Qui spernit modica, paulatim decidet – “Quem despreza as coisas pequenas, pouco a pouco cairá” (Eclo 19, 1)
Sumário. São infelizes os religiosos que, sendo chamados à perfeição, fazem as pazes com as suas faltas. Nunca se santificarão e correm mesmo grande risco de se condenarem; porquanto o Senhor ameaça vomitá-los de sua boca e abandoná-los, permitindo que das faltas leves passem às faltas graves e à perda da graça divina e da vocação. Oh! Quantos destes infelizes estão agora queimando no inferno! Meu irmão, põe a mão na tua consciência. És tu porventura uma dessas almas tíbias e imperfeitas?
I. Considera a miséria do religioso que, depois de ter deixado a pátria, os parentes e o mundo com todos os seus prazeres, e depois de se ter dado a Jesus Cristo, consagrando-lhe a sua vontade, a sua liberdade e a si próprio, se expõe em seguida ao perigo de condenação, por ter caído numa vida tíbia e negligente. Não, não está longe de se perder o religioso tíbio, que foi chamado por Deus à sua casa para se fazer santo. Deus ameaça vomitá-lo e abandoná-lo, se não se emenda: Sed quia tepidus es, incipiam te evomere (2). – Santo Inácio de Loyola, vendo um irmão leigo da sua Companhia tépido no serviço de Deus, chamou-o um dia e disse:
– Irmão, dize-me, que vieste fazer na religião?
– Eu vim servir a Deus, – respondeu.
– Ó irmão -, replicou o Santo, – se me tivesses dito que vieste servir a um cardeal, a um príncipe da terra, terias alguma desculpa; mas disseste que vieste servir a Deus, e é assim que o serves?
Diz o Padre Nieremberg que alguns são chamados por Deus a salvar-se unicamente como santos, de modo que, se depois não tratarem de se fazer santos, e quiserem salvar-se como imperfeitos, nem mesmo se salvarão. E Santo Agostinho acrescenta que estes ordinariamente ficam depois abandonados de Deus, que permite que das faltas leves passem depois às graves e à perda da graça divina e da vocação. – Santa Teresa de Jesus viu o lugar para ela preparado no inferno, se não se desprendesse de um afeto terreno, bem que não gravemente culpável. Qui spernit modica, paulatim decidet (3) – “Quem despreza as coisas pequenas, pouco a pouco cairá”.
Muitos querem seguir Jesus Cristo, mas de longe, como fez São Pedro, que, na prisão de Jesus no horto, o seguia de longe, diz São Matheus: Sequebatur eum a longe (4). Mas assim fazendo, facilmente lhes acontecerá o que aconteceu a São Pedro, que, depois exposto à ocasião, negou a Jesus Cristo. – O tíbio se contentará com o pouco que faz por Deus; mas não se dará por contente o Senhor, que o chamará à vida perfeita; e em castigo da ingratidão, não só o privará dos favores especiais, mas permitirá às vezes a perdição do tíbio. Ubi dixisti sufficit, ibi periisti! (5) – “Quando disseste: basta, começou a tua perdição”. A figueira do Evangelho foi destinada ao fogo somente porque não produzia fruto.
II. Desgraçado do religioso que, chamado à perfeição, faz as pazes com seus defeitos! Enquanto alguém detesta as suas imperfeições, há esperança dele se fazer santo; mas quando comete faltas e não as despreza, então, diz São Bernardo, está perdida a esperança. Qui parce seminat, parce et metet (6) – “Quem semeia pouco, pouco colherá”. Para fazer um santo, não bastam as graças ordinárias; mas são precisas as extraordinárias. Como há de ser liberal o Senhor com os favores para com aquele que lhe regateia o seu amor? – De mais, para a santidade precisa-se de ânimo e força para vencer todas as repugnâncias; “e não julgue alguém”, diz São Bernardo, “que poderá chegar à perfeição, se não se tornar singular entre os outros na prática das virtudes: Perfectum non potest esse nisi singulare”.
Meu irmão, reflete aqui: para que deixaste o mundo e tudo o mais: para te fazer santo. Mas a vida assim tíbia e imperfeita que levas, será ela o caminho para a santidade? Santa Teresa animava suas filhas, dizendo-lhes: “Irmãs, tendes feito o mais; só vos resta a fazer o menos para serdes santas.” O mesmo te digo a ti: Já tens talvez feito o mais: deixaste a pátria, a casa, os parentes, os bens, os divertimentos; resta fazer o menos, para te fazer santo; faze-o.
Ah, meu Deus, não me vomiteis de vossa boca, embora o mereça, porque quero emendar-me. Reconheço que a minha vida assim descuidada não Vos pode contentar; reconheço que eu mesmo, com a minha tibieza, fecho a porta a tantas graças que desejareis conceder-me. Senhor, não me abandoneis ainda; continuai a usar comigo de piedade, já que quero levantar-me de tão miserável estado. Para o futuro quero estar mais atento em vencer as minhas paixões, em seguir as vossas inspirações, em não deixar por preguiça os meus deveres, senão cumpri-los com mais diligência. Quero, em suma, de hoje em diante, fazer quanto possa para Vos agradar; não quero descuidar-me de coisa alguma que eu saiba ser do vosso gosto.
Vós, ó meu Jesus, tendes sido tão generoso comigo em conceder-me tantas graças e de boa vontade destes por mim vosso sangue e a vida. Não é justo que eu continue a ser reservado para convosco. Vós mereceis toda a honra, todo o amor; mereceis que se sofra com alegria toda a pena, todo o trabalho para Vos agradar. Mas, meu Redentor, conheceis a minha fraqueza, ajudai-me com a vossa poderosa mão; em Vós confio. – Imaculada Virgem Maria, vós, que me ajudastes a deixar o mundo, ajudai-me a me vencer a mim mesmo e a me fazer santo. Fazei-o pelo amor de Jesus Cristo.
Referências:
(1) Ap 3, 16
(2) Eclo 19, 1
(3) Mt 26, 58
(4) S. Agostinho
(5) 2 Cor 9, 6
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 203-206)