus se rebelaram, e Adriano arrasou a cidade e as muralhas, passou a charrua sobre ela e proibiu os judeus, sob pena de morte, de entrar nela, exceto uma vez por ano para celebrarem a páscoa. O santo edifício da Última Ceia sobrevivera às calamidades de duas guerras. Os clérigos sírios hoje chamados de maronitas serviam então ao povo. Eusébio, o afamado historiador, cita uma lista de quinze bispos de origem hebreia, e vinte e quatro de família gentia, que governaram a Sé de Jerusalém.

Um século e meio se passou, e Silvestre sentou-se no trono da suprema Sé Apostólica, que Pedro estabelecera em Roma, de cujos bispos Eusébio menciona vinte e nove nomes começando por Pedro e trazendo-os até o Concílio de Niceia, em 325. A imperatriz Helena, mãe de Constantino, depois da conversão do filho, foi até Jerusalém.

Era fácil descobrir onde dormiam os famosos reis, e o edifício em que o Senhor rezou a primeira Missa ainda estava de pé. Jerusalém, então como agora, era feita de pedras, com todas as salas e tetos arqueados. Não dava para queimar as edificações, porque a madeira está somente nas portas e janelas. Apenas o homem ou um terremoto poderiam arruinar Jerusalém.

Seguindo as ordens de Helena, o cenáculo foi purificado, consagrado, e nele se rezou Missa novamente. Tornou-se sede de um arcebispo — uma Sé patriarcal que só perdia em importância para a de Roma e a de Alexandria. No cenáculo eles rezavam Missa segundo a Liturgia de São Tiago, e segundo a Missa que São Pedro compôs em Antioquia. A primeira está escrita em grego, a segunda em siro-caldeu, a língua do povo da Judeia no tempo de Cristo. A Igreja de Jerusalém, tendo o cenáculo como catedral, floresceu até o Ano do Senhor 636, quando chegaram com fogo e espada os fanáticos seguidores do falso profeta da Arábia. Omar, primo de Maomé, veio e negociou com o patriarca Sofrônio a rendição da cidade santa. Tratou os cristãos com benevolência, deu-lhes a Igreja do Santo Sepulcro e o cenáculo, retendo para os maometanos o lugar do Templo.

Sacerdotes maronitas ministraram para os cristãos até que vieram os cruzados, depois do que, a pedido de seu fundador, São Francisco, que foi a Jerusalém, o cenáculo caiu em mãos dos padres franciscanos, que o conservaram por mais de 200 anos. Aí então uns maometanos, alegando descendência direta da família de Davi, expulsaram os frades e até hoje servem de guardiães do cenáculo, chamando-o de bab neby Daud (“a casa do profeta Davi”).

Era um dia claro de abril em 1903, quando começamos a subir a rua de Davi, que escala pelo sul a santa montanha. À direita passamos pela escura e fortificada Torre de Davi, um pouco a sul da porta de Jafa, usada hoje como quartel turco. Suas pedras enormes parecem bastante envelhecidas e enegrecidas para terem sido postas ali pelo régio profeta. Do lado oposto ficam o Cook’s office, uma escola protestante, e mais acima o local da casa do apóstolo Tomé. Mais adiante à tua esquerda chegas à igreja armênia, construída sobre o local onde eles afirmam que morou São Tiago, o primeiro bispo de Jerusalém. Próximo ao trono do bispo, no santuário, eles te mostram seu sepulcro. Fora dos muros, a leste da área do Templo, escavado na rocha natural o sepulcro dele permanece ainda. Por que o sepultaram no interior da cidade não sabemos, uma vez que as leis judaicas proibiam sepultamentos dentro dos muros sagrados. Talvez as relíquias dele tenham sido trazidas até a igreja que fica em Sião.

O terreno agora é plano, e, continuando na direção sul, tu chegas ao lugar da mansão ou palácio de Caifás, onde Cristo foi julgado e condenado à morte duas vezes. Uma igrejinha ocupa o terreno. Tem seis metros e meio por oito metros, construída com a pedra calcária cinzenta da Judeia. Seis colunas quadradas, três de cada lado, sustentam o teto de pedra abobadado. As inscrições te informam de que seis bispos foram sepultados sob o edifício. Na parte oriental fica o santuário, sua pedra de altar sendo a pedra de rolamento chata e redonda com que fecharam a porta do sepulcro do Cristo morto. À direita, ou a sul do altar, no interior do presbitério há um pequeno aposento de pedra acima da cela no porão, no qual eles aprisionaram Cristo naquela noite até poderem reunir o tribunal de manhãzinha a fim de sentenciá-lo legalmente, porque eram proibidas pela lei judaica as sessões noturnas do tribunal.

A igreja ocupa apenas uma pequena parte do palácio do sumo sacerdote. No jardim detrás da igreja eles haviam escavado e removido um pouco dos detritos dos séculos, descobrindo um belo e amplo pavimento em mosaico, feito de pequenos mármores quadrados coloridos, trabalhados com arte, formando flores e lindos tracejados — talvez o piso da casa de Caifás. O trabalho de metade de um dia teria revelado quase todo o jardim e o restante das figuras. Mas os turcos proibiram novas escavações, para não acontecer de os cristãos descobrirem o sepulcro e o tesouro de Davi.

Agora, na encosta sul, no cume e nos subúrbios de Sião, os detritos das muradas e das casas destruídas séculos atrás recobrem os campos e os jardins. Tu verás os homens escavando os terrenos das ricas moradas dos escribas, dos fariseus, dos sacerdotes e dos juízes que sentenciaram o Deus-Homem à morte, realizando as palavras do profeta, que Jeremias cita:

“Vós que edificais Sião com sangue, e Jerusalém com a iniquidade. Os príncipes dela têm juízes a soldo de subornos… Por isso, por vossa causa Sião será lavrada como um campo, e Jerusalém tornar-se-á um montão de pedras, e a montanha do Templo, como os lugares da floresta.” (Jr 26,18; Mq 3,10-12)

Tu atravessas os muros e sais pela antes chamada porta de Sião, que agora os muçulmanos nomeiam bab en neby Daud (“porta do profeta Davi”); à tua direita, circundado por um muro, está o cemitério armênio, e mais adiante o cemitério protestante. Tu andas um pouco para oeste, até onde o palácio de Melquisedec ergueu-se um dia, e lá embaixo avistas o fundo vale do Hinom, a cinquenta metros abaixo de ti, onde vês a fonte de Gion parcialmente cheia de água. À tua esquerda, a leste, está o vale do Tiropeon, depois vem o monte onde ficava Ofel, embaixo a área do Templo, depois o Cedron e o Getsêmani — de todos os lados à tua volta se erguem túmulos, e a leste fica o monte das Oliveiras —, tudo a inspirar memórias de incidentes históricos.

Percorrendo com os olhos a terra ali embaixo, estirada como um mapa diante de ti, histórias maravilhosas do passado acorrem à mente. Ali Salomão foi coroado. Ali defronte está o monte, com o seu íngreme lado leste voltado para ti, no qual Judas se enforcou, naquela fatídica manhã da Sexta-Feira da Crucificação, quando o corpo dele caiu de uma altura de vinte e dois metros na estrada lá embaixo, e suas entranhas vazaram para fora. É o local exato onde os perversos Acab e Manassés queimavam criancinhas para o deus-fogo Moloc, naquele maldito Tofet, onde eram evacuados os esgotos da cidade, onde fogueiras perpétuas eram alimentadas para consumir o lixo, carcaças animais e criminosos. Bem se fez de nomeá-lo Tofet e Geena. É uma imagem daquele inferno aonde desceu a alma do apóstolo infiel ao Mestre.

Uns oitocentos metros ao sul, os dois vales, do Hinom e do Cedron, se juntam formando a garganta que leva as suas águas, no inverno e na primavera, por uma descida de uns seis quilômetros e meio até o Mar Morto. Quase suspensos aos penhascos ocidentais do monte do Mau Conselho, no qual Salomão erigiu templos para os deuses de suas esposas pagãs, tu vês as casas e os túmulos vazios dos muçulmanos, indigentes em sua ignorância, pobreza e imundície — muitos deles acometidos de lepra. Aquela é Siloé (“piscina de pulgas”), pois naquela piscina à tua frente eles lavavam os cordeiros para o Templo e para a páscoa judaica. Ali Cristo mandou o homem untar seus olhos cegos com a lama da piscina, quando recuperou a vista.

Sião, imagem da Igreja universal, cujas glórias foram cantadas pelos profetas, hoje fora dos muros, tornou-se um descampado. Quem cultiva esses campos? Vem comigo, gentil leitor, e vê um espécime de seus habitantes. Estamos subindo o barranco do Cedron, saindo do lugar ali embaixo onde Judas se enforcou. À nossa direita, as miseráveis casas de pedra e sepulcros de Seilum agarram-se à colina íngreme. À nossa esquerda está a Fonte da Virgem, chamada agora de ed derez (“fonte com degraus”), que jorra ainda dos reservatórios subterrâneos que Salomão escavou debaixo do Templo e da cidade.

Acima de nós, a uns três metros de distância quase em cima de nós, ali como uma aparição, de súbito aparece uma mulher de uns vinte e cinco anos, com seus pés descalços quase na mesma altura de nossas cabeças. Sobre uma massa emaranhada de cabelos pretos, que formam uma almofada sobre a cabeça dela, apoia-se um vaso d’água arredondado de cerâmica, com formato similar aos da época dos reis de Judá. Ela tinha acabado de tirar aquela água da Fonte da Virgem. Sua única veste, de pele de carneiro, áspera e espessa como um tapete, está tão coberta e permeada de sujeira, por tê-la usado dia e noite por anos a fio, que as crostas sujas se podiam raspar com uma enxadinha. Mal chega até os joelhos, e as pontas esfarrapadas estão penduradas em filetes imundos. Seus seios estão desnudos, e há furos enormes rasgados na roupa debaixo dos braços. Se ela lavasse o traje, este se esfacelaria, porque a sujeira ressequida é que o mantém numa só peça.

A pele dela é da cor do cobre antigo. Fanatismo, sujeira, degradação e feminilidade aviltada estão escritos em cada traço e gesto seu, enquanto ela fica ali plantada como uma estátua de bronze e, através de dentes pretos apodrecidos, berra em arábico a alguém na povoação de Seilum, do outro lado do vale do Cedron. Ela é a esposa ou filha de um fazendeiro que cultiva os campos de Sião, ora desolados e desabitados.

Um pouco ao sul do cimo do monte Sião, mas fora das muralhas da cidade edificadas pelos muçulmanos no século VII, cerca de cento e vinte metros ao sul do terreno do palácio de José Caifás ergue-se a antiga pilha de edifícios do cenáculo, enegrecidos pelo tempo e com o aspecto de terem sobrevivido às borrascas de vinte séculos. Compõe-se de vários edifícios, empenas e laterais, alguns de um andar, outros de dois. Ali, guardada por muçulmanos, tu encontras a sala superior onde Cristo rezou a Primeira Missa.

Do lado de fora, uma escadaria de pedra de uns três metros e meio leva ao terraço do edifício adjacente; subindo e passando para a esquerda, tu caminhas em cima das pedras cimentadas que formam o terraço que cobre os aposentos abobadados abaixo e atravessando uma porta tu entras na “sala superior” do Evangelho e da história. Quatro janelas ao sul iluminam a sala.

O aposento tem cerca de quinze metros por nove metros, e duas colunas quadradas de pedra no centro sustentam o teto arqueado. O piso é de pedras lisas irregulares cimentadas juntas. A leste fica uma alcova semelhante ao presbitério ou santuário de uma igreja, fechada por uma grade de ferro. No tempo de Cristo, formava o Bimá ou santuário, e deu origem ao santuário de nossas igrejas. Ligada à parede à tua direita há uma escada de degraus altos de pedra subindo até outro aposento, cerca de três metros mais alto do que o piso do cenáculo. Tu sobes, entras e, à tua esquerda, através de uma cancela de ferro bloqueando a porta, tu vês um catafalco coberto com um baldaquino de seda desbotado, recordando-te do catafalco utilizado em nossas igrejas nas Missas de réquiem sem corpo presente. No fundo dos penhascos de Sião repousam, sob estes aposentos, os corpos de Melquisedec, de Davi, de Salomão e dos reis da dinastia de Davi.

As paredes de todas as salas estão enegrecidas pela passagem das eras. As decorações da sinagoga, da Última Ceia e das Missas dos tempos apostólicos já não aparecem. O teto arqueado, os capitéis ornados das duas colunas, as grandes pedras das paredes e tetos, as ogivas esculpidas do Bimá onde repousava a “arca” da sinagoga — tudo deixa transparecer grande antiguidade. Eles te indicam o lugar exato onde Jesus Cristo reclinou-se com seus discípulos naquela noite histórica.

À tua esquerda ao entrares no cenáculo, no canto, uma escada de degraus de pedra desce aos aposentos inferiores. A porta debaixo estava aberta, e o autor começou a descer. O muçulmano correu à sua frente, fechou a porta e o proibiu. Eles não deixam um estranho entrar nos seus dormitórios femininos. O autor esteve em negociações com eles para entrar no sepulcro de Davi antes de ir embora da cidade; surgiram empecilhos, foi pedida uma grande soma como adiantamento, exigiu-se firma do sultão — que era quase impossível de obter, a fim de que não se encontrasse o tesouro de Davi —, as escavações iam levar semanas e poderiam ser interrompidas a qualquer momento, e o projeto foi abandonado.

A prática de ocultar com arte os corpos dos defuntos os hebreus trouxeram consigo do Egito. Tu verificarás que Quéops, na sua pirâmide perto do Cairo, usou meios notáveis para esconder seu corpo na urna de pedra no interior do “aposento do rei”, e diversos meios se usavam para encobrir as múmias, os restos mortais dos nobres, nos ermos sepulcros deles ao longo do vale do Nilo.

Em 1839, foi permitido a alguns judeus ver os sepulcros dos seus reis em Sião. Mais tarde, Miss Barclay desceu até o que ela julgou ser o sepulcro de Davi, e diz ela:

“A sala é insignificante em suas dimensões, mas está decorada belissimamente. O sepulcro é aparentemente um imenso sarcófago de pedra bruta e está revestido de uma tapeçaria verde ricamente ornada de ouro. Um pavilhão acetinado de listras vermelhas, azuis, verdes e amarelas cobre o sepulcro, e outra peça de tapeçaria de veludo preto, bordado com prata, reveste a porta numa extremidade do aposento, que eles dizem levar a uma caverna subterrânea. Há dois castiçais de prata diante dessa porta, e uma lamparina pendurada em cima da janela próxima, a qual é mantida ardendo ininterruptamente.” (City of the Great King (“A Cidade do Grande Rei”), p. 212)

O catafalco que o autor viu não era tão enfeitado como o que ela descreve, e os revestimentos estavam desbotados

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