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Correção

Correção, Tesouros de Cornélio à Lápide

A correção é necessária

Por fim, o ímpio morrerá infelizmente, dizem os Provérbios, porque desprezou a admoestação, e achar-se-á enganado pelo excesso de sua loucura: Morietur, quia non habuisti disciplinam, et in multitudine stultitiae suae decipietur (Pr 5, 23). Aquele que descuida a correção, extraviado anda, acrescentam os Provérbios: Qui increpationes relinquit, errat (Pr 10, 17).

Recordem-se destas palavras da Escritura os superiores, os pregadores, os pais, os patrões e patroas, e não se descuidem de cumprir com o seu dever da correção.

É uma crueldade, diz São João Clímaco, tomar o pão da mão de uma criança que tem fome; porém, aquele que tem a obrigação de corrigir alguém e não o faz, prejudica-se a si mesmo, e prejudica a quem ele deixou de corrigir. Cai em três faltas que estava obrigado a evitar:

1.° priva-se da recompensa que teria recebido se houvesse cumprido o dever da correção;

2.° Escandaliza aos que são testemunhas de sua negligência;

3.° conduz à condenação, por fim, todos aqueles a quem tinha a obrigação corrigir.

Por mais fértil que seja um terreno, é necessário cultivá-lo; pois, de outra sorte, invadiriam-no mazelas e ervas daninhas (Grad. IV de Obed.).

Quem escasseia o castigo[1], quer mal a seu filho, mas quem lhe ama, corrige- o continuamente, dizem os Provérbios: Qui parcit virgae, odit filium suum; qui autem diligit illum, instanter erudit (Pr 13, 24). Aquele que corrige com cuidado é aquele que ama, diz São Jerônimo: Qui diligenter corripit, diligit (Epist.).

Aquele que, por medo de afligir-se, não corrige a seu filho caído em falta, parece que cede a uma demasiadamente grande ternura; porém, na realidade, não o ama verdadeiramente; e até poderíamos dizer que o detesta demais, porque esta é a causa pela qual seu filho se tornará preguiçoso, insolente e rebelde; em uma palavra, o faz tal, que prontamente ver-se-á obrigado a detestá-lo ainda mais.

A indulgência exagerada dos pais, faz filhos viciosos; porém aquele que ama verdadeira e cordialmente a seu filho, repreende-o assiduamente, forma-o, corrige- o, e quando é necessário, vale-se do castigo para reprimir os vícios e fazer nascer as virtudes em seu coração.

A insensatez está alojada, dizem os Provérbios, no coração da criança, mas a vara do castigo lançá-la-á fora: Stultitia colligata est in corde pueri, et virga disciplinae fugabit eam (Pr 22, 15).

Esta estultícia é a puerilidade, a superficialidade, a petulância, a preguiça, a dissipação, a rudeza, a irreflexão, a inexperiência, a imprudência, a inconstância, a concupiscência: todas essas misérias são inatas à criança, e devem ser destruídas. Devem desaparecer com os avisos, as repreensões e as correções .

Não economize a correção ao jovem; ainda que de ti receba ele algum castigo, não morrerá: Non subtrahere a puero disciplina; si enim percuseris eum virga, non morietur (Pr 23, 13). Aplica-lhe a vara do castigo, e livrarás a sua alma do Inferno: Tu virgapercuties eum, et animam ejus de inferno liberabis (Pr 23, 14). A correção é para o jovem, o que é o freio para o cavalo e o aguilhão para o boi.

Os pais que são demasiado indulgentes para os seus filhos, não empregam os castigos; porém expõem-nos aos suplícios do Inferno. Aquele que porta-se demasiado indulgente com seu filho é seu mais cruel inimigo. Se amais, portanto, a vossos filhos, pais e mães, empregai a vara e as correções, e não aconteça que vão parar no Inferno. Se os livrais daquelas, será para condená-los a este: escolhei.

Repetimo-lo: a salvação e a felicidade dos filhos resultam de uma boa educação e da justa severidade dos pais. Ao contrário, uma condescendência licenciosa e a ausência de correção são o princípio da má conduta e da reprovação dos filhos: caem nos excessos e crimes que levam a si próprios para sua desgraça eterna.

Quantos filhos, no Inferno, maldizem a seus pais; e, assim, cumular-lhes-ão de imprecações durante os séculos dos séculos por haverem fechado os olhos e descuidado de repreender-lhes, corrigi-los e enfrentá-los a propósito, sendo essa a causa de sua condenação eterna.

Há explicação para o ódio desses desgraçados; porque tais pais deram-lhes, não a vida, mas a morte; não o Céu, mas o Inferno; não a felicidade, senão a desgraça sem término e sem limites.

A criança guarda até sua velhice e até a morte os costumes de sua infância e de sua juventude, segundo aquelas palavras da Sagrada Escritura: A senda pela qual começou o jovem a andar desde o princípio, essa mesma seguirá também até em seus anos pósteros: Adolecens juxta viam suam etiam cum senuerit non recedet ab ea (Pr 22, 6). A árvore que cedo se encurva segue com sua má inclinação até que lhe cortem e lhe lancem ao fogo.

O médico que amarra ao louco furioso, o pai que castiga a seu filho vicioso e indisciplinado, fazem-se insuportáveis àqueles por eles corrigidos, diz Santo Agostinho; porém, ambos agem por afeto. Pois, se o pai ou o médico deixam-lhes demasiadamente livres e são causa da própria morte, esta conduta não é bondade, senão uma verdadeira crueldade. Não se descuidam as correções tratando-se do cavalo e da mula, seres desprovidos de razão e que resistem com coices e mordidas aos que lhes atam para domá-los e curar-lhes as feridas; ao contrário, persiste-se até que, por meio do látego ou dos remédios, seja obtido o resultado desejado. Com quantas maiores razões não pode o homem abandonar a outro homem, o irmão a seu irmão, o pai a seu filho, o patrão a seu empregado, o superior a seu subordinado, e não lhe deixar perecer pela eternidade adentro! Mas tarde, estes compreenderão qual bem infinito se lhes foi feito quando, apesar de suas queixas, uma preciosa correção se lhes impunha (Epist. I, ad Bonif.).

O castigo e a repreensão provocam sabedoria, dizem os Provérbios; porém, o filho abandonado a seus desejos, cobrirá de confusão a sua mãe: Virga atque correptio tribunt sapientiam; puer autem qui dimittitur voluntati suae, confundit matrem suam (Pr 29, 15).

A impunidade, diz São Bernardo, é filha do descuido, mãe da insolência, raiz da imprudência, e amamentadora das transgressões: Impunitas incuriae soboles, insolentiae mater, radix impudentiae, transgressionum nutrix (Lib. IV de Consid., c. VI).

Ao cavalo sem domar, diz a Escritura, não se pode manejar; e o filho abandonado a si mesmo, faz-se insolente. Bajula ao filho, e ele te aterrorizará; brinca com ele e ele te cumulará de pesares e te entristecerá. Não caias no riso com ele, a fim de que não aconteça, ao fim, que tenhais de chorar, e que ele vos faça ranger os dentes. Não lhe deis poder sobre si mesmo em sua mocidade, e não dissimuleis suas travessuras. Dobrai-lhe a cerviz durante sua juventude, e castigai-o enquanto é criança, para que não aconteça que se endureça e negue-vos a obediência; pois isso causará dor à vossa alma. Instrui a vosso filho e trabalhai para formar-lhe, para não serdes cúmplices em sua desonra (Ecl 30, 8-13).

Excelência e vantagens da correção

A correção é o caminho da vida para aquele que a executa e para aquele que a recebe. A reprimenda, diz Clemente de Alexandria, é uma medicina que cura as enfermidades perigosas da alma; é um bálsamo que cicatriza as antigas chagas, apaga as manchas da vida impura e licenciosa; queima e corta os excessos do fausto, do orgulho e da carne. É o verdadeiro regime da alma enferma. Ensina-lhe o que deve fazer e a preserva daquilo que é danoso. Aquele que exerce a correção dá uma prova de benevolência e não de ódio (Lib. I. Paedag., c. V).

As correções, diz São Gregório Nazianzeno, são o caminho real do Céu: Correptiones sunt regia ad coelum via (Orat. de Plaga grand.).

A correção é o custódio da esperança, o guia que conduz à vida, a dona das virtudes; alcança para o homem a realização das promessas celestiais e as recompensas eternas. Devemos aceitá-la por necessidade de nossa salvação e para afastar-nos do pecado; porque diz o Salmista: Servi-vos da correção para prevenir a cólera de Deus e a vossa perdição: Apprehendite disciplinam, ne quando irascatur Dominus, et pereatis de via justa (Sl 2, 12).

A correção é um sal que evita que o coração venha a se corromper.

O moinho separa o trigo da palha; a seleção separa o bom grão da cizânia; a correção é, por sua vez, uma seleção e uma debulha. Quando nos servimos dela, apartamos o vício e conservamos a virtude.

As reprimendas e as correções eximem-nos das tentações do demônio, do mundo e da concupiscência; e ajudam-nos!

Hugo de São Vítor diz muito bem que a correção detém os maus desejos, põe freio às paixões da carne, abate o orgulho, doma a intemperança, destrói a superficialidade e reprime os maus movimentos do espírito e do coração (Instit. Monast. ad Novit.).

O mesmo Deus castiga aquele que Ele ama, diz São Paulo aos Hebreus, e açoita a todos aqueles que recebe na qualidade de filhos: Quem enim diligit Dominus, castigat; flagellat omnem filium quem recipit (Hb 12, 6). Pois repreendo aos que amo e castigo-os, diz o Senhor no Apocalipse: Ego quos amo, arguo et castigo (Ap 3, 19). Por esta razão, quando Deus não castiga aos pecadores, dá-lhes uma prova visível e espantosa de Seu ódio; todavia, quando os castiga, dá-lhes a maior e mais segura prova de seu amor, segundo aquelas palavras do Real Profeta: Senhor, tu atendias a seus rogos, fostes-lhe propício, ó Deus, ainda vingando todas as injúrias que te faziam: Deus, tu propitius fuistis eis, ulciscens in omnes adinventiones eorum (Sl 98, 8); e segundo estas outras palavras do segundo livro dos Macabeus: Porque é sinal de grande misericórdia para com os pecadores não deixá-los viver longo tempo sob seus caprichos, senão aplicar-lhes prontamente o açoite para que se emendem: Etenim multo tempore non sinere peccatoribus ex sententia agere, sed statim ultiones adhibere, magni beneficii est indicium (2 Mac 6, 13).

Se empregais pouca correção, vosso filho tornar-se-á mal e inútil; se a empregais frequentemente, melhorará. A tenra idade é como a argila, à qual se dão quaisquer formas que se desejam.

A correção é o bem supremo da alma, ilumina-a, purifica-a, embeleza-a, adorna de todas as virtudes e a faz perfeita. Pelo que, aquele que despreza as advertências e a correção, despreza ou odeia a própria alma; da mesma maneira o enfermo, que odeia aos remédios e ao médico, odeia sua saúde, porque a medicina existe para curar-nos. A correção é para a criança e para o homem que obedecem à carne e inclinam-se ao vício, o mesmo que é o arado para o campo, a pá e enxada para o jardim, a lima para o ferro, o crisol para o ouro, o moinho para o trigo, o freio e a espora para o cavalo, e um antitérmico para a febre.

A reprimenda e a correção são uma obra de misericórdia, uma esmola espiritual, o sinal certo de uma caridade e de uma amizade sincera.

Uma correção regular faz parte da regra, diz São Bernardo; serve não somente para manter no caminho do bem aos que o seguem, senão também para pressionar aos que se conduzem mal; dá material à obediência; e é um remédio para os que desobedecem; impede que nos entreguemos aos pecados e que abandonemos a regra: Pars regulae est regularis corretio; et in ea reperitur non solum bonae vitae instructio, sed etiam emendatio pravae; inveniuntur in ea et praecepta obedientiae, et inobedientiae remedia, et ne pecando quidem a regula recedatur (De Praecept. Et Dispens.).

A correção preserva da morte espiritual e do Inferno; livra do pecado; previne a queda e salva da condenação; põe obstáculo à faltas e à ruína em que ordinariamente caem os jovens e os inferiores, a quem os pais e os superiores deixam uma perigosa e enganosa liberdade, e os abandonam aos impulsos da cruel concupiscência.

Deus corrige com provas e tribulações. As tribulações são remédios que Deus em seu amor emprega para curar-nos, para apartar-nos da carne, do mundo e do pecado, para dirigir-nos no caminho do espírito, longe do mundo e do pecado; para dirigir-nos no caminho do espírito e das virtudes, e para atrair-nos a Ele; porque a carne, o mundo e o demônio enganam-nos, cegam-nos e nos levam à perdição, atraindo-nos com o peçonhento atrativo dos prazeres.

Por isso, São João Crisóstomo representa a Deus enviando castigos a Adão e opondo-se às seduções da serpente: Deus é um amigo, diz, e o demônio um inimigo; Deus é nosso Salvador e cuida de nós; o demônio é nosso inimigo e o sedutor do homem. O demônio quis se apoderar de Adão fazendo-lhe carícias; Deus dirigiu a Adão reprimendas e correções. Porém, como foi que se esforçou Satanás em seduzir o homem, e como Deus, por seu turno, castigou-o? Satanás exclamou: Sereis como deuses: Erit sicut dii. Deus, pelo contrário, disse: Sois pó, e voltareis ao pó: Pulvis es, et in pulverem reverteris. Quem dos dois foi mais útil ao nosso primeiro pai? Aquele que disse: Sereis como deuses, ou Aquele que indicou-lhe: Sois pó e voltareis ao pó?

Deus inflige a morte; a serpente promete a imortalidade; porém aquele que promete a imortalidade expulsa do paraíso, enquanto que Aquele que inflige a morte conduz ao Céu. Vês, agora, quão preciosas são as reprimendas e correções e um amigo, e quão perigosas e perniciosas são as carícias de um inimigo?

Este exemplo prova evidentemente que devemos dar graças aos que nos repreendem e corrigem: somente nossos verdadeiros amigos empregam reprimendas e correções (De Reprehens. Ferend.)

Levantem-se, pois, valorosamente os pregadores contra os vícios, e não os adulem jamais. Façam os mesmo os pais, os patrões, os superiores relativamente às pessoas com que devam tratar.

Os que se valem do açoite, prendem santamente e ferem com muita vantagem: tais feridas fazem sair a corrupção do corpo, e devolvem-lhe prontamente uma robusta saúde. Os pecadores devem desejar os golpes que lhes curam, santificam-nos e salvam-nos. Vale mil vezes mais ser castigado por verdadeiros amigos, que se ver arrasado e precipitado no Inferno por cruéis aduladores.

Aquele que repreende a uma pessoa, diz a Escritura, reconcilia-se depois com ela mais facilmente que aquele que a engana com palavras lisonjeiras: Qui corripit hominem, gatiam postea inveniet apud eum magis quam ille qui per linguae blandimenta decipit (Pr 28, 23).

O castigo e a repreensão acarretam sabedoria: Virga atque corrptio tribuunt sapientiam (Pr 29, 15). A correção é um espelho em que vemos a manchas que nos desfiguram e podemos assim fazê-las desaparecer. É um conjunto de remédios que curam a alma e fazem-na formosa: aquele que a evita, foge da própria cura. Eis aqui por que exclama São Bernardo: Admirável perversidade! Irritamo-nos contra aquele que nos cura e repreende-nos, e amamos aquele que, adulando-nos, fere e mata-nos: Mira perversitas! Medicanti irascitur, qui nos irascitur sagittanti! (Serm. XLII, in Cant.).

Repreender e corrigir, diz Clemente de Alexandria, é sinal de benevolência, e não de ódio: o amigo e o inimigo humilham-nos; porém, este faz-nos por zombaria, e aquele, por afeto: Benevolentiae, non odii signum est reprehendere: ambo enim probum objiciunt, et amicus, et inimicus; sed inimicus quidem irridens, amicus vero benevolens (Lib. I Paedag., c. VIII).

Vós me castigastes, Senhor, diz Jeremias, e fui corrigido qual um novilho indômito (Jer 31, 18). Diz o livro segundo dos Reis que Davi destruiu aos moabitas e aos prisioneiros, lançando-os ao solo e mediu-os com um cordel. Duas foram as cordas com que os mediu e sorteou, uma para dar morte e outra para salvar-lhes a vida (II Reg. VIII, 2). Assim deve operar aquele que emprega a correção: deve empregá-la com medida, peso e justiça: deve dividi-la em duas partes e dar-lhe de duas maneiras, com severidade e doçura, há de matar o pecado e fazer reviver a virtude.

Saibam aqueles que deverão repreender e corrigir que devem ser severos e doces, devem mesclar a força à bondade, e a bondade à energia. Sem isto não se corrige; as graves enfermidades não se curam sem empregar o ferro ou o fogo.

Miséria e ignomínia, diz a Escritura, experimentará aquele que foge da correção: Egestas et ignominia ei qui deserit disciplinam (Pr 13, 18).

Ouvi a São Gregório: Se há uma vara da correção, que haja também o maná da doçura; por isso exclama o Real Profeta: Senhor, vossa vara e vosso báculo me consolaram. A vara fere-nos, o báculo guia-nos. Encontre-se, pois, junto à correção o amor; porém, não um amor débil; haja severidade; porém, não uma severidade desesperante; haja zelo; porém, um zelo prudente e moderado; haja piedade; porém, não uma piedade demasiado indulgente, a fim de que, mesclando a justiça e clemência, aquele que está obrigado a repreender e corrigir derrame também a doçura e o temor no coração daqueles a quem repreende. Faça-se obedecer pelo temor, e faça-se amar pela doçura (Pastor., c. VI).

O golpe dado com a vara não deve ser uma estocada ou uma punhalada que mate, senão um disciplinador que cure os vícios, segundo as palavras do Deuteronômio: Eu mato e Eu dou a vida: Ego percutiam, et sanabo (Dt 32, 39).

Uma educação equilibrada e severa possibilita que as crianças cresçam robustas e enérgicas, e as faz viver longo tempo em perfeita saúde; ao contrário, uma disciplina branda e demasiado indulgente torna as crianças débeis e enfermiças. Elas morrem logo, como o prova a experiência.

Nós abrigamos, acalentamos, servimos, acariciamos, alimentamos e amamos nossos filhos, diz Santo Ambrósio; devemos, pois, cuidar de não prejudica-los nem matá-los com uma disciplina efeminada, nem bárbara (Serm.).

Cuidai e curai às crianças e aos pecadores como um médico hábil e bom, servindo-vos de medicamentos proporcionados à necessidade de cada um; empregai não somente o ferro e o fogo, senão também as ataduras, as fibras espirituais, os sucos, e tudo o que pode servir para purificar e fechar a chaga, acalmar as dores e aliviar ao enfermo. Se a ferida é profunda, derramai nela um bálsamo que a cicatrize; se é purulenta, limpai-a pouco a pouco; e que vossas palavras pareçam-se com o bisturi; se a chaga inflama-se, cauterizai-a com as ameaças do juízo de Deus; se ela se prolonga, limitai-a com jejum e mortificação. As correções devem ter, por fim, a destruição do pecado e os progressos da virtude; os golpes devem se dar ao vício para detê-lo; e não devem tocar à reputação, nem devem vir acompanhados de injúrias, de ira, de insolências e de ultrajes, porque obrando assim não se curariam as chagas velhas; antes, abrir-se-iam outras novas.

A benevolência acalma a cólera, diz Santo Ambrósio; faz que recebamos a correção com fruto, como um dom precioso; e longe de transformar em inimigo aquele que a recebe, faz dele um amigo. Empegada assim, a correção corta, fere e purifica, porém sem dor. A reprimenda severa põe, na verdade, a falta em descoberto; porém, quando empregada com doçura, o enfermo aceita o remédio sem demasiada repugnância, e sua amargura é-lhe agradável (Lib. I. Offic., c. XXXIV).

O beijo de Judas, diz São João Crisóstomo, deixou escapar uma espécie de veneno sutil; Paulo, ao contrário, castigou fortemente ao incestuoso de Corinto, porém, salvou-o (De reprehens. ferend.)

Nem todos aqueles que favorecem são amigos, diz Santo Agostinho, nem todos aqueles que ferem são inimigos. Mais vale amar com severidade, que enganar com doçura. Aquele que amarra um louco ou desperta a alguém da letargia, aborrece-o; e, contudo, ama-o.

Quem nos ama mais do que Deus? E, sem embargo, Ele não deixa de advertir-nos, por um lado, com bondade e, por outro, ameaça-nos e assusta-nos para nosso bem. Ele, muitas vezes, une a doçura que emprega para consolar-nos ao amargo remédio da tribulação.

Prefiro me curar com uma repreensão misericordiosa, que ser enganado e pervertido com enganosas bajulações. As feridas que faz um amigo valem mais que as carícias e os beijos de um inimigo (Epist. XLVIII ad Vicent.).

A correção:

1.° deve ter por princípio a caridade, e não o ódio, nem a indignação, nem a ira. Não aja como um inimigo aquele que corrige, senão como um médico que luta contra uma enfermidade teimosa e trata de curar o enfermo. Que os avisos e as repreensões estejam isentos de aspereza e de injúrias, diz Santo Agostinho: Monitio acerbitate, objurgatio, contumélia cereat (De amicit.). É preciso corrigir com humildade e compaixão, diz Santo Ambrósio: Corripere humiliter, compatienter (De Correct.);

2.° a correção deve estar mesclada de doçura; aquele que a oferece deve conservar cuidadosamente um rosto sereno e valer-se de palavras benévolas; e

3.° a correção deve, por fim, dar-se em tempo oportuno, quando é preciso, e como é preciso; deve ainda ser proporcional à falta.

Advertir e deixar-se advertir, diz Santo Isidoro de Pelusa, é próprio da verdadeira amizade: Monere et moneriproprium est verae amicitiae (Lib. Sentent.).

Aquele que corrige, deve ter em conta que desempenha o ofício de um Anjo, e que, por conseguinte, há de cumprir com este ministério de um modo angélico: sem ira, nem paixão, com sinceridade, calma, modéstia e bondade, manifestando entranhas de caridade e compaixão.

Não sejais negligentes, diz Santo Agostinho, para corrigir a vossos filhos, vossos criados e todos aqueles de quem estais encarregados: adverti-os, instrui-os, exortai-lhes, ameaçai-os; porém, sobretudo, repreendei-os fortemente, diz São Paulo, e obrigai-os a emendar-se. Mas, ao cumprir esse sagrado dever, guardai-vos de envaidecer-vos[2].

Como se dão habitualmente as correções

Quereis saber qual espírito vos dirige quando empregais a correção? Vede como agis: vede se o fazeis com doçura ou com dureza; se com bondade ou com demasiada severidade; se com benevolência ou com ódio; se com modéstia ou com impulso. Se encontrais em vós as primeiras disposições, a doçura, a bondade, a benevolência e a modéstia, sabei que o Espírito de Deus é Quem vos dirige em vossas correções. Se não tendes mais que as segundas, a saber: a dureza, a rigidez, a ira, o ódio e o orgulho, sabei que obedeceis, então, ao espírito do Demônio.

Não sois do número daqueles de quem Deus queixa-se dizendo: Haveis descuidado minhas repreensões: Increpationes neglexistis (Pr 1, 25). Na boca do insensato está a vara ou o castigo de sua soberba, dizem os Provérbios: In ore stulti virga superbia (Pr 16, 3).

O orgulho leva a injuriar e a afrontar, castigando. Os orgulhosos, diz São Gregório, tem o costume de corrigir com altaneria e impetuosidade, e jamais com bondade: sabem ferir rigorosamente; porém, não sabem compadecer-se (Pastor.)

Os orgulhosos, diz Orígenes, tem mais habilidades para ferir a seus subordinados, que para fazer-lhes melhores. Salomão o atesta: In ore stulti virga superbiae; porque, repreendendo, operam com paixão e malícia (Homil.).

A correção imperiosa, diz Hugo de São Vitor, vem do insensato. A correção mesclada de doçura e mansidão é obra de sábio. Eis aqui porque a Arca encerrava o maná e a vara (Instit. Monast. ad Novit.).

As correções devem ter por finalidade extirpar o vício e dar nascimento à virtude: não devem, pois, ser injuriosas, nem devem se dar com ira, nem acompanhar-se de censuras agudas e insolentes.

Porém, a maior parte das correções vão manchadas com esses graves defeitos. Se vós corrigis, é para que o corrigido torne-se melhor. Por qual razão, então, repreendendo, sois piores? É por meio do escândalo que pensais apartar o próximo de seus defeitos? Ah! quantos existem que querem corrigir e, contudo, necessitam mais correção que aqueles a quem querem repreender.

Tem o sagrado dever de ser modelos de todas as virtudes todos aqueles que, por seu estado, veem-se necessitados de exercer a correção. Nas correções agirmos frequentemente sem discernimento, castigamos com severidade uma falta leve, e com brandura a outra grave. Quanto devemos levantar a voz, calamo-nos; e gritamos quando é necessário calar-nos.

Por conseguinte, se a correção escandaliza em vez de edificar… (é melhor mudar). Até se veem pais que acompanham suas repreensões e correções com blasfêmias, imprecações, maldições e, algumas vezes, com golpes perigosos. É assim, pais culpáveis e indignos desse nome, é assim que deveis prevenir, repreender e castigar a vossos filhos? Queixai-vos quando vos faltam ao respeito, desobedecem-vos e desprezam-vos; porém, como quereis que semelhantes correções possam fazer-lhes emendar e fazê-los ser prudentes? São mais próprias, ao contrário, para fazer piores os vossos filhos.

Devemos aproveitar as correções

Convertei-vos, diz o Senhor no livro dos Provérbios: Convertei-os à força de minhas repreensões; olhai que vos comunicarei meu espírito e vos ensinarei minha doutrina: Convertemini ad correptionem meam; em proferam vobis spiritum meum, et ostendam vobis verba mea (Pr 1, 23). Aquele que escuta as repreensões saudáveis, conversará entre os sábios, diz o Senhor: Auris quae audit increpationes vitae, in médio sapientium commorabitur (Pr 15, 31).

Aceitai todos os dias a correção, diz São João Clímaco; é uma água que dá vida: Omni die objurgationes, quase aquam vitae, bibe (Gradu IV).

Aquele que se submete às correções, assenhora-se de seu coração, diz a Escritura: Qui adquiescit in increpationibus, possessor est cordis (Pr 15, 32). Tem império sobre seu coração, e até sobre o coração daquele que lhe repreende e corrige: é dono de seu coração, governa-o, e não lhe permite se entregar aos vícios; senão que o resguarda e o acostuma a praticar a virtude. É dono de seu coração por humildade, por doçura, por paciência e obediência; está convencido de que a correção é uma obra de misericórdia, uma esmola feita à alma, um remédio eficaz, um sinal de caridade e de terna afeição. Aquele que escuta a correção e aproveita-se dela, não somente é dono de seu coração e governa-o (o que pode chamar-se o primeiro dos impérios), senão que possui também o coração dos outros e faz-se amado por eles.

Os céus não tem inteligência e, entretanto, deixam-se governar e dirigir por uma mão inteligente; é sua felicidade e a do universo. O mesmo deve suceder com os jovens, os subordinados e todos aqueles que não têm experiência: se possuem sentido e consciência, deixam-se governar, instruir e dirigir por um homem prudente, por alguém que lhes seja superior. Então, aprendem dele a ciência de ser equilibrado, que não haviam adquirido por si mesmos, e fazem todas as suas ações com regra, peso e medida.

Aquele que escuta os avisos, as repreensões e as correções, não somente é dono de seu coração e do coração dos demais, senão que também possui também o Coração de Deus.

É querer nosso próprio bem o querer que nos advirtam, reprimam-nos e corrijam-nos. É querer nosso próprio bem o querer bem ao homem que, por dever de caridade, dá-nos estas advertências, e conforma-nos com elas; porque, assim, aprendemos a detestar os vícios, a combatê-los e evitá-los, a amar as virtudes, a esforçar-nos em adquiri-las e praticá-las, a conhecer, amar, servir e adorar a Deus; asseguramo-nos, assim, a graça para a terra, e o Céu para a eternidade.

Como temos de receber as correções

Sabei: aquele que vos repreende e corrige de vossas faltas, de vossos erros e de vossos vícios, é um Anjo enviado pelo Céu, um ministro santo que vos traz a vontade de Deus e desprende vossa alma da terra. Sabei que aquilo que ele faz vós o deveis receber com respeito, reconhecimento e amor […]. [Aqueles que rejeitam a correção ou não a acolhem humildemente][3] perdem a piedade e a modéstia, afastam-se da Confissão, evitam as boas companhias, e vão-se a uma terra estranha, onde, rodeados de falsos amigos, dissipam todos os dons de Deus, pisoteiam sua graça, perdem o temor, a honra, a inocência e a virtude; põe-se a serviço do demônio e ao serviço da vaidade, da libertinagem e da dissipação. Já estão guardando o imundo rebanho das mais vis paixões, privados de todos os bens, e afundados no abismo de todos os males. Ah! Como pintou bem São Paulo esta vida! Dizendo-se sábios, exclama, tornaram-se néscios: Dicentes se esse sapientes, stulti facti sunt. E esta estupidez é tanto mais digna de compaixão e mais terrível, quanto mais criminosa, posto que é voluntária.

Aquele que não faz caso da correção anda desencaminhado, dizem os Provérbios: Qui autem increpationes relinquit, errat (Pr 10, 17).

As correções são o caminho do Céu; aquele que foge delas afasta-se do Céu. Deixa o caminho da vida, e toma o do Inferno. Aquele que aborrece as repreensões é um insensato, acrescentam os Provérbios: Qui odit increpationes, insipiens est (Pr 12, 1).

É um insensato, porque:

1.° dá provas de orgulho;

2.° dá provas de obstinação, persistindo em seus vícios e em seus extravios;

3.° manifesta que não quer ser instruído, nem corrigir-se; por isso, torna-se incorrigível;

4.° manifesta um mau caráter; e

5.° dá a conhecer que está profundamente submerso no mal.

As correções, diz São João Crisóstomo, são para os pecadores o que é um bálsamo excelente para o ferido. O enfermo que rejeita o médico é um insensato; tão insensato é aquele que não recebe com reconhecimento a correção[4].

Quem quer que sejais vós, que não quereis ser repreendidos, diz Santo Agostinho, com isto mesmo de não quererdes ser repreendidos, tendes a maior necessidade de sê-lo; porque não quereis que se vos manifestem vossos vícios; não quereis que vo-los apaguem e vo-los desenraízem; não quereis que se vos apresente a vossos olhos tal como sois, para que não aconteça que, vendo vossa feiura, desejásseis fazê-la desparecer e suplicásseis àquele que se esforça por removê-la de vós que não vos deixes, por mais tempo, com vossa deformidade[5].

Tenha-se presente que sofreu uma grande perda aquele que não pôde aguentar uma correção, diz São João Clímaco (Gradu IV).

Miséria e ignomínia experimentará aquele que afugenta a correção, dizem os Provérbios (Pr 13, 18). Aquele que rejeita a correção perecerá: Qui increpationes odit, morietur (Pr 15, 10). Quem repele a instrução, menospreza sua própria alma: Qui abjicit disciplinam, despicit anima suam (Pr 15, 32).

Aquele que é repreendido e endurece-se no mal, surpreender-lhe-á, de repente, a sua total ruína, e não terá remédio: Viro qui corrupientem dura cérvice contemnir, repentinus ei superveniet interitus, et eum asnitus non sequetur (Pr29, 1). O desprezo pela correção é indício manifesto do homem pecador, diz o Eclesiástico: Qui odit correptionem, vestigium estpeccatoris (Eclo 21, 7).

Aquele que não se quer corrigir e detesta repreensões prova que o veneno da sedução da serpente circula em suas veias e este veneno endureceu-lhe o coração para que não ceda e não obedeça à verdade.

O pecador, diz a Escritura, foge da repreensão e acha sempre um exemplo em que apoiar seus caprichos: Peccator homo vitabit correctionem, et secundum coluntatem suam inveniet comparationem (Ecl 32, 21).

Aquele que detesta a repreensão, encontra pretextos: cita o exemplo dos demais, faz comparações, alega vãos motivos para defender-se, justificar-se e fazer que se desculpe sua conduta, seus costumes e suas ações, pondo-as em comparação com a conduta e as ações dos outros. Pretende valer mais que eles. Pretende ter mais direito de imitá-los. Pretende que os vícios dos outros o desculpem. Como se devêssemos imitar aos que agem mal! Em tudo encontra escusas para aplicá-las aos seus pecados, diz o Salmista: Ad excusandas excusationes in peccatis (Sl 140, 4). Quer apresentar suas faltas com a capa da inocência e fazer delas virtudes, a fim de perseverar nos maus hábitos e viver segundo seus corrompidos desejos.


Referências:

[1] Quem poupa a vara… ” é outra significativa tradução (Nota do tradutor) .

[2]   Ne negligentes sitis in corrigendis vestris, ad curam, scilicet, vestram quoquo modo pertinentibus, monendo, docendo, hortando, terrendo: magis autem et redarguite. Reprehendite corripite, coercete. Deinde in ipsa correctione vel coercitione cavendum est ne se extollat qui alterum corripit (De Amicit.).

[3] A esta altura, o texto original em espanhol encontra-se Após um acréscimo livre (em itálico) que dê certo sentido ao texto, segue-se o que foi conservado (Nota do tradutor).

[4] In peccatis id efficunt reprehensiones, quod in vulneribus remedia. Idcirco, sicut insipiens est qui pharmaca rejicit, ita et stultus est qui non grato animo suscipit reprehensiones (De Reprehens. Ferrend.)

[5] Quicumque corripi non vis, ex eo sane corripiendus es, quia non vis. Non vis enim tua tibi vitia, demonstrari, non vis ut feriantur: non vis tibi tu ipse ostendi, ut cum deformem te vides, reformatorem desideres, eique súplices ne in illa remaneas faeditate (Respect., c. V).