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Jesus traído pelo pérfido Judas e preso como um ladrão

beijo de judas

Capítulo XIX

Comprehenderunt Jesum, et ligaverunt eum – “Prenderam a Jesus e o manietaram” (Jo 18, 12)

O pérfido Judas decidira-se a trair Jesus.
Acompanhado de uma multidão de soldados romanos e de criados armados de lanternas e varapaus dirigiu-se para o jardim das Oliveiras, onde sabia que seu divino Mestre ia orar à noite. De caminho disse à sua tropa:

“Como não conheceis de vista a Jesus de Nazareth, notai aquele em quem eu der um beijo: esse é que deveis prender; mas conduzi-o com precaução e olhai não vos escape”

O sinal e os conselhos eram dignos de Judas.
Depois de medidas tão bem tomadas, entra no jardim; deixa a sua tropa a alguma distancia e reconhecendo Jesus, seu Salvador, corre a ele dizendo: “Eu te saúdo, Mestre”, e lançando-se ao pescoço o beija. O Cordeiro de Deus não recusou este beijo, por ventura o mais cruel de todos os tormentos da sua paixão; mas como conhecia o desígnio deste desgraçado, a ver se ainda o ganhava e fazia cair em si mesmo, diz-lhe com uma doçura capaz de abrandar um tigre e converter um celarado ordinário:

“Judas, pois é com um beijo que entregas o teu Mestre?”

Depois destas palavras deu alguns passos para a tropa inimiga que o esperava e lhe diz:

“A quem procurais? A Jesus de Nazaré, responderam. Eu sou, replicou Jesus. Podeis lançar mão de mim, pois eu sou a quem procurais; eu vo-lo permito, mas deixai estes, acrescentou, mostrando seus discípulos, e não os inquieteis”

Ó amabilíssimo Jesus! Assim é que em toda a ocasião vós tomais a peito o mostrar-nos quanto nos amais. Vêm os vossos inimigos prender-vos e arrastar-vos à morte, e vós sem pensar nem em fugir nem em defender-vos, só dos vossos caros discípulos vos ocupais; contra vós permitis tudo aos inimigos, porém contra os que vos amam não lhes consentis a mínima coisa. Ó Jesus! Servir assim um Senhor como vós, que felicidade não é! Poder-se assim repousar sobre o vosso amor, de todos os cuidados que nos toquem, quão suave é! Não, doravante, meu Jesus, hei de ter em vós uma confiança sem limites; quero, quero abandonar-me a vós sem reserva. Vós sois o meu protetor e velais sem cessar sobre mim: quem poderá, pois, fazer-me tremer, ou de que poderei eu ter medo? Pois que! Um príncipe está cercado dos seu guardas c nada teme; um mortal guardado por outros mortais como ele, crê-se em seguro! E eu, eu que estou sob o cuidado do meu Deus, hei de tremer? Não, não. Ó Jesus, hei de ter sempre confiança em vós. Desencadeie-se contra mim todo o inferno, que eu sempre confiarei em vós. Convosco nada tenho a temer dos seus furores; pode ele tirar-me o que vós me destes? Em paz repousarei sempre no vosso seio e nele tomarei um repouso que nada me poderá perturbar. Entre¬tanto os soldados arremessam-se sobre Jesus, amarram-no estreitamente com cordas e o arrastam com furor.

Ó céus! Um Deus encadeado!!! Santos anjos do paraíso, que sentimentos foram os vossos ao ver o vosso Rei, de mãos ligadas atrás das costas, marchar no meio de soldados e atravessar assim neste estado as ruas de Jerusalém! E vós, ó Jesus! Como é que consentistes em ser preso pelos homens, a quem vós mesmo criaste, a quem acumulastes de tantos e tantos bens? “Quid tibi et vinculis?” exclama dolorosamente São Bernardo. Que querem dizer esses laços dos malvados em vós que sois uma bondade e majestade infinita? A nós, a nós, ingratos pecadores e condenados ao inferno, a nós é que são justamente devidos esses laços, e não a vós, Santo dos santos, e a inocência mesma… Mas, ó bom Jesus! Bem vos compreendo, sim; vós quisestes deixar-vos ligar como um escravo, para nos dar uma nova prova do vosso amor; quisestes sofrer esses tratos indignos para nos dar um admirável exemplo de doçura e para preencher esta profecia de Isaías: Foi sacrificado porque quis!

Ó alma minha! Olha o teu Deus carregado de cadeias e arrastado por uma vil populaça a casa de Annaz e Caifaz. Lançam mão da sua sagrada pessoa, e ele não opõe a mínima resistência; algemam-lhe as mãos, e ele não diz palavra; os soldados em sua bruta impaciência empurram-no com dureza, arrastam-no cruelmente para o fazer andar mais depressa, e ele não deixa ouvir um queixume, não profere uma ameaça. Sempre a mesma calma, sempre a mesma doçura; é um cordeiro inocente levado para o matadouro; cala, sofre com humildade. Que belo modelo para mim! Ser-me há agora difícil ainda encadear a minha vontade própria para a submeter à dos meus superiores? Ser-me-á muito penoso ainda obedecer-lhes pontualmente; fazer, não o que me agrada, mas o que eles julgam conveniente que eu faça; ir, não onde eu quiser, mas aonde suas ordens me enviarem? suceder-me-á ainda mostrar-me difícil, talvez mesmo pouco submisso, amigo de dar as minhas razões, rebelde? Não, meu Deus, não; doravante obedecerei com mais perfeição, afim de vos ser mais agradável. Dignai-vos vir em socorro da minha fraqueza.

Beijo, ó meu bom Jesus! Beijo essas cordas que vos atam; são elas que me libertaram das cadeias eternas por mim merecidas. Miserável de mim! quantas vezes renunciei à vossa amizade desonrando-vos com os meus pecados! Ah! Arrependo-me de todo o meu coração de vos ter feito esta injuria. Ó meu Deus! se assim vos ultrajei é porque preferi a minha à vossa vontade; maldita vontade própria! Ó Jesus, tomai essa vontade rebelde, toda vo-la dou. A vossos pés a prendei pelos doces laços do vosso amor, afim de que nenhuma outra coisa queira, senão o que vós quiserdes. Fazei que eu empregue tanto ardor em vos ser agradável quanto vós pondes em procurar a minha felicidade! Amo-vos, ó meu soberano bem! amo-vos, ó único objeto das minhas afeições! reconheço que só vós me heis amado verdadeiramente, e também a vós só é que eu quero amar. A tudo renuncio, só vós me bastais. Ah! Porque vos conheci eu tão tarde? Fazei-me a graça de reparar pelo fervor do meu amor todo o tempo que perdi amando as criaturas; fazei-me a graça de vos amar tanto como Santa Maria Madalena, como São Luiz Gonzaga; tanto, se possível fora como a Santíssima Virgem; fazei-me a graça de em vosso amor perseverar até ao meu ultimo suspiro.
Assim seja.

RESOLUÇÕES PRÁTICAS

Da Doçura

A todos encanta esta virtude da doçura; tê-la é de mui poucos. Muitos dos que pretendem ter esta bela virtude, estão grosseiramente enganados; são cheios de doçura e mansidão, enquanto ninguém os ofende; mas se por desgraça alguém lhes vai tocar, pouco que seja, logo esta pretendida se esvai para dar lugar à cólera e ao ressentimento. Meu caro Teótimo, trabalha com coragem para não seres deste numero; tua doçura sempre seja a mesma em todas as circunstanciais. Que te desprezem, te insultem, te injuriem, nunca te deixes ir à cólera, mas segue sempre o conselho do Apóstolo: “dá bem por mal“. Evita cuidadosamente toda a sorte de contestações e disputas; para o que condescende voluntariamente com os sentimentos dos outros e não os contradigas. Se às vezes o teu dever ou a tua caridade te obrigarem a contradizer a outrem, sempre seja com o maior comedimento. Sê sempre pronto em perdoar aos que te causam aflições e mostra-lhes sempre rosto alegre, aberto e risonho. Nunca repreendas rudemente a alguém, seja quem for, e não confundas uma sabia firmeza com o desabrimento e dureza. Não sejas desses espíritos singulares que à mínima bagatela, à mais ligeira graça que lhes é dirigida por um nada, logo se enfadam e irritam; mas acostuma-te a tomar por amor de Jesus Cristo, tudo à boa parte, a sorrir com bondade, até mesmo quando sentires elevar-se em teu coração a cólera. Numa palavra, é sempre bom, afável, complacente, cortês pronto a te incomodares para não incomodar os outros e lhes ser serviçal.

Oh! Que feliz serias se possuirás esta bela virtude da doçura! Foi a virtude mais predileta do nosso Salvador. Provou quanto lhe era cara a doçura fazendo bem aos ingratos, respondendo com benevolência aos que o contradiziam, suportando, sem se queixar, as injurias e os maus tratos. Imita o seu exemplo, meu caro Teótimo, e não esqueças que mais mal nos causa o irritar-nos com estas in- juras, do que elas mesmas nos fariam. Usa da doçura para com os outros; digo mais, usa-a para contigo mesmo. Muitos há que diz São Francisco de Sales, depois de haverem caído em alguma falta, indignam-se contra si mesmos, atormentam-se, e com isto tornam-se culpáveis de mil outras faltas. O demônio, diz São Luiz Gonzaga, em aguas turvas acha sempre que pescar. À vista de tuas quedas, de tuas misérias, de tuas imperfeições, olha não te perturbes, que esta perturbação o mais que pode vir é do orgulho e alta opinião que da tua virtude havias formado; humilha-te, pois; detesta sem paixão a tua falta e logo, logo recorre a Deus, só de sua bondade esperando socorro para não tornares a cair.

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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 149-154)