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Dignidade do homem

Dignidade do homem, Tesouros de Cornélio à Lápide

O homem é criado à imagem de Deus

Deus tirou o universo do nada: um só sinal de sua vontade, aquela única palavra fiat (“faça-se”) bastou. Para governar a este universo faltava um chefe, um rei. Tudo já existia, menos aquele rei que devia reinar sobre todo a criação, posto que tudo fora criado para ele.

Então, a Augusta Trindade entrou como em conselho, e pronunciou logo solenemente a seguinte decisão: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem mostram – Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (Gn 1, 26). Somente o homem foi criado à imagem de Deus. Por isso, o homem é a finalidade, o objeto do mundo criado.

Clemente de Alexandria chama ao homem de Planta Celestial: Planta coelestis (Lib. Strom.); porque tem suas raízes no Céu. As plantas têm suas raízes na terra; porém, o homem tem sua raiz em regiões superiores; a árvore nutre-se da terra; porém, o homem não pode viver senão do Céu.

Que maior honra poderia apetecer ao homem, questiona Santo Ambrósio, que o haver sido criado à imagem de seu Criador? Quis major honor homini potuit esse, quam ut ad similitudinem sui factoris conderetur? (Lib. De Dignit. Humanae Condit., c. III).

Se examinarmos fielmente e com prudência a origem de nossa criação, diz o Papa São Leão, veremos que o homem foi feito à imagem de Deus, a fim de que imite a seu divino Autor; pois a dignidade de nossa raça consiste em que a semelhança da Divindade brilhe em nós como em um espelho[1].

Homem animal, que te rebaixas até fazer-te semelhante aos animais selvagens; e muitas vezes, até fazer-te inferior a eles, e invejas seu estado, é necessário que hoje compreendas tua dignidade pelas admiráveis singularidades de tua criação e pelas outras honras que te foram tributadas. Vós fostes criados, não como as outras criaturas, por uma palavra de mandato: Fiat, Faça-se; mas por uma palavra de conselho: Faciamus, Façamos.

Deus toma conselho Consigo mesmo, como quem pretende fazer uma obra prima. Antes do homem, tudo o que Deus havia criado no universo era incapaz de conhecer, amar, servir a seu Criador e de possuí-Lo. Deus deu ao homem todas estas prerrogativas divinas, por cuja razão, para formá-lo, não Se propôs outro modelo senão a Si mesmo.

Por meio destas palavras: “Façamos ao homem à nossa imagem e semelhança”, Deus expressa todas as formosuras do homem e, ademais, todas as riquezas que lhe deu com sua graça, entendimento, vontade, retidão, inocência, conhecimento claro de Deus, amor infuso deste Primeiro Ser, e segurança de gozar com Ele da mesma felicidade.

Façamos o homem”… a estas palavras aparece a imagem da Augusta Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo.

Semelhante ao Pai, tem o ser; semelhante ao Filho, tem a inteligência; semelhante ao Espírito Santo, tem o amor. Deus tem a inteligência, a vontade, o amor. O homem, feito à imagem de Deus, possui também a inteligência, a vontade e o amor. Eis aqui a imagem da Santíssima Trindade; é o cumprimento daquelas palavras: Façamos ao homem à nossa imagem e semelhança – Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram (Gn 1, 26).

O homem parece-se com Deus por três conceitos:

1.° Por natureza, porque somos de uma natureza racional e inteligente, assim como Deus é também razoável e inteligente;

2.° Pela graça, que, diz São Bernardo, consiste nas virtudes; e

3.° A semelhança perfeita e infinita com Deus terá lugar no céu, com a Presença e a Glória beatífica.

Tributemos a honra que é devida, diz São Gregório Nazianzeno, à imagem de Deus que está em nós; reconheçamos nossa dignidade: Imaginem Deus imagini reddamus, dignitatem nostram agnoscamus (Serm. de Nativit.).

A imagem natural de Deus está na alma, que é espírito, que não é material, que é ágil, imensa, inteligente, livre, imortal. Esta imagem de Deus é natural no homem; não se pode ter perdido pelo pecado de Adão; porém, perdeu sua formosura e perfeição.

É outra imagem de Deus no homem, uma imagem sobrenatural, que consiste na graça e justificação do homem, pela qual o homem faz-se partícipe da natureza divina; e esta imagem será cabal na glória e na vida eterna. Porque a graça, diz Santo Agostinho, é a alma da alma: Gratia est anima animae (Trat. de Cogn. Verae Vitae).

Adão foi criado nesta graça, que é uma verdadeira imagem de Deus. Esta semelhança da alma com Deus pela graça depende da vontade do homem; pecando, perde-a; porém, pela graça e pela justificação, volta a encontrá-la e reabilita-se.

Somente o homem foi criado à semelhança de Deus. O sol, que tão resplandecente é e belo não está feito à imagem de Deus. A lua e a estrelas, que adornam o firmamento, não foram feitas à imagem de Deus. A terra e suas variadas produções não foram, tampouco, feitas à imagem de Deus. O vasto Oceano, apesar de sua imensidade, não foi feito à imagem de Deus. Somente o homem e o Anjo possuem essa prerrogativa infinitamente preciosa.

Ó homem, exclama São Pedro Crisólogo, por que, sendo tão honrado por Deus, desonras a ti mesmo? Por que és tão vil a teus olhos, tu, tão grande e precioso aos olhos de Deus? Não vês que, ao desonrar-te, desonras a Deus, cuja imagem és? (Serm.).

Preço inestimável do homem

Esta natureza racional do homem, que constitui a imagem de Deus, encerra seis qualidades principais, seis propriedades excelentes:

1.a A alma é espiritual e indivisível, como Deus também é espírito indivisível;

2.a A alma é imortal;

3.a Está dotada de inteligência, vontade e memória;

4.a Goza do livre arbítrio;

5.a É apta para a sabedoria, a virtude, a graça, a beatitude, a visão de Deus e todo o bem;

6.a A alma preside e domina, com seu poder, tudo no homem e na criação; e acrescente-se uma sétima propriedade:

7.a Assim como todas as coisas estão eminentemente contidas e encerradas em Deus, assim também se acham todas as coisas no homem. Com sua inteligência, de tudo se apropria, porque representa em seu espírito uma imagem ou semelhança de tudo o que há. As coisas mais preciosas, diz São João Crisóstomo, não se podem comparar a alma, nem tampouco o mundo inteiro: Nullius rei pretium est cum anima conferendum, ne totus quidem numdus (Homil. III, in Epist. ad Cor.).

Jamais tivéssemos conhecido nossa grandeza, não haveríamos tampouco compreendido jamais nosso alto destino, sem o auxílio da revelação da Sagrada Escritura.

O Senhor Deus, diz o Gênesis, derramou sobre o rosto do homem um sopro de vida, e este tornou-se o homem vivente com alma racional: Dominus Deus inspiravit in faciem ejus spiraculum vitae, et factus est homo in animam viventem (Gn 2, 7).

E não é que Deus tenha boca, como os homens, para dar um sopro; mas a Escritura fala assim para dar-nos a entender que Deus estima a alma e a quer como uma emanação de Sua própria vida. É bem verdade que tirou nossa alma do nada, como o fez a todas as demais criaturas; porém, ao revelar-nos o Espírito Santo que foi um sopro divino, quer nos dizer que Deus a produziu com um afeto tão particular e tão terno, que é como se a houvesse tirado das regiões de Seu Coração.

Ademais, a Sagrada Escritura não nos diz que Deus fez nossa alma com suas mãos, como nosso corpo, nem que a tenha criado falando, do modo como criou a todos os demais seres; mas respirando, aspirando, para dar-nos a entender que é como se houvesse dado nascimento a uma queridíssima concepção que lavara em Suas entranhas durante toda a eternidade.

É como se a Sagrada Escritura dissesse que a alma procede do interior de Deus, assim como a respiração ou o sopro não é mais do que uma saída ou entrada contínua de ar que vai a visitar o coração,… não lhe deixa mais que um breve momento, e logo volta a ele a ponto de refrescá-lo e conservar-lhe a vida. Da mesma maneira, nossa alma não saiu de Deus senão para voltar a entrar Nele; Ele não a expirou senão para voltar a aspirá-la novamente. Pois, se ela aliviou, de certo modo, o Seu coração ao sair Dele, parece que O alivia e O consola, de certo modo, quando ali mesmo volta por alguma amorosa inspiração. Ó se soubéssemos o que significa a nossa alma para o coração de Deus! Não pode viver sem ela; o mesmo Deus não está contente sem ela!

Vede o laço admirável que Deus quis fixar entre seu Espírito e o nosso.

O Espírito Santo é uma sagrada emanação do coração de Deus, emanação que o cumula de uma maneira infinita em Si mesmo; e nossa alma é um sopro de Deus, sopro que Lhe dá complacência até fora de Si mesmo. O Espírito Santo é a última das inefáveis produções de Deus em Si mesmo; e nossa alma é a última de todas as admiráveis produções de Deus fora de Si mesmo.

A alma está tão admiravelmente elevada acima do corpo, que se pode dizer que se aproxima mais de Deus que Lhe criou, que ao corpo ao qual está unida. E, para dizer a verdade, somente ela, entre todas as criaturas da terra, tem alguns rasgos visíveis das perfeições de Deus; ela é mais elevada que o Céu, mais profunda que o abismo, mais vasta que o universo, ela é tão duradoura como a eternidade.

  • Deus é espírito, e a alma é espírito;
  • Deus é simples e indivisível, e a alma é simples e indivisível;
  • Deus é imóvel, tudo põe em movimento e vivifica, e a alma age igualmente em relação ao corpo ao qual anima;
  • Deus é inteligente, e a alma é inteligente;
  • Deus quer, e a alma quer;
  • Deus ama-se, e a alma, amando a Deus, ama-se verdadeiramente a si mesma;
  • Deus fez todas as coisas, e a alma opera, e os limites de sua ação não se podem assinalar;
  • Deus é livre e domina todas as coisas criadas, e a alma tem o livre arbítrio, e segundo sua vontade, move os membros do corpo;
  • Deus tudo tem presente em Sua memória, e a alma possui também esta faculdade;
  • Deus é onipotente, e o homem, se o quer, dispõe do poder divino, faz coisas admiráveis e compreende outra multidão de coisas na extensão de seu espírito;
  • Deus é o fim de todas as coisas, e o homem é o fim de todas as criaturas;
  • Deus está todo no mundo e todo em cada parte do mundo; e a alma também rege o corpo, e está inteira no corpo, e inteira em cada um de suas partes.
  • Além disso, o que é mais perfeito, como Deus Pai, conhecendo-se com sua inteligência, produz o Verbo, seu Filho, e amando-O, produz ao Espírito Santo; assim também o homem, conhecendo-se, produz em sua alma um palavra inteligente, expressão de si mesmo, e dali procede o amor em sua vontade, diz Santo Agostinho (Serm. XXIV, de Temp.).

A alma participa da nobreza, do domínio, da sabedoria, da grandeza de Deus e de seu divino Espírito.

Não vos admireis, pois, que Santo Agostinho diga que salvar a uma alma é coisa maior que criar o Céu e a terra (Serm. XXIV, de Temp.). De todas as profissões, a mais divina é a de ser cooperador de Deus, dedicado a levar as almas a seu Criador.

Se separais, diz o Senhor por meio de Jeremias, o que tem muito preço daquilo que é depreciável, sereis, de certo modo, a minha boca: Si separaveris pretiosum a vili, quase os meum oris (Jr 15, 19).

A alma é uma pedra preciosa que vale mais que o mundo inteiro; porque, feita à imagem de Deus, participa do mesmo Deus; é como parte de sua aspiração divina. Por este motivo, Santo Agostinho e Santo Tomás ensinam que a conversão e a justificação do pecador é mais difícil, maior e mais admirável que a criação do mundo.

São João Crisóstomo ensina que converter uma alma é um dom maior e mais agradável a Deus que Lhe erigir um templo. Por mais considerável que sejam as quantidades de dinheiro que se consagram a construir um templo magnífico, nada são quando comparadas com a salvação de uma alma e com seu valor. Salvar a uma alma é uma esmola maior que dar dez mil talentos, que dar o universo mesmo, se isso fosse possível; porque uma alma é mais preciosa que tudo quanto existe; é de um valor infinito, posto que custou o Sangue de um Deus; e tudo foi feito para o homem, o Céu, a terra, os mares, o sol, as estrelas, os animais, as plantas, os vegetais e os minerais.

Ainda quando toda a terra se transformasse em ouro puro, diz Fílon, ou ainda quando se tornasse outra coisa, todavia, mais rica, e todos os arquitetos, todos os joalheiros, empregassem todo esse rico material para levantar pórticos, vestíbulos e palácios a Deus, nem sequer tudo isso seria digno de servir de escabelo a seus pés; e uma alma em estado de graça é digna de receber-Lhe e hospedá-Lo (Lib. de Cherub.).

Império do homem

Senhor, diz o Rei Profeta, colocastes ao homem quase ao pé de igualdade com os Anjos; o e coroastes de glória e de honra; Vós lhe destes o império sobre todas as obras de vossas mãos: Minuisti eum paulo minus eum supera b angelis, gloria et honore coronasti eum, et constituisti eum super opera manuum tuarum (Sl 8, 6).

Tudo o pusestes a seus pés: os rebanhos, os animais do campo, as aves do Céu, os peixes do mar que tem suas ondas: Omnia subjecisti sub pedibus ejus; oves et boves universas, insuper et pecora campi, volucres coeli et pisces maris qui perambulant semitas maris (Sl 8, 8).

Tudo vos pertence, disse o grande Apóstolo aos Coríntios; vós, entretanto, sois de Jesus Cristo, e Jesus Cristo é de Deus, seu Pai: Omnia vestra sunt, vos autem Christi, Christum autem Dei (1 Cor 1, 22-23).

A alma no homem é diretora e dona, reina sozinha, não somente sobre todos os membros, senão ainda sobre todos os sentidos, as paixões, os pensamentos e os desejos. Assim, pois, é preciso que refreie suas concupiscências e seus desregrados apetites, e que não se deixe jamais governar e dominar por eles. Refreai vosso corpo com a razão, como diz São Basílio, assim como o escudeiro refreia seu cavalo com o freio (Homil. X).

Façamos o homem, disse o Senhor, à nossa imagem e semelhança, e domine aos peixes do mar, e às aves do Céu, e às feras, e a toda a terra, e a todo réptil que se mova sobre a terra (Gn 1, 26). Deus fez, portanto, o homem como rei de todas as coisas; o palácio do universo foi construído e adornado para o homem-rei.

O mundo é o templo de Deus; o homem é seu sacerdote para orar e dar graças a Deus em nome de todas as criaturas; pois, somente ele possui a razão e a palavra. Todas as criaturas põem suas riquezas aos pés do homem-rei; elas mesmas oferecem-se a seu serviço; porém, dizem: Estamos sob as tuas ordens; leva ao trono de Deus tuas adorações por nós e por ti. Tudo é teu; usai-o por Deus, e também dá graças por tudo a Deus, que nos criou para ti. Nosso fim é servir-te, e o teu, ó homem, que és nosso rei, é o de servir a Deus.

O homem, diz Santo Ambrósio, foi criado por último por justíssimas razões: havendo tudo sido feito para servir ao homem, tudo devia preceder-lhe para tributar- lhe homenagem e oferecer-se às suas necessidades. Foi feito por último como para reunir em si mesmo todo o universo, como sendo a causa do mundo para a qual tudo foi feito, como tendo por propriedade todos os elementos e morando neles. Vive entre as feras selvagens, nada com os peixes, voa sobre os pássaros, e trava conversação com os Anjos; habita a terra e sobe ao Céu; atravessa os mares, e, cultivador da terra, peregrino sobre as ondas, pescador nas águas e atravessando os ares, é o herdeiro e o dono da terra e do Céu (Lib. VI, Epist. XXXVIII).

Não cabe dúvida que o homem foi feito para reinar. Por que, portanto, ó homem-rei, exclama São Basílio, fazes-te escravo de tuas miseráveis inclinações? Por que te fazes escravo do pecado? Por que te proclamas cativo do demônio? Deus manda-te ocupar o primeiro lugar entre as criaturas […] e tu destróis teu reino, rompes teu domínio e teu cetro, e ocupas o último lugar? Foste feito para a tudo dominar, e tudo te domina. Tudo deve te obedecer, e tu obedeces a tudo! Que caos mais espantoso! (Homil. X).

Todos os cristãos probos e santos são reis, diz São Gregório; porque, dominando toda as concupiscências, põem um freio à luxúria, ao orgulho, à gula, à ira. São reis que, longe de sucumbir às tempestades das tentações, mandam e obrigam aos ventos, às tempestades e aos mares furiosos e desencadeados que se aquietem (Serm. de Nativ.).

Alegra-te, homem-rei, descendentes de Deus, diz Orígenes, ao ver as insígnias de tua dignidade real. Chamam-te rei porque está escrito: És de uma raça real. E, porque és rei com justo título, Jesus Cristo, teu Senhor e Rei, chama-se Rei dos reis e Senhor dos senhores. Ele te faz rei de todas as coisas, reinando em ti.

Assim, pois, se a alma reina em ti, e a carne obedece, se sujeitas a concupiscência ao jugo de teu império, se tens sob freios e cativos os teus vícios, saberás que és rei e que o mereces ser. Quando fores assim, serás como um rei, por Jesus Cristo, Rei dos reis, e serás chamado a ouvir seus divinos conselhos. Se reinas sobre ti mesmo, reinarás até sobre Deus, pois poderás obter Dele tudo quanto quiseres (In Evang.).

Que coisa há mais dotada de realeza, diz São Leão, que submeter o espírito a Deus e a carne ao espírito? Que coisa mais sacerdotal que render homenagem a Deus com a consciência pura, e oferecer-Lhe, no altar do coração, puros holocaustos de piedade? Então, somos reis e sacerdotes, como diz o Apocalipse: Fecit nos regnum et sacerdotes (Apoc. I, 6 in Serm. de Nativ.).

O verdadeiro e mais belo reino do homem, é que Jesus Cristo, Rei, reine nele e o governe. Então, recebe de Jesus Cristo sua dignidade real e seu reino, e converte-se em verdadeiro rei; porque, então, reina e governa por justo direito.

Reina:

1.° Sobre si mesmo, sobre todas as faculdades e movimentos;

2.° Reina sobre tudo quanto lhe rodeia, e tudo submete a seu império; e

3.° Reina sobre o próximo, a quem deve seu afeto e seu amor. Quando o homem se une a Deus, ele mesmo se domina a si mesmo piedosa e santamente, e modera suas ações: aprende facilmente a governar e mandar aos demais.

Então, é um reino de paz, de ventura, a prenda do reino eterno. Então, tudo pertence ao homem, o homem inteiro é de Jesus Cristo, e Jesus Cristo é de Deus: Omnia vestra sunt, vos autem Christi, Christus autem Dei (1 Cor 3, 22-23).

– A extensão do reino do homem aqui na terra é a fé;

– Sua largura, a esperança;

– Sua altura, a caridade;

– Sua profundidade, a humildade;

– Sua duração será o Céu por toda a eternidade.

O homem, servidor de Deus

A primeira dignidade real do homem consiste em ser fiel servidor de Deus.

Derramarei meu espírito sobre meus servos e servas, diz o Senhor por meio de Joel: Super servos meos et ancilas efundam spiritum meum (Jl 2, 29). E ali onde reine o espírito de Deus, ali está a verdadeira dignidade real.

O título de servidor de Deus é muito ilustre, nobilíssimo e muito honroso. O Chefe Supremo da Igreja, o Papa, enobrece-se com ele, e ainda toma outro mais inferior que aumenta seu brilho: chama-se Servo dos Servos de Deus: Servus servorum Dei. Servir a Deus é reinar. Por isso, diz o Rei Profeta: Ó Senhor, sou vosso servo, vosso servo e filho de vossa serva; Vós me quebrastes meus grilhões: O Domine, qui ego servus tuus, ego servus tuus et filius ancillae tuae. Dirupisti vincula mea (Sl 115, 16).

Abraão chamou-se servo de Deus (Gn 26, 24); Moisés fez o mesmo (Nm 12, 7); e também o próprio Jó (Jó 1, 8). Ainda mais: Jesus Cristo tomou este nome em Isaías. E São Paulo, ao princípio de suas Epístolas, não se dá outro título: Paulo, servidor de Jesus Cristo: Paulus servus Christi. A Bem-aventurada Virgem, Mãe de Deus, chama-se também serva do Senhor: Ecce ancilla Domini (Lc 1, 38).

Quando o Anjo Gabriel apresentou-se como enviado de Deus àquela augusta Virgem; quando, pleno de respeito e de veneração perante a Ela, disse-lhe: “- Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo...”; quando aquele embaixador do Céu disse-lhe que havia encontrado graça diante de Deus, acrescentando que Ela conceberia em seu seio, e daria à luz um filho, cujo nome seria Jesus, o Qual seria grande, e chamar-se-ia Filho do Altíssimo, e o Senhor Lhe haveria de dar o trono de Davi, seu pai, e haveria de reinar eternamente; quando acrescentou, todavia, que o Espírito Santo viria sobre Ela e a virtude do Altíssimo A cobriria com sua sombra, por cujo motivo o sagrado fruto que nasceria Dela seria chamado Filho de Deus; e na presença de tantas grandezas, de uma elevação, de uma dignidade única, celestial e divina, que fizeram de Maria a Mãe de Deus, erigindo-a como Rainha do Céu e da terra por toda a eternidade; então a humilde Virgem pronunciou aquelas palavras: “- Eis aqui a escrava do Senhor” – Ecce ancilla Domini (Lc 1, 38).

O título de servidor de Deus é, pois, titulo de honra, um título que implica uma dignidade real.

Santa Águeda respondeu ao rei pagão que lhe lançava em rosto a acusação de que ela levava uma vida de escrava, vivendo como os cristãos, sendo nobre:

“- A humildade e a escravidão dos cristãos são muito superiores, em grandeza e honra, à dos reis da terra ” (In ejus vita)

Assim, o título de servidor de Jesus Cristo prova a grandeza do homem, prova que o homem é da natureza dos Anjos quanto à sua alma. Os mesmo Anjos no Céu, reinando com Deus, não são mais que servidores seus. E somente este título erige-os em reis.

O homem, filho de Deus

Se já é uma honra tão grande ser servidor de Deus; se este título manifesta a grandeza do homem, que diremos da honra e da grandeza infinita do título de filho de Deus?

Contemplai, diz o Apóstolo São João, que terno amor para conosco teve o Pai, querendo que nos chamássemos filhos de Deus, e que o sejamos de fato: Videte qualem charitatem dedit nobis Pater, ut filii Dei nominemur et simus (1 Jo 3,1).

Este augusto título de filhos de Deus permite-nos participar de seus divinos atributos:

1.° Como Deus é Santo por essência, assim o justo, gerado pela justiça por Deus e feito filho de Deus, tem a santidade;

2.° Como filho de Deus, chega a ser poderoso e pode dizer com São Paulo: Tudo posso por meio Daquele que me conforta: Omnia possum in eo qui me confortat (Fl 4, 13);

3.° Chega a ser imutável, de modo que, unindo-se a Deus, não poderão comover-lhe nem rogos nem ameaças;

4.° Chega a ser celestial, esquece e despreza a terra;

5.° Chega a ser como que impecável;

6.° Chega a ser bom para com seus semelhantes: como um sol benfeitor, derrama seus benefícios sobre todos, e a todos abrasa com o ardor de sua caridade;

7.° Chega a ser sábio na primeira das ciências, a Religião e da virtude, porque Deus é seu Dono, e a unção de Deus o instrui em tudo;

8.° É imperturbável, porque tendo sua alma fixa em Deus, despreza todas as vicissitudes do mundo e do século;

9.° É liberal, isento de inveja, devolve bem por mal; e, assim faz, de seus inimigos, amigos constantes;

10.° Tem retidão tanto em seus objetivos quando em suas ações;

11.° É paciente, equânime, constante, forte, prudente, sincero, à imitação de Deus, que é seu Pai!

Os cristãos gloriam-se de serem filhos de Deus, e o são de fato. Sendo isto assim, devem trabalhar com zelo e perseverança para sua perfeição, e exercitar-se em obras heroicas e divinas.

Ouvi a São Cipriano que diz:

Quando a carne vos solicita, respondei: Sou filho de Deus, nasci para coisas maiores do que para satisfazer meus sentidos corrompidos. Quando o mundo tenta-vos com seus prazeres, suas riquezas e honras, respondei: Sou filho de Deus destinado às riquezas, aos prazeres e honras celestiais. Quando o demônio trate de seduzir-vos, respondei: Retira-te para o teu Inferno, Satanás; não quer Deus que eu, filho de Deus, chegue a ser filho do diabo! Nascido para um reino eterno, desprezo como fumaça, como barro, tudo o que tu podes me oferecer de mais lisonjeiro aqui na terra (Lib. de Spect.).

Sois filhos de Deus: imitai a Jesus Cristo; Ele vos chama a fazer a vontade de Deus, a acercar-nos mais e mais a Ele,… apressai-vos, correi pelo Caminho que vos conduzirá a vosso Pai celestial.

Deus é nosso Pai

Filho de Deus! Deus é, pois, nosso Pai! Meu Deus, quão grande é o homem! Quando uma família encontra-se com títulos de nobreza, que contam séculos de antiguidade, considera-se orgulhosa e feliz. Porém, o que significam todos os títulos, honras e dignidades deste mundo, comparados com o título de cristão, que nos faz filhos de Deus, e permite-nos chamar a Deus de Pai Nosso.

Vedes aquele pastor que cuida de um rebanho do campo? É nobre. Deus é seu Pai. Vedes aquele mendigo diante de vossa porta, apoiado em seu bastão, coberto de retalhos e mutilado? É nobre, e Deus é seu Pai! Todos os dias e a cada instante do dia, ele pode dizer com toda a verdade: Pai nosso que estais nos Céus…

Que grande é, exclama São Cipriano, a indulgência de Deus! Que cúmulo de dignidade e de bondade para nós, não somente nos permitindo que O chamemos de nosso Pai, senão que o quer, e manda-o, sendo realmente assim!

Jesus Cristo é Filho de Deus, e também nós temos o título de filhos do mesmo Pai! Jamais nós nos atreveríamos a chamá-Lo Pai Nosso se não o houvesse Ele mesmo permitido e até ordenado. Devemos, pois, recordar caríssimos irmãos meus, e devemos saber que quando dizemos que Deus é nosso Pai, devemos agir como filhos de Deus; a fim de que, assim como nos alegramos de que Deus seja nosso Pai, alegre-se Ele também de ter-nos por filhos[2].

Sois filhos do Deus vivo, diz o profeta Oseias: Dicetur eis: Filii Dei viventis (Os 1, 10).

Esta dignidade e elevação do homem de ter por Pai a Deus, e de ser seu filho, é muito grande, é quase infinita. Que Deus, diz São Leão, chame ao homem seu filho, e que o homem chame Pai a Deus é um favor superior a todos os favores: Omnia dona excedit hoc donum, ut Deus hominem vocet filium, et homo Deum nominet Patrem (Serm. VI de Nativ.).

Por esta mesma razão este Santo Doutor ensina que o homem deve imitar a Deus, seu Pai, viver com sua vida, a fim de ter uma vida divina, e não terrestre, nem carnal.

Reconhece tua dignidade, ó cristão, diz; e, feito participante da natureza divina, cuida de não voltar à antiga vileza com uma degradada conduta: Agnosce, o Christiane, dignidatem tuam; et divinae consors factus naturae, noli in veterem vilitatem degenere conversatione redire (Serm. I de Nativ.).

Sendo de uma raça escolhida e real, continua São Leão, correspondei à vossa vocação; amai aquilo que vosso Pai ama; que haja semelhança entre Ele e vós, a fim de que vosso Pai não vos aplique aquelas palavras de Isaías quando diz: Criei filhos, e engrandeci-os; e eles desprezaram-Me: Filios enutrivit, et exaltavi; ipsi autem spreverunt me (Is 1, 2). Ponde logo em prática aquelas palavras de Jesus Cristo: Sede vos perfeitos, assim como perfeito é vosso Pai celestial: Estote vos perfecti, sicut et Pater vester coelestis perfectus est (Mt 5, 48).

Observai aquilo que diz o Evangelho de São João: a todos que receberam o Verbo, que são aqueles que creem em seu Nome, deu-Lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; os quais não nascem do sangue, nem da vontade da carne, nem do querer do homem, senão que nascem de Deus, a quem o Pai disse, desde toda a eternidade: Sois filhos meus; eu hoje vos gerei: Filius meus es tu; ego hodie genui te (Sl 2, 7).

Os cristãos não são filhos dos deuses semimortos, filhos dos ídolos, mas filhos do verdadeiro Deus, do Deus vivo, que é a própria Vida, a vida divina e increada, vida que Ele lhes comunica.

Nesta geração e filiação, o Pai é Deus; a fecundidade é a graça preveniente; a mãe é a vontade que consente, coopera com esta graça; a família que nasce dela, são os justos; a alma desta família é a caridade.

O exemplo desta filiação é a filiação do Verbo de Deus, porque assim como Deus Pai gera, desde toda a eternidade, a um Filho que lhe é substancial e igual em tudo, da mesma maneira gera, no tempo, a filhos que o são, por graça, aquilo que é o Filho de Deus, por natureza.

Assim o diz São Paulo aos Romanos: Aqueles que Deus previu de antemão, também foram predestinados por ele, para que se fizessem conformes à imagem de seu Filho, por maneira que seja o próprio Filho o Primogênito entre muitos irmãos: Quos praescivit et predestinavit conformes fieri imaginis Filii sui, ut sit ipse primogenitus in multis fratribus (Rm 8, 29).

Todos aqueles que se regem pelo espírito de Deus, esses são filhos de Deus, continua o Apóstolo. Vós não recebestes o espírito de servidão no temor, para operar, todavia, somente por temor, como escravos; mas recebestes o espírito de adoção dos filhos, em virtude do qual clamamos: Ó Pai, Pai! E o Apóstolo o prova, acrescentando: O mesmo Espírito Santo dá testemunho a nosso espírito que somos filhos de Deus. E sendo filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus, e coerdeiros de Jesus Cristo; contanto que, não obstante, padeçamos com Ele, a fim de que sejamos com Ele glorificados (Rm 8, 14-17).

Para ver com maior exatidão, para examinar mais profundamente e compreender também esta adoção do homem por parte de Deus, é preciso observar que, nesta adoção, a graça, a caridade e outros dons do Espírito Santo não são os únicos que nos são dados, pois, foi-nos dado o mesmo Espírito Santo, que é o Primeiro e Incriado dos dons que Deus fez aos homens.

Deus teria podido, na justificação e por meio da graça e da caridade infusa, fazer-nos justos e santos, o que teria sido uma graça e um benefício imenso de Deus, ainda quando não nos tivesse adotado por filhos Seus; porém, não Se deteve neste primeiro favor, mas quis nos fazer de tal maneira justos, que realmente nos pudesse adotar como filhos. Logo, teria podido fazer esta adoção dando-nos somente a caridade, a graça e seus dons criados, dons indubitavelmente imensos; porém, a infinita bondade de Deus quis formar, ela também, parte de Seus dons, e santificar-nos por Si mesmo ao adotar-nos.

Por esta razão, o Espírito Santo uniu a seus dons a Sua própria vontade, a fim de que, dando a graça e a caridade, desse-Se também Ele mesmo pessoal e substancialmente, segundo aquelas palavras do Apóstolo: Por meio do Espírito Santo foi derramado em nossos corações a caridade de Deus, e Ele se nos entregou: Charitas Dei difusa est in cordibus nostris per Spiritus Sanctum, qui datus est nobis (Rm 5, 5).

Por isto, o Apóstolo O chama Espírito de Adoção: Spiritus adoptionis (Rm 8, 15). Tal é a suprema estima que Deus tem por nós; e esta é também nossa suprema grandeza e elevação, pois recebendo a graça e a caridade, recebemos, ao mesmo tempo, a pessoa do Espírito Santo, que Se unindo por Si mesma à caridade e à graça, habita em nós, vivifica-nos, adota-nos, deifica-nos e conduz-nos a toda forma de bem.

Quereis que digamos ainda mais? Escutai: o Espírito Santo, descendo pessoalmente na alma justa, traz Consigo as demais Pessoas Divinas, o Pai e o Filho, das quais é inseparável. Assim é que a Santíssima Trindade inteira vem pessoal e substancialmente na alma justificada e adotada, e permanece e habita nesta alma como em seu próprio Templo, contanto que a alma persevere na justiça, conforme o teor daquelas palavras da Primeira Epístola de São João: Deus é amor, e aquele que permanece na caridade, em Deus permanece, e Deus nele: Deus charitas est; qui manet in charitate, in Deo manet, et Deus in eo (1 Jo 4, 16); e conforme o teor daquelas outras palavras do grande Apóstolo aos Coríntios: Aquele que está unido a Deus, forma um mesmo espírito com Ele: Qui adhaeret Domino, unus spiritus est (1 Cor 6, 17).

É o mesmo que Jesus Cristo pediu a seu Pai, na véspera de sua Morte, naquele divino discurso durante o qual disse: A fim de que todos sejam uma mesma coisa, e que, como Vós, ó Pai, estais em mim e eu em Vós, por identidade de natureza, assim sejam eles uma mesma coisa em nós, por uma união de amor: Ut omnes unum sint, sicut tu, Pater, in me, et ego in te, ut et ipsi in nobis unum sint (Jo 17, 21), isto é, que participem todos do mesmo Espirito que é uno, que estejam unidos a Ele; e, por Ele, às demais Pessoas Divinas; que não sejam todos mais quem um Nele, e isto no Espírito Santo, como as três Pessoas Divinas não são mais que Um, em uma só e mesma natureza divina. Assim é como o explicam São Cirilo (Lib. II, in Johann., c. XXVI), Santo Atanásio (Orat. IX, Contra Arian.), e Folet seguindo a mesma doutrina.

Assim, na justificação e adoção da alma, a graça e a caridade são-nos comunicadas; e, com elas, comunicam-Se o Espírito Santo e toda a Divindade, a Santíssima Trindade que Se une a Seus dons substancialmente, para unir-nos também substancialmente a Ela, e para santificar-nos, adotar-nos e deificar-nos. E com esta adoção:

1.° Recebemos a dignidade suprema da filiação divina, a fim de que sejamos, com efeito, filhos de Deus não somente acidentalmente pela graça, senão também substancialmente por natureza, e sejamos como deuses; pois Deus comunica-nos e dá-nos realmente Sua natureza;

2.° Por meio desta adoção, adquirimos, como filhos, direito à herança celestial, à beatitude e a todos os bens de Deus, nosso Pai; e

3.° Com esta filiação, conseguimos uma admirável dignidade de obras e de méritos, isto é, que nossas obras tenham uma dignidade, um valor e um preço imensíssimos, e plenamente proporcionados e convenientes à sua recompensa, à vida e à glória eternas, que foram feitas para aqueles que são verdadeiramente filhos de Deus; e é indubitável que estas obras saem do mesmo Deus, do Espírito Divino que habita em nós, e no-las inspira, cooperando nelas.

Disso que acabamos de dizer, resulta:

1.° Que a justiça inerente ou a graça justificante, por meio da qual somos justificados e adotados como filhos de Deus, não é simplesmente uma qualidade, como o creem alguns, senão que abraça muitíssimas coisas; a remissão dos pecados, a fé, a esperança, a caridade e outros dons, e o mesmo Espírito Santo, Autor dos dons, e, por conseguinte, a Santíssima Trindade! Porque o homem recebe tudo isto na justificação infusa, como diz o santo Concílio de Trento (Sess. VI, c. VII);

2.° Resulta também que aqueles que pensam que na justificação e na adoção se nos dá o Espírito Santo relativo a seus dons, e não enquanto Sua substancia e Pessoa, estão em um erro; porque São Boaventura ensina que o Espírito Santo acompanha pessoalmente a seus dons, e que se converte em possessão perfeita das almas justificadas e adotadas (In I Sent., d. 14, art. 2, q. 1). O Mestre das Sentenças ensina o mesmo (Lib. I, Dist. XIV e XV, segundo Santo Agostinho e outros Doutores). Scotus, Gabriel e Marsílio falam da mesma maneira. Santo Tomás ensina claramente esta mesma doutrina (S. Th. I, 8. 43. Art. 3 et 6; et q. 38, art. 8). Este diz que o Espírito Santo dá-Se a todos os justos, não somente quanto ao afeto, senão também quanto a Sua Pessoa. O mesmo ensinam Vasquez, Valencia e Suarez (Lib. XII, De Deo Trino et Uno, c. V). Suarez cita, em apoio a esta doutrina, que dá como certa, a São Leão Magno, Santo Agostinho e Santo Ambrósio.

3.° Desta doutrina resulta ainda que nossa adoção, ainda que seja una em si mesma, é, contudo, dupla em virtude. A primeira, pela qual somos adotados como filhos de Deus por uma caridade criada e pela graça infusa na alma, o que é uma imensa participação da natureza divina; e, pela segunda, recebemos o Espírito Santo e a natureza divina pela graça, e, por isso, somos deificados e adotados como filhos de Deus. Assim, pois, esta dupla adoção começa aqui pela graça; porém, no Céu, terminará com a glória eterna, com a visão beatífica e a perdurável posse de Deus.

4.° Segue-se, portanto, desta doutrina que, da mesma maneira que Jesus Cristo é Filho de Deus por natureza – como Deus, pela geração eterna, e como homem, pela união hipostática – da mesma maneira somos filhos adotivos dos homens. Porque estes nada recebem, fisicamente falando, de seu pai adotivo; somente recebem uma denominação moral com a qual tem direito à herança; porém, nós recebemos de Deus a graça, e com a graça a mesma natureza de Deus; e como entre os homens chamamos propriamente de “pai” aquele que comunica a outro sua natureza humana engendrando-o, assim a Deus chamamos de Pai não somente de Jesus Cristo, senão de nós mesmos, porque nos comunica Sua natureza, por meio da graça que comunica a Jesus Cristo com a união hipostática, fazendo-nos assim irmãos de Jesus Cristo.

Daqui, portanto, devemos aprender quão grande é o benefício da filiação e da adoção divinas. Poucas pessoas conhecem esta infinita dignidade, tal como ela acaba de ser demonstrada. Poucas pessoas refletem sobre isto ou ponderam esta grandeza do homem com a detida atenção que o assunto merece. Todos deveríamos certamente admirar, plenos de respeito, tal grandeza; e os pregadores, os doutores, deveriam explicar e expor esta sublime grandeza do cristão, a fim de que os fieis compreendessem bem que são os templos vivos de Deus, que abrigam a Deus mesmo em seus corações, e que, por conseguinte, devem caminhar com Deus, conversar dignamente com tal Hóspede que, em todas as partes, acompanha-lhes, em todas as partes está e a tudo vê.

Com muita razão, diz, pois, o grande Apóstolo: Não sabeis que vossos corpos são o templo do Espírito Santo que está em vós, que vos foi dado por Deus; e que não vos pertenceis, pois fostes comprados a um altíssimo preço? Glorificai a Deus e levai-O em vosso corpo[3].

Ó cristão, exclama São Leão, reconhece tua grandeza, e sendo partícipe da natureza divina, não te degrades; recorda-te de quem é o Chefe e de que Corpo[4] és membro. Recorda-te de que, livre do poder das trevas, fostes transportado à luz e ao reino de Deus. Com o Sacramento do Batismo, foste convertido em templo do Espírito Santo, não afugentes de teu coração, com ações pecaminosas, um hóspede tão ilustre, e livra-te de submeter-te novamente à escravidão do demônio; pois teu preço é o Sangue de Jesus Cristo, que te julgará na verdade, porque a misericórdia te resgatou[5].

Ouvi a Santo Agostinho: O primeiro nascimento vem do homem e da mulher; a segunda natividade procede de Deus e da Igreja. E eis aqui que nasceram de Deus, e resulta que um Deus habita em nós. Que grande mudança: Deus fez-se homem, e o homem tornou-se espírito. Que maravilha é esta? Que honra é esta, meus irmãos? Elevai vossa alma para esperar e tomar a única realidade digna de ser desejada, e renunciai aos prazeres do século. Fostes comprados à custa de um alto preço: por vós, o Verbo fez-se carne; por vós, Aquele que era filho de Deus fez-se filho dos homens; vós vos convertestes em filhos de Deus: Propter vos Verbum caro factum est: propter vos, qui era Filius Dei, factus est filius hominis; ut qui eratis filii hominum, efficeremini filii Dei (Serm. XXIV, de Temp.).

O mesmo grande Doutor diz, em outra parte: Os homens são filhos dos homens quando agem mal; porém, quando agem bem, são filhos de Deus. Deus, de filhos dos homens faz filhos de Deus; porque do Filho de Deus fez o Filho do Homem. Admirai quão grande é esta participação da Divindade! O Filho de Deus fez-se partícipe de nossa mortalidade, a fim de que o homem mortal seja partícipe de sua Divindade. O grande Deus que promete a divindade manifesta-vos uma caridade infinita[6].

Escutai o que diz São Cirilo de Jerusalém: conhecendo nossa grandeza, conduzamo-nos espiritualmente para fazer-nos dignos da adoção de Deus; porque aqueles que se conduzem segundo o espírito de Deus, são filhos de Deus. Procedamos desta maneira, para que não aconteça que nos seja dito: “Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão”. Glorifiquemos a nosso Pai celestial com obras santas, a fim de que, vendo os homens nossa boa conduta, louvem a nosso Pai que está nos Céus (Catech. VII).

Aqueles nos quais Deus vê a imagem de seu Filho, diz Santo Ambrósio, admite-os, por seu Filho, no número de seus filhos (Lib. V de Fide,. c. III).

Podemos admirar as obras dos homens, diz São Cipriano, sabendo que somos filhos de Deus? Cai do cume de sua grandeza aquele que admira outra coisa que não seja Deus: Nunquam humana opera mirabitur quisquis se cognoverit filium Dei? Dejicit se de culmine generositatis suae qui admirari aliquidpost Deum potest (Lib. de Spectaculis). Quando chamamos a Deus Pai nosso, prossegue o mesmo Santo, devemos conduzir-nos como filhos de Deus, a fim de que, crendo-nos ditosos em ter a Deus por Pai, sinta também Ele a satisfação em ter-nos por filhos. Conduzamo- nos como temos de conduzir-nos, sendo templos de Deus, tendo a Deus dentro de nós; a fim de que, tendo começado a ser celestiais e espirituais, não nos ocupemos mais que das coisas do espírito e do Céu[7].

O homem é cidadão da Casa de Deus e do Céu

Já não sois estrangeiros nem migrantes, diz São Paulo aos Efésios, mas concidadãos dos Santos, e domésticos ou familiares da casa de Deus: Jam non estis hospites, et advenae, sed estis cives Sanctorum et domestici Dei (Ef 2, 19).

Concidadãos dos Anjos, dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos, dos Mártires, dos Santos e de todos os eleitos. Tendes o direito de cidadania na Igreja de Jesus Cristo; sois da casa e da família de Deus, da Igreja de Deus; Deus é vosso Pai, Maria e a Igreja são vossas mães, os eleitos são vossos irmãos. Sois da família do Messias-Rei, Deus e homem, da república cristã, na qual tendes direito aos Sacramentos da Igreja, a todos os dons de Jesus Cristo, e estais inscritos como cidadãos e herdeiros da vida eterna. Foi-vos dado um Anjo para proteger-vos, e levais o nome de um Santo. Nada vos falta! Quão grande e ditoso é o homem!

O homem é templo de Deus e casa de Jesus Cristo

Não sabeis vós que sois templo de Deus?, pergunta São Paulo aos Coríntios: Nescitis quia templum Dei estis? (1 Cor 3, 16). Sois o edifício, não do homem, senão de Deus; e, por conseguinte, sois um templo, não profano, senão um templo santo, no qual habita Deus mesmo pela fé, pela graça, pela caridade e por meio de todos os seus dons. Vós sois o tabernáculo de Deus, os vasos consagrados a Deus.

Não sabeis, acrescenta o grande Apóstolo, que vossos corpos são templos do Espírito Santo que habita em vós, o Qual recebestes de Deus? An nescitis quoniam a vestra templum sunt Spiritus Sancti, qui in vobis est, quem habetis a Deo? (1 Cor 6, 19).

Não violemos jamais este templo. Se alguém profana o templo de Deus, Deus lhe destruirá, diz São Paulo, porque o templo de Deus é Santo, e vós sois este templo: Si quis templum Dei violaverit, disperdet illum Deus. Templum enim Dei sanctum est, quod estis vos (1 Cor 3, 17).

Jesus Cristo, diz São Paulo, deixou-Se ver como filho em sua própria casa, cuja casa somos nós: Christus tamquam filius in domo sua, quae domus sumus nos (Hb 3, 6).

Os cristãos são membros de Jesus Cristo, Seus herdeiros e coerdeiros

Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?, diz São Paulo: Ne scitis quoniam corpora vestra membra sunt Christi? (1 Cor 6, 15). Sois o Corpo Místico de Cristo e membros unidos a outros membros: Vos estis corpus Christi, et membra de membro (1 Cor 12, 27).

Assim, pois, se somos filhos, disse São Paulo aos Romanos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e coerdeiros de Jesus Cristo: Si autem filii, et haeredes, haeredes quidem Dei, cohaeredes autem Christi (Rm 8, 17).

O homem custou o Sangue de Jesus Cristo

Fostes comprados a alto preço, diz São Paulo, glorificai, pois, a Deus, e levai-Lhe sempre em vosso corpo: Empti estis pretio magno. Glorificate et portate Deum in corpore vestro (1 Cor 6, 20). Vós já não vos pertenceis: Non estis vestri (1 Cor 6, 19).

Vós, Senhor, fostes entregue à morte, diz o Apocalipse; e, com o vosso Sangue, vós nos resgatastes para Deus: Occisus es, et redimiste nos in sanguine tuo (Ap 5, 9).

Formoso é o sol, precioso; porém, não custou o Sangue de Jesus Cristo. Ricas em esplendor são a lua e as estrelas; porém, não custaram o Sangue de Jesus Cristo. A terra e os mares valem muitíssimo; porém, Jesus Cristo não deu seu Sangue por eles. Somente o homem custou o Sangue de um Deus! Jesus Cristo morreu somente pelo homem!

Tão grande é o homem e tão nobre, que todo o ouro, todo o dinheiro do mundo e todo o universo não vale o que ele vale. Não se encontrou um preço digno do homem nas criaturas, nem no mundo inteiro; a não ser no Sangue de um Deus!

Se puseres numa balança, portanto, de um lado o Sangue de Cristo, e do outro o do homem, o preço do homem move o Sangue de Cristo. E se é impossível avaliar o valor do Sangue de um Deus, é também impossível avaliar o valor do homem. Se quereis que vos diga o quanto valeis, dizei-me, antes, quanto vale o Sangue de Jesus Cristo.

Não fostes resgatados a preço de ouro nem de prata, diz o Apóstolo São Pedro, mas com o Sangue precioso de Jesus Cristo, como de um Cordeiro imaculado e sem mancha: Non corruptilibus auro vel argento redepti estis; sed pretioso sanguine quase Agni immaculati Christi et incontamini (1 Pd 1, 18-19).

O homem é tão grande que participa da natureza de Deus.

O homem é, de certo modo, Deus.

O homem, criado à imagem de Deus, é uma espécie de divindade, porém, é- o, sobretudo, em sua geração por Jesus Cristo, quando se converte em Deus, quando participa da natureza divina. O Verbo fez-se carne: Verbo caro factum est (Jo 1, 14). Eis aqui o homem divinizado.

Temos de felicitar à natureza humana, diz Santo Agostinho, por tê-la tomado o Verbo para Si, por tê-la transladado imortal no Céu, e por ter a argila sido elevada tanto que se encontra hoje à direita do Pai. Quem não felicitaria sua natureza feita imortal em Jesus Cristo, e quem não esperaria para si mesmo igual maravilha por Jesus Cristo? Ut Dominus, induto corpore, factus est homo, ita et, nos homines ex Verbo Dei deificamur, eo quod receptum sit in carne (Serm. de Nativ.).

Assim como o Senhor, diz Santo Atanásio, fez-se homem tomando um corpo, os homens foram deificados pelo Verbo de Deus ao ser Ele recebido na carne (Serm. IV contra Arian.).

Na Encarnação, o Verbo eterno une-se à humanidade como a uma esposa, a fim de unir-se com todo o gênero humano, e, por este meio, fazer imortais aos mortais, celestiais aos habitantes da terra, e transformar em deuses aos homens. Jesus Cristo quis ser nosso irmão em sua Carne e em seu Sangue. Pois, como escreve Santo Agostinho, aquele que chama a Deus Pai nosso, chama Irmão seu a Jesus Cristo: Nam qui Dicit Deo Pater, Christo Dicit frater (In Psalm. XLVIII).

Jesus Cristo, diz São Gregório Nazianzeno, nasceu na carne para fazer-nos nascer no Espírito; nasceu no tempo para fazer-nos nascer para a eternidade; nasceu em um estábulo, para dar-nos nascimento para o Céu[8].

Escutai a Santo Agostinho, Deus fez-se homem para que o homem se convertesse em Deus; para que o homem comesse o pão dos Anjos, o Senhor dos Anjos fez-se homem: Factus est Deus homoe, ut homo fierit Deus: ut panem Angelorum manducaret homo, Deus Angelorum factus est homo (Serm. IX, de Nativ.).

Escutai a São Gregório Nazianzeno: O Verbo do Pai torna-se homem, e um homem que nos pertence, a fim de unir, por esta mescla, Deus com o homem. Em ambos os casos, é um só Deus, um Deus feito homem, a fim de converter-me a mim, um mero mortal, em um Deus[9].

Foi pela mesma razão, diz Clemente de Alexandria, que Jesus Cristo, com sua Encarnação, mudou a terra em Céu, e que fez anjos, ou melhor, deuses aos homens (Adhortat ad Gentes).

O mesmo Clemente comenta aquilo que São João escreveu em seu Evangelho: deu-lhe o poder de se tornarem filhos de Deus. E o Verbo fez-se carne: Dedit eis potestatem filios Dei fieri. Ete Verbum caro factum est (Jo 1, 12.14). Chegaram a ser filhos de Deus; e, a partir daí, até deuses, havendo-se o Verbo feito carne. O Verbo, com efeito, fez-se carne para converter aos homens em deuses.

Ouvi também a Orígenes: o Verbo fez-se carne, entretanto, para nós, que sem a Encarnação não conseguiríamos ser transformados em filhos de Deus: Verbum caro factum est, sed propter nos, qui non nisi per Verbi carnem potuissemus in Dei filios transmutari.

A salvação desceu para voltar a subir nos redimidos. Os homens foram feitos deuses por meio Daquele que de um Deus fez um Homem: De hominibus facit deos, qui de Deus fecit hominem. E habitou entre nós; possui nossa natureza, para fazer- nos partícipes da natureza divina: Et habitavit in nobis, is est, naturam mostram possidet, ut suae naturae particeps faceret nos (Homil. II).

Jesus Cristo, diz São Leão, fez-se Filho do Homem, para que pudéssemos ser filhos de Deus: Ideo Christus filius hominis factus est, ut nos filii Dei esse possimus (Serm. VI de Nativ.).

Satanás disse a nossos primeiros pais, para enganá-los: Se comeis desta fruta, sereis como deuses: Eritis sicut dii (Gn 3, 5). Sem querê-lo, profetizou; e sua profecia haveria de ter cumprimento com a Encarnação. Sua mentira, seu engano haveria de converter-se em sua vergonha, para sua própria confusão e derrota; e haveria de chegar a ser uma realidade, e a mais magnífica de todas as verdades. Assim é como Deus, ao fazer-se Homem, quis que o homem que desejava chegar a ser Deus, chegasse a sê-lo de fato, e o conseguisse sem cometer nenhum crime. E o Rei Profeta, entrevendo com a luz do Espírito Santo ao homem deificado pela Encarnação do Verbo, já anunciara esta deificação do homem: Ego dixi: Dii estis, et filii excelsi omnes. Eu vos disse: Sois deuses, todos sois filhos do Altíssimo (Sl 131, 6).

Deus, diz São Bernardo, fez-se homem para fazer do homem um Deus: Ideo Deus factus est homo, ut homo fieret Deus (Serm. in Cant.). Todos nós, com Jesus Cristo, nosso Chefe, somos Jesus Cristo: Nos omnes cum capite nostro, Christo, Christus sumus (Serm. de Nativ.).

A alma que se une a Deus, assume a sua forma, torna-se divina, converter-se em Deus. Por meio da imagem de Deus impressa em minha alma, diz São Basílio, obtive o uso da razão; porém, havendo chegado a ser cristão, sou semelhante a Deus[10].

Se Jesus Cristo saiu dos dias da eternidade aos dias do tempo, como disse um profeta, foi para fazer-nos sair dos dias do tempo e fazer-nos entrar nos dias da eternidade.

A Majestade omnipotente, diz São Bernardo, fez três coisas, verificou três mesclas, ao tomar nossa carne; e estas três mesclas são todas tão admiráveis que jamais se sucederam obras iguais, nem acontecerão novamente na terra. Pela Encarnação, uniram-se intimamente Deus e o homem, uma Mãe e uma Virgem, a fé e o coração humano. Admiráveis são tais misturas, e é o maior dos milagres que coisas tão diversas, tão heterogêneas, tão divididas entre si, tenham-se unido perfeitamente (Serm. super Missus est).

Deus, diz São Cipriano, está mesclado com o homem; Jesus Cristo quis ser aquilo que é o homem, a fim de que o homem pudesse ser aquilo que é Jesus Cristo: Deus cum homine miescetur; quod homo est, esse Christus voluit, ut et homo possit esse quod Christus est (Serm. de Nativ.).

Desceu para fazer-nos subir, diz Santo Agostinho, e participando da natureza dos filhos dos homens, adotou aos filhos dos homens para fazer-lhes partícipes de sua natureza: Descendit ille, ut nos ascenderemos; et, participata natura filiorum hominum; ad participandam etiam suam naturam adoptaret filios hominum (Serm. de Nativ.). Ó homens, exclama, não desconfieis de poder chegar a ser filhos de Deus, porque o Filho de Deus, o Filho do próprio Deus, fez-se homem: O homines, nolite desperare vos fieri posse filios Dei, quia et ipse Filius Dei caro factus est (Ut supra).

Ao recordar aquelas palavras de Jesus Cristo a seus Apóstolos: Permanecei em mim, que eu permanecerei em vós: Manete in me, et ego in vobis (Jo 15, 4), exclama São Bernardo: Ó que sublimidade! Que autoridade tão sublime dispõe que o homem habite com os Anjos, que a terra e o pó subam até o Céu, que o homem saído do barro agregue-se à sociedade dos Anjos! E ainda mais, que a criatura viva no Criador; a obra, em seu Executor; o resgatado, em seu Redentor; o servo, em seu Dono; o pecador, no mesmo Justo; o lodo, Naquele que tudo tirou do nada; o transitório, no Eterno; a miséria, no Bem Supremo. Viver Naquele que dá a soberana felicidade, Naquele que santifica o que é Santo, que é a Verdade e a Vida, e a glória eterna, a alegria do mundo, a beleza do Céu, a suavidade do Paraíso, a venturosa Eternidade, e a Beatitude eterna, isto é, em nosso Senhor Jesus!

Sois partícipes da natureza divina, diz o apóstolo São Pedro: Divinae consortes naturae (2 Pd 1, 4). A alma adornada da graça de Deus é uma rainha infinita preciosa, cuja beleza é superior à beleza natural dos Anjos e de todas as criaturas. E a razão é que, por meio da graça, participamos da natureza de Deus, e, por conseguinte, participamos superabundantemente e muito de perto da beleza sobrenatural e suprema de Deus, infinitamente superior a toda beleza natural e criada.

Citando aquelas palavras do profeta Baruc sobre Jesus Cristo: Depois de tais coisas Ele foi visto sobre a terra e conversou com os homens: Post haec in terris visus est, et cum hominibus conversatus est (Br 1), profecia cujo cumprimento manifesta São João com aquelas sublimes e surpreendentes palavras: Et Verbum caro factum est, et habitavit in nobis – E o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo I, 14)., diz São Cipriano de uma maneira admirável: Que quereis, ó homens? Em outro tempo, dizia-se a Deus: “O homem vos pertence”; e agora diz-se ao homem: “Deus vos pertence”! Ó homem, bastas a Deus; baste-te Deus também: O homo, sufficis tu Deo; sufficiat tibi Deus (Serm. de Ascens.).

Reconhece aqui, cristão, tua grandeza, teu nome e tua sabedoria. O Cristianismo é a imitação da natureza divina. Se és cristão, imita a Jesus Cristo; não carregues vã e inutilmente seu Nome; levai-O, pelo contrário, com fartura de virtudes. Cumpre aquilo que Ele exige com obras dignas de tão grande Nome. Corresponda tua vida a tal Nome, a fim de que este Nome não seja um Nome vão, e teu pecado, enorme! (Santo Ambrósio, De Dignit. Sacerd.).

O cristão que obra de maneira diferente, leva um nome falso; não tem mais que mera aparência de cristão; não tem de cristão nem o espírito, nem o coração, nem o pensamento; não é um cristão! É necessário que o cristão diga: Sou da raça divina, o Filho de Deus é meu irmão, meu doutor, meu dono; é necessário que eu que viva divinamente, a fim de que eu seja outro Jesus Cristo. Porque, segundo diz o Apóstolo São Pedro: Sois vós a linhagem escolhida, uma classe de sacerdotes, reis, gente santa, povo de conquista: Vos genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus adquisitionis (1 Pd 2, 9).

Jesus Cristo é necessário para abrigar nossa alma

Para vestir nosso corpo animal basta-nos a pele de uma fera; para abrigar nossa alma, que é espiritual, necessitamos de Jesus Cristo. Revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, diz São Paulo aos Romanos: Induimini Dominum Jesum Christum (Rm 13, 14). Pois, todos vós que fostes batizados em Cristo, estais revestidos de Cristo, diz aos Gálatas: Quicumque enim in Christo baptizati estis, Christum induistis (Gl 3, 27).

Revesti-vos – escreve São Paulo aos Efésios – do homem novo que foi criado conforme à imagem de Deus em justiça e santidade verdadeira: Induite novum hominem, qui secundum Deum creatus est in justitia et sanctitate veritate (Ef 4, 24). Outra veste que não seja Jesus Cristo seria indigna de nossa alma. Julgai, portanto, qual seja nossa dignidade pela riqueza de tal veste.

Tão grande é o homem que somente pode viver de Jesus Cristo

Se morremos com Jesus Cristo, diz São Paulo aos Romanos, cremos firmemente que viveremos também juntamente com Cristo. Considerai-vos também como mortos para o pecado; porém, vivos para Deus em Jesus Cristo (Rom. VI, 8.11). Cristo, diz este Apóstolo aos Coríntios, morreu por todos, a fim de que aqueles que vivem não vivam mais para si, senão para Aquele que por eles morreu e ressuscitou: Pro omnibus mortuus est Christus; ut et qui vivunt juam non sibi vivant, des ei qui pro ipsis mortuus est et resurrexit (2 Cor 5, 15).

Vivo, porém não eu, mas é Cristo quem vive em mim, exclamava o grande Apóstolo dirigindo-se aos Gálatas: Vivo, jam non ego, vivit vero in me Christus (Gl 2, 20). Para mim, Cristo é a vida, dizia também aos Filipenses: Mihi vivere Christus est (Fl 1, 21).

Escutai a Orígenes: Quando Jesus Cristo confiou São João à sua Mãe, dizendo-Lhe: “Mulher, aqui tens a teu filho”, é como se houvesse dito: este é Jesus que puseste no mundo, porque aquele que é perfeito não vive mais ele mesmo, é Jesus Cristo quem vive nele; e vivendo em Jesus Cristo, podem aplicar-se aquelas palavras ditas a Maria: “— Eis aqui a vosso filho Jesus Cristo” (In haec verba Evang.).

De tal maneira é Jesus Cristo a vida do cristão, e o cristão deve de tal maneira viver com Jesus Cristo, que se não goza de tal vida, pode dizer a si mesmo que morreu.

Tão grande é o homem que necessita de um Deus inteiro por alimento

Para alimentar o corpo, a erva dos campos e uns quantos grãos bastam; porém, para alimentar a alma, criada à imagem de Deus, é-lhe necessário a graça de Deus. Esta alma necessita do Corpo, do Sangue, da Alma e da Divindade de Jesus Cristo.

Em verdade, em verdade, Eu vos digo que se não comerdes a Carne do Filho do homem, e não beberdes seu Sangue, não tereis a vida em vós, disse o mesmo Jesus Cristo: Amen, amen dico vobis: Nisi manducaverit carnem Filii hominis, et biberitis ejus sanguinem, non habebitis vitam in vobis (Jo 6, 54).

Poderíeis vos formar uma ideia de vossa grandeza? És tão sublime, ó homem, que necessitais de um Deus inteiro por alimento; sem este pão, sem o Pão Eucarístico, não viveis.

Toda abundância que não seja meu Deus, é indigência, exclama Santo Agostinho: Omnis copia quae Deus meus non est, egestas est (Lib. Confess.).

Somente Vós, ó Deus meu, saciais minha alma. Assim manifestais quão grande é para vós a criatura racional, pois, tudo o que seja menos que Vós é insuficiente para fazê-la feliz e alimentá-la; e tampouco ela se basta a si mesma.

O homem é tão grande que necessita por morada a Casa do próprio Deus

Um simples pedreiro é suficiente para fazer uma casa que livre nosso corpo da intempérie. Uma mesquinha choça coberta de palha é tudo de quanto necessita; e, logo, hão de lhe bastar, para a sepultura, um rincão de terra e um pobre ataúde.

Porém, a alma necessita de um Palácio, não edificado por mão do homem, senão por mão do próprio Deus. Nem os mais hábeis arquitetos podem edificar uma habitação digna para a alma. É preciso o Arquiteto Celestial e é necessário o Céu, a mesma morada de Deus. Jesus Cristo encarregou-se de tão magnifica construção. Vou, disse, preparar-vos um lugar: Vado parare vobis locum (Jo 14, 2).

Tão grande é a alma que necessita da imortalidade

O homem necessita da imortalidade, e a tem. Deus fez o homem imortal, indestrutível: Deus creavit hominem inexterminavel (Sb 2, 23). Irá para a eternidade, que é a sua morada: Ibit homo in domo aeternitatis suae (Eclo 12, 5). Assim, pois, nada de transitório foi feito para o homem; o homem foi feito para Deus, que nunca acaba.

O homem criado à imagem de Deus; o homem de um preço infinito; o homem-rei, servidor de Deus, filho de Deus; o homem que tem a Deus por Pátria; o homem concidadão dos Anjos; o homem templo de Deus e casa de Jesus Cristo, membro de Jesus Cristo, herdeiro de Deus, coerdeiro de Jesus Cristo; o homem participa da natureza de Deus, e foi feito por Deus para a Encarnação do Verbo; o homem necessita de Jesus Cristo por veste, busca a Jesus por vida, a Jesus Cristo por alimento, e ao Céu por morada; o homem que necessita da imortalidade; o homem para quem é necessário tudo isso, e que é tudo o que temos dito, está indubitavelmente dotado de uma dignidade, de certo modo, infinita.

Se tu soubesses, ó homem, ler teus títulos de dignidade e nobreza; se tu te conhecesses, quanto te respeitarias, quão feliz te crerias, quanto trabalharias para fazer-te digno de tua sublime vocação e de teu alto destino! Quando desprezarias a tudo o que é tão inferior a ti e tão indigno de ti! Quanto te ocuparias de tua sublime finalidade, que é conhecer a Deus, amá-Lo, servir-Lhe e obter a vida e a glória eterna! Porém, desgraçadamente para ti, como diz o Salmista, és cego, surdo e mudo; és como aquelas estátuas de que fala o Real Profeta: Tens boca, e não falas; olhos, e não vês; ouvidos, e não ouves; nariz, e não sentes; mãos, e não tocas nenhum objeto; pés, e não andas; garganta, e não produzes nenhum som[11].

Homem desgraçado, e criminalmente desgraçado, a quem podem aplicar-se aquelas terríveis palavras do Real Profeta: O homem, em meio de sua grandeza, não compreendeu quem era; igualou-se aos animais, e fez como um deles: Homo, cum in honore esset, non intelexit; comparatus est jumentus insipientibus, et similis factus est illis (Sl 48, 12).

O homem é grande somente por Deus. Assim é que deve unir-se a Deus

O homem somente é grande por Deus; assim é que deve unir-se a Ele, e tão somente a Ele. Recorda-te, sim, que não existes senão para conhecer, amar e servir a Deus, para obter a graça neste mundo, e a glória eterna no outro.

Ó homem, diz São Gregório de Nissa, não esqueças que vós foste criado para ver a Deus e contemplá-Lo, e não para arrastar-te nesta terra miserável; não para viver como os brutos, lisonjeando as tuas paixões; mas para levar uma vida celestial, com o objetivo de subir ao Céu (Orat. II in Psalm. XXXIII).

Ó alma, exclama Santo Agostinho, ó alma feita à imagem de Deus, resgatada com o Sangue de Jesus Cristo, esposa de Jesus Cristo pela fé, filha adotiva do Espírito Santo, adornada de virtudes, destinada a viver com os Anjos, ama Aquele que te amou tanto; ocupa-te Daquele que não pensa senão em ti; busca Aquele que te busca; ama a Deus, teu Divino Amante; vela com teu Deus, que vela por ti; trabalha com Ele, posto que Ele só trabalha por ti; e sê pura com Ele, que é Puro por excelência, sê santo com o Santo dos Santos (Lib. Confess.)

Assim, diz São Paulo, posto que haveis recebido por Senhor a Jesus Cristo, segui seus passos, unidos a Ele como a vossa raiz, e edificados sobre Ele como sobre o vosso fundamento, e confirmados na Fé: Sicut accepistis Jesum Christum Dominum, in ipso ambulate, radicati et superaedificati in ipso, et confirmati fide (Cl 2, 6-7).

Observai aqui que São Paulo dá três excelentes meios para ser de Deus, meios que indica com três comparações. Compara Jesus Cristo e à fé que há de inspirar-nos:

1.° A uma via que nos está traçada e que temos de seguir: In ipso ambulate;

2.° A uma raiz à qual devemos nos apegar, à qual nos devemos aderir: Radicati; e

3.° A um fundamento sobre o qual é preciso edificar: Superaedificati in ipso.

É preciso marchar segundo Jesus Cristo, arraigar-se Nele, e edificar sobre Ele com a prática das virtudes. As virtudes, diz São Bernardo, são astros, e o homem das virtudes é o firmamento: Virtus est sidus, et homo virtutum est coelum (Manual., c. XXIV).


Referências:

[1] Se fideliter atque sapienter creationis nostra intelligamus exordium, inveniemus hominem ideo ad imaginem Dei conditum, ut imitator sui esset Auctoris; et, hanc esse naturalem nostri generis dignitatem, si in nobis, in quodam speculo, divinae benignitatis forma resplendeat (Serm. I, De Jejunio X mensis.)

[2] Meminisse, itaque, fratres dilectissimi, et scire devemos, quia quando Patrem Deum dicimus, quase filii Dei agere devemos; ut, quomodo nos nobisplaceinus de Deu Patre, sic sibiplacceat et ille de nobis (Serm.).

[3] An nescitis quoniam membra ventra templum sunt Spiritus Sancti, qui in vobis est, quem habetis a Deo, et non estis vestis? Empti enim estis pretio magno. Glorificate et portate Deum in corpore vestro (I Cor VI, 19­20).

[4] Corpo Místico de Cristo (Nota do tradutor).

[5]  Agnosce, o christiane, dignitatem tuam, et divinae consors factus naturae, noli in veterem vilitatem degenere conversatione redire. Memento cujus spiritus et cujus corporis sis membrum. Reminiscere quia, erectus de potestate tenebrarum, translatas es in Deu lumen et regnum. Per Baptismatis sacramentum Spiritus Sancti factus est templum. Noli tantum habitatorem pravis de te actibus effugare, et diaboli te iterum subjicere servituti; quia pretium tuum sanguis est Christi, qui in veritate te judicabit, quia misericórdia te redemit (Serm. I, de Nativ.).

[6]  Filii hominum sunt, quando male faciunt; quando bene, filii Dei. Hos enim facit Deus ex filis hominum filios Dei, quia ex Filio Dei fecit Deus filiam hominis. Videte quae sit illa participatio Divinitatis! Filius enim Dei particeps nostrae mortalitatis effectus est, ut mortalis homo fiat particeps Divinitatis suae. Qui tibi promissit Divinitatem, ostendit in te caritatem. (In Psalm. LII).

[7]  Quando Deum Patrem dicimus, quase filii Dei agere debemus; ut nobis placemus de Deo Patre, sic sibi placeat et ille de nobis. Conversemur quase Dei templa, et Deum in nobis constet habitare; ut qui coelestes et spiritales esse cepimus, non nisi spiritalia et coelestia cogitemos et agamus (Tract. de Orat. ).

[8]  Natus est Christus in carne, ut nos nasceremur in Spiritu; natus est in tempore, ut tu nascceris in aeternitate; natus est in satabulo; tu nascereris in coelo (Serm. de Nativ.).

[9] Patris Verbum est homo noster, ut hujusmodi mixtione Deum hominibus misceat. Unus utrimque Deus est, hactenus homo effectus, ut me ex mortali Deum efficiat (In Distich.).

[10] Per imaginem animar impressão meae, obtinui rationis usum; verum Christianus effectus, utique similis efficior Deo (Homil. X, Hexaem.)

[11] Os habent, et non loquentur óculos habent, et non videbunt; aures habent, et non audient; nares habent, et non odorabunt; manus habent, et non palpabunt, pedes habent, et non ambulabunt; non clamabunt in gutture suo (Psalm. CXIII, 5-7).