Cum ergo accepisset Jesus acetum, dixit: Consummatum est – “Jesus, havendo tomado o vinagre, disse: Tudo está consumado” (Jo 9, 30)
Sumário. Consideremos como Jesus moribundo, antes de expirar, percorreu em espírito toda a sua vida. Viu todos os seus trabalhos penosos, as suas dores, as ignomínias suportadas e tudo isso ofereceu-o de novo a seu eterno Pai para a salvação do mundo. Em seguida, virando-se para nós, disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: “Ó homens, nada mais tenho a fazer para ser amado por vós; tempo é que afinal resolvais amar-me.” Amemos, portanto, a Jesus e provemos-Lhe nosso amor fazendo e sofrendo alguma coisa por seu amor, assim como Ele fez e sofreu tanto por nosso amor.
I. Nosso amabilíssimo Jesus, chegado o momento de render o último suspiro, disse com voz moribunda: Tudo está consumado. Pronunciando estas palavras, repassou em seu pensamento todo o decurso de sua vida, viu todos os seus trabalhos, a pobreza, as dores, as ignomínias que tinha sofrido e tudo ofereceu de novo a seu Pai pela salvação do mundo. Depois, voltando-se para nós disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: Homens, tudo está consumado, tudo está cumprido; a ora da vossa redenção se completou, a divina justiça está satisfeita, o paraíso está aberto. Et ecce tempus tuum, tempus amantium (1) — “Eis aqui o vosso tempo, o tempo dos que amam”. É tempo, enfim, ó homens, de vos resolverdes a amar-me. Amai-me, pois, amai-me; porque nada mais tenho a fazer para ser amado por vós.
Tudo está consumado. Vede, disse então Jesus moribundo, vede o que tenho feito para adquirir o vosso amor. Por Vós tenho levado uma vida cheia de tribulações; no fim de meus dias, antes de morrer, consenti que fosse derramado o meu sangue, que me escarrassem no rosto, que me despedaçassem o corpo, que me coroassem de espinhos; finalmente, sujeitei-me a suportar as dores da agonia sobre este madeiro em que me vedes. Que resta fazer? Uma só coisa: expirar por vós. Sim, quero morrer. Vem, ó morte, eu to permito, tira-me a vida pela salvação de minhas ovelhas, amai-me, amai-me, porque já não posso ir mais longe para me fazer amar. Consummatum est — “Tudo está consumado”.
Amemos, pois, a nosso Jesus, e, conforme à exortação do Apóstolo, provemos-Lhe nosso amor, correndo com paciência generosa ao combate que em vida teremos de sustentar conta os nossos inimigos espirituais; provemos-lho resistindo até ao fim as tentações, a exemplo de Jesus Cristo mesmo, que não desceu da cruz antes de expiar e quis consumar o seu sacrifício até morrer: Per patientiam curramus ad propositum nobis certamen, aspicientes in auctorem fidei et consummatorem Iesum (2) — “Corramos pela paciência ao combate que nos é proposto, olhando para o autor e consumador da fé, Jesus”.
II. Quando as paixões interiores, as tentações do demônio, ou as perseguições da parte dos bons, nos fizerem perder a paciência e aceitar a ofensa de Deus, olhemos para Jesus crucificado que derramou todo o seu sangue pela nossa salvação e lembremo-nos que por seu amor não temos ainda derramado uma só gota de sangue: Nondum enim usque ad sanguinem restitistis, adversus peccatum repugnantes (3) — “Ainda não resististes até o sangue, combatendo contra o pecado”.
Quando tivermos de ceder em algum pundonor, de reprimir algum ressentimento, de nos privarmos de alguma satisfação, de alguma curiosidade ou de outra coisa inútil à nossa alma, tenhamos pejo de o recusarmos a Jesus Cristo. Jesus se nos deu sem reserva, deu-nos toda a sua vida, todo o seu sangue: tenhamos, pois, pejo de usarmos de reserva para com Ele. Não nos enfastiemos de fazer e sofrer alguma coisa por amor de Jesus Cristo, que por nossa salvação chegou, no dizer de Taulero, “a consumar tudo o que a justiça divina exigia, tudo o que o amor pedia, tudo o que podia dar um claro testemunho de seu amor”.
Meu amabilíssimo Jesus, tomara que eu também pudesse dizer morrendo: Senhor, tudo está consumado; tenho feito tudo que me mandastes, tenho levado com paciência a minha cruz, tenho procurado agradar-Vos em tudo. Ah, meu Deus! Se tivesse de morrer agora, morreria bem descontente de mim mesmo, pois nada disto poderia dizer. Mas, Senhor, viverei sempre tão ingrato ao vosso amor? Suplico-Vos que me concedais a graça de Vos agradar nos anos de vida que me restam, a fim de que, quando vier a morte, possa dizer-Vos que ao menos desde o dia de hoje cumpri a vossa vontade. — Se no passado Vos ofendi, a vossa morte é a minha esperança; para o futuro não Vos quero trair mais. De Vós espero a minha perseverança; eu a peço e o espero, ó meu Jesus, pelos vossos merecimentos. — Ó Maria, Mãe das dores, ajudai-me pela vossa intercessão.
Referências:
(1) Ez 6, 8
(2) Hb 12, 1
(3) Hb 12, 4
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 220-223)