O que temos de desejar
O que temos de desejar? Temos de desejar a Jesus Cristo.
Se alguém tem sede, diz Jesus Cristo, venha a mim e beba: Si quis sitis, veniat ad me, et bibat (Jo 7, 37). Sedenta está minha alma, diz o Rei Profeta, do Deus forte e vivo. Quando chegarei e me apresentarei ante a face de Deus? Sitivir anima mea ad Deum, fontem vivum: quando veniam, et apparebo ante faciem Dei? (Sl 41, 3).
Jesus Cristo é chamado de Desejado das Montanhas Eternas: Desiderium collinum aeternorum (Gn 49, 26), isto é, desejo dos Anjos, dos Patriarcas e dos Profetas etc. O profeta Ageu chama a Jesus Cristo de Desejado de todas as nações: Desideratus cunctis gentibus (Ag 2, 8).
Jesus Cristo é chamado Desejado de todas as gentes:
1.° Porque é soberanamente digno de ser desejado. Ainda que as nações infiéis não o desejassem, e nem sequer o conhecessem, necessitavam, entretanto, de sua vinda para verem-se livres de suas numerosas misérias. Por isso, desejavam-No, não com o desejo sobrenatural, senão com um desejo natural, como a terra seca deseja a chuva.
Ter necessidade é, em resumo, desejar aquilo que possa aliviar a necessidade que se experimenta. Porém, assim que as nações ouviram aquilo que os Apóstolos falavam Dele, de sua vida, de sua doutrina, de sua santidade, de sua moral e de seus milagres etc., desde este momento, a pregação tocou seus corações e enterneceu-as, começaram a desejar sobrenaturalmente a Jesus Cristo.
E quanto mais O conheciam, mais desejaram-No e amaram-No, a tal ponto que, não somente davam suas riquezas, senão sua vida e seu sangue, com alegria, por Ele. A multidão inumerável dos mártires o atesta. Por isso, o patriarca Jó o chama de Esperança das Nações: Expectatio gentium (Gn 49, 10).
2.° Chama-se Jesus Cristo o Desejado das nações porque preencheu e satisfez completamente todos os desejos. A Igreja, com seus cânticos de alegria, expressa o desejo que tem de Jesus Cristo: Ó Jesus, nossa redenção, amor e desejo nosso: Jesu, nostra redemptio, amor et desiderium (Hom. in Ascens.).
As nações que, antes da vinda de Jesus Cristo, seguiam a Lei Natural e acreditavam em Deus, os prosélitos e aqueles que se convertiam ao judaísmo, assim como os judeus, desejavam e aguardavam o Cristo, a Quem esperavam como Salvador do mundo, como um raio celestial, como um esplendor da luz eterna, como o Sol de Justiça que devia iluminar o universo sepultado nas trevas da ignorância e da infidelidade, que devia arrancar aos homens da morte, que devia curá-los, justificá-los e beatificá-los. Assim, anelavam por Jesus Cristo Adão, Enoque, Noé, Sem, Abraão, Isaac, Jacó, José, Jó etc.
Jesus Cristo, no Céu, é o desejado de todos os eleitos, e de todos os Anjos; todos desejam ter o gozo de sua Divindade e de sua Humanidade; Ele preenche e satisfaz seus desejos, embriaga-os! Jesus Cristo é o único desejo das almas justas; não desejam mais que agradá-Lo, amá-Lo cada dia mais e mais, servir-Lhe e poder possuí-Lo.
Ouvi aquele belo hino de São Bernardo:
Desidero te millies; Mi Jesu, quando venies? Me laetum, quando facies? Me de te quando saties? | Mil vezes, desejo-Vos, ó meu Jesus, quando vireis? Quando me dareis a alegria?Quando me satisfareis com vosso próprio Corpo? |
Jesu, rex admirbilis, Et triunfador nobilis, Dulcedo ineffabilis, Totus desiderabilis. | Ó Jesus, Rei admirável, nobre triunfador, doçura inefável, Inteiramente digno de ser desejado. |
Quanto cor nostrum visitas, Tunc lucet ei veritas Mundi vilescit vanitas, Et intus fervet caritas. | Quando visitais nosso coração, então, ele vê a verdade, despreza a vaidade do mundo, e a caridade o devora. |
Jesu, summa benignitas, Mira cordis jucunditas, Incomprehensa bonitas, Tua me stringat caritas. | Ó Jesus, benignidade suprema, admirável alegria do coração, incompressível bondade, abrasa-me fortemente vosso amor. |
O Jesu mi dulcissime, Spes suspirantes animae! Te quaerunt piae lacrimae. Te clamor mentis intimae. | Ó Jesus, que me embriagais de delícias esperança da alma que suspira por Vós! As lágrimas de vosso afetíssimo servo chamam-Vos e também um grito saído do fundo de minha alma. |
Jam, quod quaesivi, video; Quod concupivi, teneo; Amore, Jesu, langueo, Et corde totus ardeo. | Vejo Aquele que tenho buscado; e possuo Aquele que tenho desejado; Ó Jesus, desfaleço de amor, Meu coração é um incêndio. |
O beatum incendium, Et ardens desiderium! O dulce refigerium, amare Dei Filium! | Ó, ditoso incêndio, que ardente desejo! Ó, que doce refrigério é amar o Filho de Deus! |
1.° Tendes fome? Desejai a Jesus; Ele é o Pão dos Anjos, o Maná que contém em si o necessário para contentar a todos os gostos.
2.° Tendes sede? Desejai a Jesus; é o manancial das águas vivas que apagam a sede; é o vinho que embriaga a alma, o vinho que faz germinar virgens.
3.° Estais enfermo? Desejai a Jesus; é o Médico, o Salvador, a Saúde mesma.
4.° Estais na véspera da morte? Desejai a Jesus; ele é a Vida e a Ressurreição.
5.° Quereis formosura e riquezas? Ele é a Formosura mesma e um oceano de todos os tesouros.
6.° Quereis verdadeiras honras, verdadeiros prazeres? Ele vos fará rei e cumular-vos-á de delícias.
7.° Quereis um sincero amigo? Jesus é o melhor dos amigos e o único amigo.
8.° Quereis sabedoria? Ele é a Sabedoria incriada do Pai.
9.° Quereis santidade e vida? Ele é a Santidade e a Vida por essência.
10.° Sois pecador? Invocai a Jesus; Ele morreu para resgatar-nos.
11.° Desejais vencer vossos inimigos? Ele triunfou do demônio, do mundo, da carne, da morte, do Inferno, e da indignação de seu Pai; ele é o Caminho, a Verdade e a Vida; aquele que o segue, não anda nas trevas. Desejai a Jesus, suspirai por Jesus. Nele achareis todos os bens; fora Dele estão todos os males.
Dizei com São Francisco de Assis:
“Jesus meu, meu amor e meu tudo”: Jesus meus, amor meus et omnia (S. Bonav., in ejus vita).
Contai com a Igreja: Jesus é a glória dos Anjos, é uma doce harmonia para o ouvido; é requintado mel para os lábios, e néctar celestial para o coração:
Jesus decus angelicum,
In aure Dulce canticum,
In ore mel mirificum,
In corde nectar coelicum.
Ó Jesus, abrasai meu coração com o ardente desejo de vos amar. Tratando de uma desigualdade que existe entre os bem-aventurados, Santo Tomás diz que gozarão com mais abundância da presença divina do que neste mundo A tenham desejado, ainda que a tenham querido com o mais ardente afã; porque a doçura do gozo está na razão dos desejos.
Como a flecha que parte de um arco muito esticado fende os ares com rapidez e penetra profundamente no centro branco do alvo, a alma fiel que se tenha lançado com uma grande impetuosidade de desejos até Deus, finalidade de suas esperanças, penetrará profundamente no abismo da essência divina (S. Th. I, Pars, q. 5, a. 7).
Se quiséssemos resumir em algumas palavras o que deve ser o objeto de nossos desejos, deveríamos dizer:
1.° Temos de desejar a Jesus Cristo;
2.° Temos de desejar nossa conversão, o perdão de nossos pecados e a graça de não recair;
3.° Temos de desejar a virtude, a graça, e a cooperação da graça;
4.° Temos de desejar o cumprimento da vontade de Deus;
5.° Temos de desejar o reino de Jesus Cristo em todos os corações;
6.° Temos de desejar o Céu.
Isto é o que temos de desejar na terra;
- estes são os únicos desejos que temos de conservar sempre;
- os únicos que serão capazes de fazer-nos felizes nesta vida e na outra;
- os únicos que podem satisfazer nosso coração;
- os únicos que sejam dignos do homem feito à imagem de Deus, e destinado a gozar eternamente de sua Presença.
Todos os desejos opostos àqueles que aqui temos manifestado são desejos de morte e de maldição. Assim, o desejo dos bens da terra, o dos prazeres, o dos horrores do mundo, são desejos de morte. O desejo que tenha, por finalidade, a criatura, o corpo ou o tempo é um desejo de morte.
Segundo os desejos que se apoderam de nosso coração e governam-nos, já podemos saber nesta vida, sim, se haveremos de salvar-nos ou condenar-nos!
Excelências e vantagens dos bons desejos
A grande perversidade do coração, diz Álvares, tem sua origem no desejo do mal; o espírito excitado e vencido por este desejo entrega-se ao pecado; de um pecado cai em outro, até que chega ao hábito; do hábito cai em um endurecimento do coração e à extrema miséria.
Da mesma maneira a perfeição suprema do coração começa pelo desejo do bem; aumentando este desejo as forças da alma, solicitando-o ou instando-o, faz-lhe produzir boas obras; pela reiteração das boas obras, faz adquirir o hábito da virtude; e, por meio este bom habito leva-o a amar a Deus por ser Quem é; e assim, obedecendo a seus bons desejos, a alma chega à perfeição. Este desejo é a porta pela qual entram no santuário da Santidade! Este é o vento que faz avançar o navio do coração do escolho das coisas terrenais, empurra-o e o faz chegar pronta e felizmente ao Porto da Salvação (In Isaiam.).
Eu vim, diz o Anjo a Daniel, para dar-vos a conhecer a verdade, porque sois um varão de ardentes desejos: Ego veni ut indicarem tibi, quia vir desideriorum es (Dn 9, 23). Não temais, ó varão de desejos, continuou o Anjo: a paz esteja convosco; alentai-vos e fortificai-vos: Noli timere, vir desideriorum; pax tibi; confortare, et esto robustus (Dn 10, 19).
Desejei a inteligência, diz a Sabedoria, e ela foi-me concedida; e invoquei do Senhor o espírito de sabedoria, e foi-me dado: Optavi, et datus est mihi sensos, et veni in me spiritus sapientiae (Sb 7, 7).
Tiveram sede, acrescenta a sabedoria, e vos invocaram, Senhor; e um rio brotou para eles do alto de uma rocha, e as sede apagou-se com as águas que saíram da pedra: Sitierunt, et invocaverunt te, et data est illis aqua de petra altíssima, et sitis de lapide duro (Sap. XI, 4).
Aquele que está repleto de desejos, encontrará o verdadeiro repouso, acrescenta a Sabedoria.
O Senhor, diz o Salmista, saciou a alma vazia dos desejos do mundo, saciou de bens a alma sedenta de graças: Satiavit animam inanem, et animam esurientem satiavit bonis (Sl 106, 9).
Tratando de ver a Jesus para conhecê-Lo, Zaqueu adiantou-se correndo, e subindo a uma árvore, em um lugar por onde haveria de passar o Salvador. Ao chegar àquele lugar, Jesus, levantando os olhos, viu-o e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, porque convém que eu me hospede hoje em tua casa; e Zaqueu, desce rapidamente, e recebe-O com gozo. Posto em sua presença, Zaqueu disse: Senhor, dou a metade de meus bens aos pobres; e se defraudei alguém, vou restituir quatro vezes mais. Jesus respondeu-lhe: Hoje foi um dia de salvação para esta casa (Lc 19, 3-9).
O bom desejo de Zaqueu procurou-lhe:
1.° A dita de ver a Jesus;
2.° A de fazer grandes esmolas;
3.° A de receber a Jesus em sua casa; e
4.° Finalmente, a de ouvir dos lábios do Salvador mesmo aquelas palavras que deviam lhe causar uma indizível alegria: Hoje a salvação entrou nesta casa: Hodie salus domui huic facta est (Lc 19, 9).
Que o meu Deus cumule, segundo as riquezas de Sua bondade, todos os vossos desejos com a glória que Ele vos dá em Jesus Cristo, diz o grande Apóstolo aos Filipenses: Deus meus impleat omne desiderium vestrum, secundum divitias suas, in gloria in Christo Jesu (Fl 4, 19).
Venha aquele que tem sede, diz o Senhor no Apocalipse; e aquele que quer, tome gratuitamente da água da vida: Qui sitit, veniat; et qui vult, accipiat aquam vitae gratis (Ap 22, 17).
Derramarei as águas sobre a terra sedenta, disse o Senhor pela boca de Isaías: Effundam aquas super sitientem (Is 44, 3). Vós que tendes sede, vinde todos às águas, apressai-vos, comprai e comei: vinde, comprai sem dinheiro e sem nenhuma outra permuta vinho e leite: Omnes sitientes, venite ad aquas; properate, emite absque argento et absque nulla commutatione vinum et lac (Is 55, 1).
Desejando a vida eterna, consegue-se chegar a ela, desde que fortifiquemos e conservemos este desejo. Se dizeis com enérgica vontade: “Meu Deus, eu vos desejo, eu vos quero”, Deus será vosso, porque a bondade de Deus não Lhe permite jamais negar-se a um coração que o deseje; e nenhuma força pode arrebatar-Lhe daquele que O possua. Deus não é um amigo variável que se canse com o tempo!
Como poderia esse Deus tão bom, com Sua mão benfeitora, arrancar a seus próprios filhos de Seu seio paternal em que querem viver? Nada está mais distante de Seu pensamento! E, de todas as verdades, a mais certa, a melhor fundada, a mais imutável, é que Deus não pode faltar àquele que O deseje, e que ninguém pode perder a Deus, senão aquele que primeiro se distancie Dele, voluntária e espontaneamente.
Não fez bem São Paulo excitando-nos a desejar as coisas celestiais, posto que, desejando-as com ardor, adquirimo-las? Deleitai-vos, disse o grande Apóstolo, nas coisas do Céu, e não nas da terra: Quaesursum sunt, sapite; non quae super terram (Cl 3, 2).
O desejo dos justos dirige-se ao bem, dizem os Provérbios: Desiderium justorum omne bonum est (Pr 11, 23). O verdadeiro meio de crescer em virtudes é o desejá-las; porque pelo desejo criamos interiormente as virtudes, fortificamo-las, multiplicamo-las e praticamo-las exteriormente, sem nos determos nem por respeito humano, nem pelo temor, nem pelo sofrimento, nem pelas ameaças, nem pelas perseguições, nem pela mesma morte.
E olhai os tesouros encerrados em um bom desejo:
1.° O pobre que deseja ardentemente dar esmolas e não pode, tem, por este simples fato, o mérito da esmola; merece tanto e muitas vezes mais que o rico que tenha costume de socorrer aos pobres;
2.° O enfermo, o desvalido que deseja jejum ou levar cilício, tem o mérito do jejum e o cilício.
3.° O religioso ligado por obediência a uma função vil, obscura, de pouco valor aparente, que arda em desejos de fazer aquilo que os demais fazem, que deseje pregar, instruir, ouvir confissões, visitar aos desvalidos, aos enfermos, partir para converter aos infiéis com risco de vida etc., e oferece a Deus todos esses piedosos e ardentes desejos como se fossem ações.
São Paulo assegura que assim acontece, em sua segunda Carta aos Coríntios. Quando um homem tem grande vontade de doar, Deus o aceita, não lhe exigindo mais do que pode doar, e não aquilo que não o pode: Si enim voluntas prompta est, secundum id quod habet, accepta est, non secundum id quod non habet (2 Cor 8, 12).
Com estas palavras, o Apóstolo indica que Deus atende mais à vontade contida no desejo, que ao mesmo dom. E a razão está em que a perfeição de uma virtude está na vontade firme, no bom desejo, antes que no nome e na grandeza das obras. Por isso, diz Santo Agostinho: Deus coroa a boa vontade, quando vê que lhe falte o poder para operar: Bonam voluntatem coronat, quando non invenit facultatem (De Coelest. Vita).
São Bernardo diz também: Deus paga, sem dúvida nenhuma, aquilo que não pode fazer a boa vontade: Deus indubitanter tribuit bonae voluntati, quod defuit facultati (Epist.).
Santo Tomás dá-nos disso uma razão evidente: o valor formal de uma ação exterior, diz aquele grande Doutor, depende inteiramente da bondade do ato interior, porque a ação vive da vontade: Quia tota formalis bonitas operis exterioris pendet a bonitate actus interioris, quia a voluntate elicitur (S. Th. II Pars, q. 8, art. 5). Estejamos, pois, plenos de boa vontade, de bons desejos; e nós nos enriqueceremos para o Céu.
Podeis merecer tanto quanto o queirais, diz São Bernardo; o mérito cresce em proporção da boa vontade: Tantum mereis, quantum vis; et bona crescente voluntate, crescit pariter et meritum (Serm. LXXXV). Não é andando, acrescenta aquele santo Doutor, como se busca e se encontra a Deus, senão com a ajuda dos desejos: Non pedum passibus, sed desideriis quaeritur Deus (Serm. LXXXIV).
Consome-se o gozo no desejo?, pergunta aquele Padre. Não; o gozo é o azeite, o desejo é a chama. O homem de desejos ver-se-á cumulado de alegria; porém, como o seu desejo não terá fim, por conseguinte, sem cessar, ele será levado a buscar nova alegrias: Numquid consummatio gaudi, desiderii consummatio est? Oleum magis est illi; nam ipsum flamma. Adimplebitur laetitia; sed desiderii non erit finis; ac per hoc nec quaerendi (Serm. LXXXIV).
Daí surgirão, continua São Bernardo:
1.° Uma saciedade sem desgosto;
2.° Uma curiosidade insaciável, ainda que sem arrebato;
3.° Um etemo inexplicável desejo que não vem da indigência; e
4.° Uma embriaguez sóbria, nascida, não de uma taça, senão do descobrimento da verdade, e contendo, não vinho, mas Deus[1].
Quantas riquezas e quantos tesouros estão encerrados nos desejos santos! E quão fácil é adquirir com eles os méritos, a salvação e a coroa que não murchará nunca!
Deus está pleno de bons desejos a nosso favor
Não é o desejo de fazer-nos felizes o que induz a Deus a criar-nos à sua imagem? Não é um desejo explicável de salvar-nos o que o induz a encarnar-se, a nascer em um estábulo, a sofrer e morrer por nós numa cruz?
Tenho sede, exclamava no alto da Cruz: Sitio. Tinha sede de resgatar nossas almas e salvar-nos. Não é o desejo de fazer-nos bem o que Lhe faz dizer: Eis-me aqui chamando à porta de vosso coração; se alguém escutar minha voz, e me abrir a porta, entrarei, e ele ceará comigo e Eu com ele? Ecce sto ad ostium, et pulso; si quis aperuerit mihi janua, intrabo ad illum, et coenabo cum illo, et ipse mecum (Ap 3, 20).
Não é um ardente desejo aquele que Lhe inspira aquelas palavras: Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens? Deliciae meae esse cum filiis hominum (Pr 8, 31). Não é um desejo infinito de cumular-nos de favores aquele que O levou a instituir o Augusto Sacramento de nossos altares, a dar-Se a nós? Desejei, diz a seus Apóstolos na véspera de sua morte, desejei ardentemente, comer este cordeiro pascal convosco, antes de minha paixão: Desiderio desiderari hoc Pascha manducare vobiscum, ante quam patiar (Lc 22, 15).
Este Deus de amor antecipa-Se àqueles que Lhe desejam, e manifesta-Se a eles, diz a Sabedoria: Praeoccupat qui se concupiscunt, ut illis se prior ostendat (Sb 6, 14).
O homem que se desperte em Sua busca desde a madrugada, Ele, que é a Sabedoria do Pai, não terá nenhum trabalho para fazer, pois a achará sentada à sua porta: Qui de luce vigilaverit ad illam, non laboravit; assidentem enim illam foribus suis inveniet (Sb 6, 15).
Ó Jesus, exclama a Igreja no Hino da Ascensão, qual foi, pois, o desejo de clemência que Vos venceu, que Vos levou a sobrecarregar-Vos com nossos crimes, e a sofrer uma morte cruel para subtrair-nos à morte eterna?
Quae te vincit clementia,
Ut ferres mostra crimina;
Crudelem mortem patiens,
Ut nos a morte tolleres?
(Hymn. inAscens.)
São Gregório Nazianzeno convida a que todos os homens desejem a Deus, fazendo sobressair Sua infinita bondade, que tanto agrada-Lhe exercer. Depois de haver cuidadosamente desenvolvido esta consideração, conclui dizendo: Deus deseja ser amado, Ele tem sede… poderíeis acreditar nisso? Tem sede de nós, em meio a Sua abundância (Orat. in S. Baptisma.).
Por mais infinito e rico que seja Deus por Si mesmo, podemos, contudo, obrigar-Lhe. E como sucederá isso? Desejando que nos faça o bem. Porque será que Ele doa com o desejo mais ardente de ofertar, do que nós quando desejamos receber?
Não reconheceremos, porventura, este Deus de bondade semelhante a um manancial que com a contínua fecundidade de suas águas claras e frescas parece se oferecer aos sedentos passageiros? Sempre rica, sempre abundante, a Natureza
Divina não pode crescer nem diminuir, por causa de sua plenitude; o único que lhe falta, se assim se pode dizer, é que retirem de Seu seio as águas da vida eterna.
Eis aqui porque São Gregório tem razão ao dizer que Deus tem sede de que tenhamos sede Dele; Sitit sitiri; e, ao acrescentar que Ele considera como um benefício que nós, com os nossos desejos, cheguemos a dar-Lhe os meios de fazer o bem. É fazer uma injúria a esta bondade infinita o não desejar ardentemente que ela nos enriqueça.
Afetos dos Santos para com Deus. Imitemo-los.
Assim como o cervo suspira sedento pelos mananciais de água, assim minha alma clama por vós, ó meu Deus, diz o Profeta: Quaemadmodum desiderato cervus ad fontes aquarum, ita desiderato anima mea ad te, Deus (Sl 41, 2). Minha alma está sedenta do Deus forte e vivo: Sitivit anima mea ad Deum, fontem vivium (Sl 41, 3).
Filhas de Jerusalém, diz o Esposo dos Cantares, conjuro-vos que se encontrardes a meu amado, fazei-Lhe saber que estou enferma de amor: Adjuro vos, filiae Jerusalem, si invenieritis dilectum meum, ut nuncietis ei quia amor langueo (Ct 5, 8).
Ó meu querido, porque não posso encontrar-te e abraçar-te?, exclama aquela Esposa desolada por haver perdido a seu Deus, objeto de seus ardentes desejos. Para onde foste tu, muito amado? (Ct 5, 17). Eu abri a minha porta para que o meu Amado entrasse; porém, ele já Se havia ido e passado adiante. Minha alma desmaiava ao eco de Sua voz: busquei-O, mas não O encontrei; chamei-O fortemente, e não me respondeu (Ct 5, 6). Não vistes o Amado de minha alma? Num, quem diligit anima mea, vidistis? (Ct 3, 3). Eu dormia, mas meu coração velava! (Ct 5, 2).
Plena de anelo de ver a Jesus Cristo, Madalena corre, muito cedo, ao sepulcro; e não achando ao objeto de seu amor, pois Jesus Cristo já havia
ressuscitado, derrama uma torrente de lágrimas. Aparece-lhe o Salvador, sem Se dar a conhecer, e diz-lhe: Mulher, por que choras? A quem buscas? Mulier, quid ploras? Quem quaeris? (Jo 20, 15). Supondo que ele fosse o jardineiro, ela disse-Lhe: Senhor, se fostes vós quem o levastes daqui, dizei-me onde O colocastes e eu O irei buscar. (Jo 20, 16). Jesus não pronunciou mais que esta palavra: Maria! (Jo 20, 16). Imediatamente, ela O reconheceu e, prostrando-se, adorou-O.
São Paulo desejava morrer para estar com Jesus Cristo: Desiderium habens dissolvi, et esse cum Christo (Fl 1, 2-3).
Toda a vida de um bom cristão é um santo desejo de ir de virtude em virtude, de perfeição em perfeição, de viver e de morrer por Jesus Cristo, esta é a única verdadeira vida, não há outra!
Motivos que nos excitam a ter bons desejos
Três coisas que excitam os desejos do homem: a formosura, dos benefícios e o amor. Somente uma delas basta, muitas vezes, para inflamar seu coração; porém, Deus possui as três em grau supremo. Como podemos, pois, negar-nos a desejar- Lhe e a amar-Lhe? Desejais ter riquezas, prazeres, honras… E seriam, por acaso, comparáveis com aquilo que Deus possui, com tudo quanto Ele vos reserva, se o desejais?
Não devemos cessar de buscar a Deus, porque não se deve deixar de amá-Lo, diz Santo Agostinho: Deus est sine fine quaerendus, quia sine fine amandus (Civit. Dei).
O que se deve fazer para ter bons desejos
O desejo de conhecer, de amar e de servir a Deus é coisa tão ardente como o fogo: o desejo não se pode conter interiormente, senão que se lança fora por meio de suspiros, palavras e obras.
Quatro qualidades tem o cervo[2]:
1.° É inimigo declarado das cobras, e faz-lhes uma contínua guerra; queremos também que Deus nos cumule de santos desejos? Façamos ao demônio, antiga e venenosa serpente, uma guerra encarniçada;
2.° Quando o cervo vê-se perseguido pelos caçadores, foge com rapidez, e não se detém até alcançar o cume das mais altas montanhas. Perseguidos também nós pelo demônio, o mundo e a concupiscência, subamos prontamente às montanhas eternas, e imploremos o socorro do Céu; então, nossas almas ficarão plenas de piedosos desejos;
3.° Os cervos observam por instinto aquele preceito de São Paulo aos Gálatas: Alter alterius onera portate (Gl 6, 2). Porque, quando os cervos transitam em manada, reclinam sua cabeça carregada com o peso de seus chifres no grupo daqueles que lhe precedem. Assim, pois, se queremos ter desejos santos, sejamos caritativos e condescendentes com o próximo; e
4.° Quando os cervos estão devorados de ardente sede, nenhum obstáculo lhes pode impedir de buscar água. Vençamos, da mesma maneira, todos os obstáculos que se oponham à realização de nossos bons desejos.
Referências:
[1] Hinc illa satietas sine fastidio. Hinc insatiabilis illa sine inquietudine curiositas. Hinc aeternum illud atque inexplicabile desiderium nesciens egestatem. Hinc denique sóbria illa ebrietas, vero, non mero ingurgitans; non madens vino, sed ardens Deo (Serm. LXXXIV).
[2] Mamífero ruminante, da família dos cervídeos (Nota do tradutor).