Capítulo VI
1. Contemplai como o nosso amorosíssimo Salvador, chegando ao jardim de Getsêmani, quis dar começo à sua dolorosa paixão, permitindo que os sentimentos de temor, de tédio e de tristeza viessem afligi-lo com todas as suas conseqüência. Começou a ter pavor e angustiar-se e entristecer-se (Mt 26,37; Mc 14,33). Começou primeiramente a sentir um grande temor da morte e das penas que teria em breve de sofrer: Começou a atemorizar-se. Mas como é isso possível? Não foi então ele que se ofereceu espontaneamente a sofrer tais tormentos? Foi sacrificado porque ele mesmo o quis. Não foi ele que tanto desejara o momento de sua paixão, tendo dito pouco antes: Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco? E agora como é que está tão cheio de temor de sua morte, que chega a rogar a seu Pai que dela o livre: Meu Pai, se for possível, afastai de mim este cálice? (Mt 26,39). São Beda, o Venerável, responde: Pede se afaste o cálice para mostrar que é verdadeiramente homem (In Mc 14). Nosso amantíssimo Senhor muito desejava morrer por nós, para com sua morte patentear-nos o amor que nos tinha; mas, para que os homens não pensassem que ele tinha tomado um corpo fantástico (como o afirmaram alguns hereges) ou então por virtude de sua divindade ele tivesse morrido sem experimentar nenhuma dor, fez essa súplica a seu Pai, não para ser atendido, mas para nos dar a entender que morria como homem e morria atormentado com um grande temor da morte e das dores que a deviam acompanhar.
Ó Jesus amabilíssimo, quisestes tomar sobre vós a nossa timidez para nos conceder a vossa coragem no sofrer os trabalhos desta vida. Sede bendito para sempre por tanta piedade e amor. Que todos os corações vos amem quanto vós o desejais e mereceis.
2. Começou a angustiar-se. Começou também a sentir um grande tédio das penas que lhe estavam aparelhadas. Quando se está desgostoso, até as delícias enfastiam. Oh! quantas angústias
inseparáveis de tal tédio não deveria causar a Jesus o horrendo aparato que então lhe passou pela mente, de todos os tormentos exteriores, que deveria martirizar horrendamente seu corpo e sua alma bendita! Apresentaram-se distintamente diante de seus olhos todas as dores que deveria sofrer, todos os escárnios que deveria receber dos judeus e dos romanos, todas as injustiças que lhe fariam os juízes de sua causa, e de modo particular se lhe apresentou à mente a morte dolorosíssima que teria de suportar, abandonado de todos, dos homens e de Deus, num mar de dores e de desprezos. E foi justamente isso que lhe ocasionou um desgosto tão amargo que o obrigou a pedir conforto a seu Pai eterno. Ah! meu Jesus, eu me compadeço de vós, vos agradeço e vos amo.
3. Apareceu-lhe então um anjo do céu que o confortou (Lc 22,43). Veio o conforto, mas este mais aumenta do que lhe alivia a dor, diz São Beda. Sim, porque o anjo o confortou para padecer mais por amor dos homens e para glória de seu Pai. Oh! quantas angústias vos causou este vosso primeiro combate, ó meu amado Senhor! No decorrer de vossa paixão, os flagelos, os espinhos, os cravos vieram uns após outros atormentar-vos; no horto, porém, os sofrimentos de toda a vossa paixão vos assaltam todos juntos e vos afligem ao mesmo tempo. E vós aceitastes tudo por meu amor e por meu bem. Ah! meu Deus, quanto me penaliza não vos haver amado pelo passado e ter ante¬posto os meus gostos criminosos à vossa santa vontade. Detesto-os agora mais que todos os males e me arrependo de todo o coração. Jesus, perdoai-me!
4. Começou a entristecer-se e a magoar-se. Com o temor e com o tédio, começou Jesus a sentir ao mesmo tempo uma grande melancolia e aflição de espírito. Mas, Senhor, não fostes vós que infundistes tão grande alegria aos vossos mártires no meio dos tormentos, que chegavam até a desprezar os sofrimentos e a morte? De São Vicente diz Santo Agostinho que falava com tanta alegria ao ser martirizado, que parecia ser um o que padecia e outro o que falava. Narra-se de São Lourenço que, ardendo nas grelhas, era tão grande a consolação que sentia em sua alma, que insultava o tirano, dizendo: “Vira-me e come”. Como é que vós, ó meu Jesus, que destes tanta alegria aos vossos servos na morte, escolhestes para vós uma tristeza tão grande ao morrer?
5. Ó alegria do paraíso, que alegrais o céu e a terra com o vosso júbilo, por que vos vejo agora tão aflito e tão triste, e vos ouço dizer que a tristeza que vos aflige é suficiente para dar-vos a morte? “Minha alma está triste até à morte” (Mc 14,34). Por que, meu Redentor? Ah! já vos compreendo: não foram tanto os sofrimentos de vossa paixão, quanto os pecados dos homens, entre estes os meus, que vos causaram então aquele grande temor da morte.
6. Tanto o Verbo eterno amava seu Pai quanto odiava o pecado, do qual bem conhecia a malícia. Por isso, para tirar o pecado do mundo e para não ver mais seu amado Pai ofendido, ele veio à terra e fez- se homem e resolveu sofrer uma paixão e uma morte tão dolorosa. Vendo, porém, que, apesar de todas as suas penas, ainda se come- teriam tantos pecados no mundo, esta dor, diz S. Tomás , superou toda a dor que qualquer penitente jamais sentiu por suas próprias culpas e excedeu igualmente qualquer pena que possa afligir um coração humano. E a razão é que todos os sofrimentos dos homens são sempre misturados de alguma consolação; mas a dor de Jesus foi pura, sem lenitivo. Suportou a dor pura sem mistura de nenhuma consolação (Contens. 1.10, d. 4,c. 1). Ah, se eu vos amasse, se eu vos amasse, ó meu Jesus, vendo o quanto padecestes por mim, doces se me tornariam todas as dores, todos os opróbrios e os maus tratos deste mundo. Concedei-me, peço-vos, o vosso amor, para que sofra com gosto ou ao menos com paciência o pouco que me é dado sofrer. Não permitais que eu morra tão ingrato a tantas finezas de vosso amor. Nas tribulações que me sobrevierem, proponho dizer sempre: Meu Jesus, abraço estes sofrimentos por vosso amor e os quero suportar para vos comprazer.
7. Na história lê-se que muitos penitentes, iluminados pela luz divina sobre a malícia de seus pecados, chegaram a morrer de puro dor. Que tormento, portanto, deveria suportar o coração de Jesus à vista de todos os pecados do mundo, todas as blasfêmias, sacrilégios, desonestidades e de todos os outros crimes cometidos pelos homens depois de sua morte, dos quais cada um vinha com sua própria malícia, à semelhança de uma fera cruel, lacerar-lhe o coração. Vendo isto, dizia então nosso aflito Senhor, agonizando no horto: É esta, então, ó homens, a recompensa que vós me dais pelo intenso amor meu? Oh! se eu visse que vós, gratos ao meu afeto, deixaríeis de pecar e começaríeis a amar-me, com que alegria iria agora morrer por vós. Mas ver, depois de tantos sofrimentos meus, ainda tantos pecados; depois de tão grande amor meu, ainda tantas ingratidões, é isto justamente o que mais me aflige, me entristece até à morte e me faz suar sangue vivo:
“E seu suor tornou-se em gotas de sangue que corria até a terra” (Lc 22,44).
No dizer do Evangelista, este suor sangüíneo foi tão copioso que primeiro molhou todas as vestes do Redentor e depois correu em abundância sobre a terra.
8. Ah! meu terno Jesus, eu não vejo neste horto nem flagelos nem espinhos, nem cravos que vos firam, e como é que vos vejo todo banhado em suor de sangue da cabeça aos pés? Foram os meus pecados a prensa cruel que, à força de aflições e tristeza, fez jorrar tanto sangue de vosso coração. Também eu fui então um dos vossos mais cruéis carnífices, ajudando com os meus pecados a atormentar-vos mais cruelmente. Certo é que se eu houvesse pecado menos, menos teríeis padecido, ó meu Jesus. Quanto maior foi o meu prazer em ofender-vos, tanto maior foi a aflição que vos causei ao vosso coração magoado. E como este pensamento não me faz agora morrer de dor, ao compreender que paguei o amor, que testemunhastes na vossa paixão, aumentando vossa tristeza e vossas penas? Fui eu quem atormentou esse tão amável e amoroso coração que tanto me amou! Senhor, como agora não possuo outro meio para vos consolar que arrependendo-me de vos haver ofendido, aflijo-me e arrependo- me de todo o meu coração, ó meu Jesus. Dai-me uma dor tão grande que me faça chorar continuamente até último suspiro de minha vida os desgostos que vos dei, meu Deus, meu amor, meu tudo.
9. Prostrou-se com o rosto por terra (Mt 26,39). Vendo-se Jesus sobrecarregado com a incumbência de satisfazer pelos pecados do mundo inteiro, prostrou-se com a face em terra para suplicar pelo homem, como se se envergonhasse de levantar os olhos para o céu ao ver-se sob o peso de tantas iniqüidades. Ah! meu Redentor, eu vos vejo todo aflito e pálido por vossos sofrimentos e, numa agonia mortal, rezais: Posto em agonia rezava com mais instância (Lc 22,43). Dizei-me por quem orais? não foi tanto por vós que então suplicastes, mas sim por mim, oferecendo ao Eterno Pai vossas poderosas súplicas unidas às vossas penas, para obter-me o perdão de minhas culpas.
“O qual, nos dias de sua mortalidade, oferecendo com grande clamor e com lágrimas e súplicas àquele que o podia salvar da mor¬te, foi atendido pelo seu submisso respeito” (Hb 5,7).
Ah! meu Redentor, como pudestes amar tanto a quem tanto vos ofendeu? Como pudestes aceitar tantos sofrimentos por mim, conhecendo já então a ingratidão com que vos haveria de tratar?
Ó meu Senhor afligido, fazei que eu participe da dor que então sentistes pelos meus pecados. Eu os detesto no presente e uno este meu arrependimento ao pesar que sentistes no horto. Ah! meu Salvador, não olheis para meus pecados, pois não me bastaria o inferno; olhai para os sofrimentos que suportastes por mim. Ó amor de meu Jesus, sois o meu amor e minha esperança. Senhor, eu vos amo com toda a minha alma e quero amar-vos sempre. Pelos merecimentos daquela angústia e tristeza que sofrestes no horto, dai-me fervor e coragem nas empresas para vossa glória. Pelos merecimentos de vossa agonia, dai-me força para resistir a todas as tentações da carne e do inferno. Dai-me a graça de me recomendar sempre a vós e de repetir sempre com Jesus Cristo: Não o que eu quero, mas sim o que vós quereis. Não se faça a minha, mas sempre a vossa divina vontade. Amém.
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