I
Os três primeiros Evangelistas sobejamente nos mostraram nos acontecimentos que acabamos de expor, o lugar de São João e a prerrogativa com que foi honrado. É ele próprio que vamos agora ouvir. Falará de visu. Seu livro é um testemunho: tal é o nome que lhe confere com insistência, terminando-o (19, 36; 20, 25); além disso, sendo o discípulo amado do mestre, fala como testemunha íntima. Se recorda este título a cada instante, é porque esse privilégio lhe permitiu ver melhor, de mais perto e mais a fundo, até o recôndito da alma amante e amada! Se, pois, Justino o mártir pode dar aos quatro evangelhos a denominação comum de Memórias ou lembranças, quanto mais especialmente tal nome não se aplica ao Evangelho de São João! Esta qualidade também se justifica pela própria leitura. É a demonstração interna de autenticidade e de veracidade da narrativa, convém notar. Mil particularidades de lugar, de tempo, de estilo, revelam a presença pessoal do narrador, ao passo que reflexões ardentes ou profundas atraem o coração do amigo particular do Mestre. O que vimos, o que ouvimos, o que tocamos do Verbo de vida, nós vo-lo anunciamos, deveria ele escrever um dia. A nós também seu livro faz ver, ouvir e tocar com ele esse Verbo verdadeiramente vivo em sua narrativa. Em toda a parte o discípulo aparece sob a égide do Evangelista; seguimo-lo, por assim dizer, graças à irradiação de sua alma e ao sulco de seus passos.I
Jesus, tendo escolhido João e Tiago, tomou-os definitivamente para a sua companhia. Salomé não quis separar-se de seus filhos. Vemo-la, juntamente com algumas mulheres dedicadas da Galileia, seguir os passos de Jesus, ocupando-se da subsistência do Mestre e recebendo suas lições com os dois apóstolos seus filhos (1). O apostolado para o qual tinha sido convidado o filho de Salomé, devia ser o instrumento de salvação do universo. Mas era preciso que antes esses rudes pescadores sofressem uma transformação completa, e é esse trabalho que vamos estudar e admirar em São João. Com efeito, fundar a Igreja, constituir-lhe um espírito que é a caridade, um ensino infalível, que é a verdade, uma hierarquia, que é a autoridade; e depois, uma vez formada esta sociedade à imagem divina, dar-lhes as nações por herança, e deixá-la funcionar sob invisível assistência até o fim dos séculos: eis a ideia de Jesus, tal qual se vê no Evangelho. O seu fim não era, está claro, realizar diretamente por si mesmo a obra sobrenatural da conversão do mundo. Durante a vida, o Pastor só teve como rebanho algumas raras ovelhas do redil de Israel; e trinta anos de existência, três de pregação, de exemplos e de milagres, tendo como fim reunir ao redor de semelhante Mestre somente doze apóstolos e setenta e dois discípulos, provam bem que Ele não foi, e que não quis ser durante sua estada neste mundo, o conquistador das almas. Como Ele mesmo o explica, Ele não colhe, semeia. Semeia, e em seguida, certo de Si e do futuro, pela sua maneira divina, deixa ao tempo o cuidado de fazer brotar os gérmens. Nesta segunda criação, assim como na primitiva, contenta-se em criar os primeiros modelos das coisas e diz:Somente depois da Ascensão, no dia de Pentecostes, começará a pregação geral, universal. Será esse o trabalho dos apóstolos: o de Jesus Cristo é o de escolher, educar e formar os princípios de seu povo e os futuros ministros do reino de Deus."Crescei e multiplicai-vos"
I
Havia um ano que João Batista pregava, anunciando a magnificência mais que humana d’Aquele «que estava entre os homens, mas que os homens ainda não conheciam». Quanto a Ele, reconhecera-O antes à margem do Jordão, e dava disso testemunho dizendo:O filho de Zebedeu ainda não O tinha visto, mas tudo o que ouvia dizer desse Mestre sobre-humano incitava cada vez mais o desejo de conhecê-lO e despertava-lhe os primeiros ardores daquela caridade que ia tornar-se inseparável de seu nome. A escola de João Batista era para seu discípulo uma escola de doutrina superior e toda celestial, e ao mesmo tempo o noviciado de uma vida santamente contrita. Seguindo o exemplo do Mestre, dedicou-se ao nazaritismo, instituto de perfeição em que os Judeus se consagravam mais particularmente a Deus, fazendo voto de abster-se de qualquer licor fermentado e de deixar crescer intacta a cabeleira (Nm 6, 1-21). É de crer que recebera também o batismo do Precursor. Porém este rito exterior era apenas o sinal da pureza espiritual, e da renovação moral que o grande Profeta exigia, como preparação ao batismo d’AqueIe que devia batizar com o fogo e o Espírito. O discípulo bem o compreendera; preparara nele os caminhos do Senhor, e tornara retas suas veredas: o Senhor podia vir. Jesus Cristo, Filho de Deus, veio à Judeia nas margens do Jordão no 15° ano do reinado de Tibério, o 30° da era vulgar, e, segundo o cálculo de sábios cronologistas, no começo da primavera.“Eu vi o Espírito Santo descer do céu em forma de pomba, e pairar sobre Ele. Eu o vi, e dei testemunho de que este é o Filho de Deus" (Jo 1, 32-34)
I
A algumas léguas distante da aldeia de Nazaré, sobre um montículo que domina o lago de Tiberíades, o viajante avista grandes massas e ruínas paralelas à costa. Vários blocos de lava e pedra bruta denotam por sua disposição o recinto de uma antiga cidade. Dois destroços mais notáveis surgem desses escombros. Um, é o de um edifício de pequenas dimensões, situado perto da praia, e que apresenta esculturas, colunas e pilastras mais antigas que os muros. O outro, é um monumento de grande extensão, do qual só restam duas muralhas prestes a cair, porém ornada de belos fragmentos, de capitéis coríntios, de frisas mutiladas estendidas confusamente na relva que as oculta. O local dessas belas ruínas é desolado e morto. O lago banha tristemente as pedras amontoadas ou esparsas sobre a margem. Somente duas magníficas colunas de sienito (1) perfeitamente conservadas e unidas, erguem-se para o céu, como para marcar, por um emblema majestoso, o berço dos dois irmãos que foram indivisivelmente unidos na fé e no apostolado de Nosso Senhor Jesus Cristo.Tomás Becket nasceu em Londres a 21 de dezembro de 1117 duma família anglo-saxônia. Estudou sucessivamente em Oxford, em Paris e em Bolonha. Tendo-se dedicado à carreira eclesiástica, em breve adquiriu grande influência, pelo que Henrique II o elevou à dignidade de chanceler do reino, de preceptor de seu filho, e mais tarde de arcebispo de Cantuária, em 1162. Como quer que o rei pretendesse restringir a jurisdição do clero, pelos seus estatutos de Clarendon, elaborados em 1154, tratou logo o arcebispo de defender animosamente os interesses da Igreja; mas sendo condenado, em 1165, pelo sínodo de Northampton, refugiou-se para junto do Luiz VIII, rei de Franca, que chegou a reconciliá-lo com Henrique II. Ao tempo surgem umas tumultuosas agitações políticas que assinalaram o regresso do arcebispo ao reino; mas o rei da Inglaterra exprimiu imprudentemente o desejo de ser livre do primaz do Cantuária. Imediatamente partiram quatro cavaleiros para a sede do bispado, e ali mataram o infeliz arcebispo mesmo aos pês do altar onde ele ia celebrar o oficio divino. Henrique II teve o desplante de negar este crime, mas no túmulo da vítima confessou-o publicamente e pedia, perdão. A Igreja Católica venera este santo no dia 29 de dezembro.
(V. S. Tomás Becket, sua vida e suas Cartas, obra de M. Darboy, organizada segundo o trabalho de R. Giles. Paris, 1858, 2 vol, em 8º)
Pregado em Paris, na colegiada de Saint Thomas du Louvre, no dia 29 de dezembro de 1668.
SUMÁRIO
Exordio. — Jesus Cristo praticou sempre atos e humilhação, primeiramente na santidade da Sua pessoa e depois em todos os dias da Sua vida. A Igreja não pode gozar de vantagem alguma que lho não custe a morte de seus filhos. Foi por este motivo que São Tomás deu a vida. Proposição e divisão. — Os mártires que combateram pela fé consolidaram-na pelo testemunho do seu sangue, açaimaram pela sua paciência o ódio público, e pela sua constância invencível confirmaram os fiéis. O santo arcebispo de Cantuária consolidou primeiro a autoridade eclesiástica violentamente oprimida; converteu depois os corações indóceis; e animou em seguida o zelo dos que foram propostos para seus defensores. 1.º Ponto. — Igreja é como que uma desconhecida na terra onde se acha revestida dum caráter real, pela soberania inteiramente espiritual que nela exerce. Os príncipes concederam a Igreja grandes privilégios e a Igreja erigiu aos príncipes um trono nas consciências. Henrique II, rei da Inglaterra, declara-se inimigo da Igreja; mas São Tomás representa com brandura e firmeza que as duas potências devem auxiliar-se mutuamente, e morre pelos direitos da Igreja. 2.º Ponto. — Nos primeiros séculos cristãos eram os príncipes inimigos da Igreja, mas, depois de assinada a paz, operou-se a união. São Tomás resiste até à morte do príncipe que quer usurpar os direitos da Igreja, e o seu sacrifício converteu Henrique II. 3.º Ponto. — O sangue de São Tomás reanimou a coragem do clero, que tem privilégios para que a religião seja respeitada, possui bens para o exercício dos santos ministérios e parada subsistência dos pobres; e tem autoridade para que ela sirva de freio a licença, de barreira a iniquidade e de apoio a disciplina. Peroração. — Praza ao divino Salvador que todos os que Ele chamou a vida eclesiástica imitem as virtudes, de São Tomás de Cantuária.In morte mirabilia operatus est Na morte operou coisas maravilhosas. (Eclo 48, 15)
São João, filho de Zebedeu, e irmão de São Tiago Maior, nasceu em Betsaida (Galileia). Era pescador. Chamado ao apostolado por Jesus Cristo, quando tinha 25 anos, o discípulo amado do Salvador foi testemunha de quase todos os Seus milagres e acompanhou-O ao jardim das Oliveiras e ao Calvário. Foi a ele que Jesus, antes de morrer, entregou Sua Mãe; e foi o primeiro a reconhecê-lO após a ressurreição, começando desde logo a pregar o Evangelho. Em 50 assistiu ao concílio de Jerusalém, e depois foi pregar à Ásia Menor e segundo soa, ao reino dos Parthas, vindo a ser o primeiro bispo de Éfeso. Preso por ordem de Domiciano em 95, foi conduzido a Roma e lançado numa caldeira de azeite a ferver, donde saiu ileso, sendo depois desterrado para a ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse. Voltando para Éfeso, depois da morte do imperador, compôs o seu Evangelho, e morreu aos 94 anos, no ano 101 da era de Cristo, deixando ainda 3 Epístolas canônicas. A sua festa é celebrada a 27 de dezembro; e o seu emblema é uma águia.
Pregado em Metz, na Igreja de São João da Cidadella, 1657 ou 1658.
SUMÁRIO
Exordio. Hoc est perfectum quod placet ariifici suo — Por isso deve ser grande a perfeição do discípulo amado. Proposição e divisão. — Durante toda a sua vida pública Jesus Cristo deu a São João provas da sua amizade:«O discípulo verdadeiramente feliz a quem Jesus Cristo deu: 1.° A sua cruz para vos associardes a Sua vida de sofrimento... 2.° Sua Mãe para que vivesse eternamente na vossa lembrança... 3.° O Seu coração para com ele vos unificardes»1.º Ponto. — A amizade de Jesus dá a cruz a São João, e o discípulo amado aceita-a. A sua vida é: Juge sacrificium, porque sofre o martírio na caldeira de azeite a ferver e sobretudo no exílio. Depois da Ascensão de Jesus Cristo e da Assunção de Nossa Senhora, disse, muitas vezes: Domine Jesu, veni. 2.º Ponto. — Onde o amor mais generosamente se manifesta é na morte. Assim, Jesus crucificado dá a Virgem Maria a São João e São João à Virgem Maria; e no céu ama Jesus a Virgem duma maneira diferente da terra, isto é, sem comoções e sem cuidados. Delega em São João a forma de amor que tinha durante a sua vida mortal: Delegat homini jura pietatis humanae. As palavras de Jesus: Fili, ecce mater tua são eficazes, formando em São João um coração de filho para com a Virgem Maria. 3.º Ponto. —Jesus convida o discípulo amado a descansar em Seu coração; e durante o seu agradável repouso obtém São João do coração de Jesus um profundo conhecimento do seu divido Mestre, que ele traduz dizendo: Nos credidimus charitati. Peroração. — Amemos os nossos irmãos em Jesus Cristo. No céu os bem-aventurados estão unidos muito intimamente pelos laços da caridade; Amemo-nos para compartilharmos da sua bem-aventurança.
Ego dilecto meo, et ad me conversio ejus Eu sou do meu amado, e a corrente dos seus afetos converge para mim (Ct 7, 10)
Sermão para a Festa da Conceição
Nota: Deve notar-se ali e noutras frases subsequentes deste sermão, que Bossuet viveu no século XVII, em que a Conceição Imaculada de Maria Santíssima não era ainda definida como dogma católico: só o foi em 8 de dezembro de 1854.
SUMÁRIO
Exordio. O mistério que hoje celebramos parece ser para Bossuet o mais difícil de tratar. Todos estão mortos, todos estão criminosos e condenados em Adão. Como pode a esta condenação escapar a Virgem Maria? Proposição e divisão. Fecit mihi magna qui potens est: 1.° A autoridade soberana excluiu Maria da lei geral; 2.° A sabedoria divina separou-a do contágio universal; 3.º O amor eterno de Deus precaveu-a misericordiosamente da sua cólera. 1.º Ponto. — A soberania consiste, ao que parece, em fazer leis dentro da esfera da autoridade, e em suprimi-las dentro dos limites do poder; sendo a supressão justificada concedida às personagens eminentes, e a fundada no exemplo, concedida apenas à glória do soberano. É o que no caso presente se realiza. Concluamos com Tertuliano: Non tantum obsequi ei debeo, sed adulari. 2.º Ponto. — Devendo a sabedoria divina produzir a ordem e a diversidade, separa a Virgem Maria de todas as criaturas, insinuando-se nela, peculiari munere. Separemo-nos da multidão dos homens e façamos aliança com Jesus Cristo. 3.º Ponto. — Como Jesus é o ministro da graça, concede a Maria este dom em excesso, e não aguarda o progresso da idade para ser liberal para com ela. O amor do Filho exceptua a Mãe da mácula da conceição e faz com que ela fique Virgem. Peroração. — O pecador foge de Deus; mas nós devemos associar-nos a Ele. Ninguém pode contar com a misericórdia, mas ela adverte-nos a fim de evitarmos a justiça; e confessando humildemente os nossos pecados, louvaremos a Deus.Fecit mihi magna qui potens est E o Omnipotente operou era mim grandes maravilhas (Lc 1, 49)