De Fide et Operibus de Santo Agostinho
Tradução de E. L. de Teodoro Souza Campos
Refutação de três erros aos quais o autor opõe as três proposições seguintes:
1) Deve-se admitir indistintamente todo tipo de pessoa no batismo; a tolerância para com os pecadores deve se conciliar na Igreja com a manutenção da disciplina eclesiástica.
2) É preciso iniciar os catecúmenos nos mistérios da fé, junto com os deveres da vida cristã.
3) Quem recebeu o batismo é incapaz de chegar à salvação eterna somente pela fé, se não corrigir seus hábitos criminosos.
Índice
Introdução
Capítulo 1. Deve-se admitir todos os pecadores públicos no batismo?
Capítulo 2. O escândalo dos adúlteros e dos pecadores públicos
Capítulo 3. A salvação dos batizados pela fé católica e a tolerância dos maus na Igreja. Testemunhos das Escrituras: Moisés e São Paulo
Capítulo 4. O exemplo de Cristo
Capítulo 5. Erros dogmáticos
Capítulo 6. Os erros pastorais
Capítulo 7. Não se deve abandonar a Igreja por causa dos maus e nem descuidar da disciplina contra os mesmos maus
Capítulo 8. Quando se deve admitir o batismo ao adúltero e ao pecador incorrigíveis
Capítulo 9. A necessidade de uma instrução prévia ao batismo
Capítulo 10. A virgem que se casou, ignorando, com um homem casado deve ser considerada adúltera
Capítulo 11. A interpretação falsa das Escrituras
Capítulo 12. São Pedro prega a fé junto com a penitência, aos que vão se batizar
Capítulo 13. A penitência que São Pedro prega não é só para a conversão da infidelidade, mas também para mudar a vida passada
Capítulo 14. O eunuco batizado imediatamente após a profissão de fé não é um bom exemplo
Capítulo 15. São Paulo confessa não saber nada além de Jesus Cristo
Capítulo 16. Falsa aplicação do duplo mandamento do amor
Capítulo 17. Os israelitas primeiro atravessaram o mar, para depois receberem a lei
Capítulo 18. A inconsequência da opinião contrária
Capítulo 19. São João Batista fornecia, aos que iam se batizar, preceitos morais
Capítulo 20. A catequese do Senhor. Cristo mandou observar os preceitos para alcançar a vida eterna
Capítulo 21. A fé sem obras não basta para salvar-se
Capítulo 22. A catequese de São Pedro
Capítulo 23. A catequese de São Tiago
Capítulo 24. A refutação dos que afirmam que a fé sem obras é proveitosa para a salvação
Capítulo 25. A aplicação falsa
Capítulo 26. O sentido verdadeiro
Capítulo 27. Outra passagem do Apóstolo traído por aqueles que ensinam que a fé salva sem obra
Capítulo 28. O privilégio paulino
Capítulo 29. Conclusão
Capítulo 30. A fé da cananeia
Capítulo 31. O mau argumento tirado das parábolas do joio e dos convidados
Capítulo 32. Semelhança inútil com o servo que não queria perdoar
Capítulo 33. A proibição do batismo aos empedernidos não é uma novidade
Capítulo 34. Três pecados mortais admitidos por todos
Capítulo 35. O desleixo e a tolerância negligente
Capítulo 36. A ordem da cura dos catecúmenos
Capítulo 37. A catequese dos apóstolos não favorece quem quer admitir os adúlteros ao batismo
Capítulo 38. Não tem fundamento algum afirmar que os judeus foram aniquilados unicamente por sua infidelidade
Capítulo 39. Que o reino dos céus sofre violência não foi dito pela fé, mas pela caridade
Capítulo 40. O verdadeiro conhecimento de Deus, que leva à vida eterna
Capítulo 41. Deve-se perdoar os arrependidos e esperar pelos que se afastam do pecado
Capítulo 42. A condenação eterna nas Escrituras
Capítulo 43. O juízo, nas Escrituras, equivale à condenação eterna
Capítulo 44. Deve-se entender que só os crentes maus irão à ressurreição do juízo, para que o juízo não seja a condenação eterna
Capítulo 45. Não seja a liberdade o véu da malícia
Capítulo 46. O santo mandamento. Que pena aguarda os que, conhecendo-o, o quebram?
Capítulo 47. Não se deve prometer um castigo transitório aos batizados que vivem pecaminosamente
Capítulo 48. O batismo não leva ao reino dos céus se a vida não for correspondente
Capítulo 49. Crítica infundada contra os responsáveis
Introdução1
Recebi da parte de alguns irmãos — leigos, é verdade, mas aplicados ao estudo das divinas escrituras — alguns escritos que separavam a fé cristã das boas obras, a ponto de sustentar que não se podia chegar à vida eterna sem a primeira e que se podia sem as segundas.
Eu respondi a eles em um livro cujo título é A fé e as obras. Nele eu mostro não apenas como devem viver aqueles que foram regenerados pela graça de Jesus Cristo, mas também como se deve ser para ser admitido ao batismo da regeneração.
1. Das Revisões. Livro II, cap. XXXVIII.
Capítulo 1.
Deve-se admitir todos os pecadores públicos no batismo?
Segundo a opinião de algumas pessoas, deve-se admitir indiferentemente no banho sagrado que nos regenera em Jesus Cristo, todas as pessoas, mesmo aquelas que não consentiriam em reformar sua vida manchada de crimes e das infâmias mais notórias e que afirmariam a resolução de perseverar em suas desordens.
Por exemplo, uma pessoa que viva em adultério. Na opinião daquelas pessoas deve-se conferir o batismo a este adúltero sem solicitar que ele rompa esse relacionamento criminoso. Mesmo que ele persevere nessa situação, que se compraza com isso e até mesmo se vanglorie publicamente de continuar nessa situação, deve-se admiti-lo no batismo e deixar que se torne um membro de Jesus Cristo o homem que quer permanecer se relacionando com uma prostituta (1Cor 6,15). Espera-se que, ao ser batizado, ele entenda a enormidade de seu pecado e os meios de corrigir seus costumes.
De acordo com esta opinião, ensinar alguém a viver como cristão antes que ele seja batizado é inverter e confundir a ordem das coisas.
Primeiro é preciso conferir o sacramento e depois inculcar as regras da moral cristã.
Se elas forem observadas fielmente, agir-se-á segundo seu interesse. Se não for assim, guardando a fé cristã — sem a qual se é condenado à morte eterna — mas se perseverando em todo tipo de infâmia, salva-se como que passando pelo fogo. Salva-se como aquele que ergueu sobre a verdadeira fundação — ou seja, sobre a doutrina de Jesus Cristo — um edifício, não de ouro, de prata ou de pedras preciosas, mas de madeira, feno e palha (1Cor 2, 11-16). Em outros termos, obras não de justiça e de pureza, mas de injustiça e de despudor.
Capítulo 2.
O escândalo dos adúlteros e dos pecadores públicos
Essas pessoas parecem ter levantado essa controvérsia por que veem com pesar a recusa do batismo aos homens e mulheres que, após terem se divorciado, contraíram novo matrimônio. Uma união assim, com efeito, não é um matrimônio, mas um adultério, como declara formalmente Nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 19,9).
Não podendo assim negar o adultério, tão abertamente reconhecido pela própria Verdade nesses tipos de uniões e querendo, no entanto, admitir ao batismo, pelo peso de seus sufrágios, os pecadores que eles veem tão cegamente presos nas correntes da podridão e que, se lhes fosse recusado o batismo, prefeririam viver e até mesmo morrer sem sacramento algum, do que se livrarem dos laços do adultério, essas pessoas foram levadas por uma compaixão toda humana a se dedicarem à causa desses infelizes e com um zelo tal que pensaram que deveriam admiti-los no batismo e, com esses pecadores, os celerados e os libertinos, sem lhes dar nenhuma advertência, sem corrigi-los com nenhuma reprimenda, sem transformá-los pela penitência. Eles acreditaram que essas pessoas encontrariam a morte eterna sem o batismo, enquanto que, pela graça do batismo, eles se salvariam pelo fogo, apesar de sua obstinação em viver em seus desregramentos.
Capítulo 3.
A salvação dos batizados pela fé católica e a tolerância dos maus na Igreja. Testemunhos das Escrituras: Moisés e São Paulo
Eu respondo a essas pessoas e lhes declaro primeiramente que não se deve interpretar as passagens onde as Escrituras assinalam no presente ou predizem para o futuro uma mistura dos bons e dos maus na Igreja, no sentido de relaxar ou até mesmo destruir a disciplina em seu rigor e em sua pureza. Assim não estaríamos mais sendo esclarecidos pelas santas Escrituras, mas enganados pelo seu sentido próprio. Moisés, o servidor de Deus, sem dúvida tolerou com uma paciência infinita essa mistura no povo primitivo, mas nem por isso ele deixou de condenar com a espada um grande número de culpados. O sacerdote Finéias surpreendeu adúlteros e os perfurou imediatamente com o ferro vingador (Nm 25, 5-8).
A degradação e a excomunhão são os símbolos desses castigos na disciplina atual da Igreja, que fez retornar à bainha a espada visível.
O santo Apóstolo se contentou em se lamentar no meio dos falsos irmãos (1Cor 5, 1-5). Ele permitiu a alguns pregadores que anunciassem Jesus Cristo (Fl 1,16-18), apesar da inveja diabólica, cujo espinho os molestava, mas não admitiu nenhuma tolerância para com o cristão que se casou com a mulher de seu pai e ordenou que a Igreja se reunisse e o entregasse a Satã, para a morte de sua carne e com o objetivo de que sua alma fosse salva no dia do Juízo Final de Nosso Senhor Jesus Cristo, que também entregou vários a Satã, para que eles aprendessem a não blasfemar (1Tm 1, 20).
Não fosse assim, as palavras seguintes não teriam nenhum sentido: Na minha carta vos escrevi que não tivésseis familiaridade com os impudicos. Porém, não me referia de um modo absoluto a todos os impudicos deste mundo, os avarentos, os ladrões ou os idólatras, pois neste caso deveríeis sair deste mundo. Mas eu simplesmente quis dizer-vos que não tenhais comunicação com aquele que, chamando-se irmão, é impuro, avarento, idólatra, difamador, beberrão, ladrão. Com tais indivíduos nem sequer deveis comer. Pois que tenho eu de julgar os que estão fora? Não são os de dentro que deveis julgar? Os de fora é Deus que os julgará… Tirai o perverso do vosso meio (1Cor 5,9-13) .
Com as palavras do vosso meio, alguns entendem a obrigação que todos temos de arrancar de nós mesmos o pecado ou, em outros termos, de nos tornarmos bons. Mas, seja entendendo que é preciso entregar os maus à severidade da Igreja e lhes infligir a pena da excomunhão, seja vendo nesta passagem o dever para todo fiel de extirpar o pecado de seu coração através da penitência e a mudança de vida, não há dúvida nas palavras em que o Apóstolo prescreve que não se tenha nenhum relacionamento com os irmãos manchados pelos vícios que ele enumera, ou seja, com as pessoas notoriamente caídas e perdidas.
Quanto ao espírito de caridade que deve temperar essa severidade misericordiosa, ele não é mostrado somente na passagem em que o Apóstolo diz: A fim de que a sua alma seja salva no dia do Senhor Jesus (1Cor 5,5), mas ele aparece manifestamente também nesta passagem: Se alguém não obedecer ao que ordenamos por esta carta, notai-o e, para que ele se envergonhe, deixai de ter familiaridade com ele. Porém, não deveis considerá-lo como inimigo, mas repreendê-lo como irmão (2Ts 3, 14 e 15).
Capítulo 4.
O exemplo de Cristo
O próprio Senhor nos oferece um modelo incomparável de paciência. Ele sofreu até à paixão com um diabo no meio dos doze Apóstolos.
Ele disse:
“Arrancando o joio, arriscais a tirar também o trigo. Deixai-os crescer juntos até a colheita. No tempo da colheita, direi aos ceifadores: arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para o queimar. Recolhei depois o trigo no meu celeiro” (Mt 13,29-30).
Na parábola da rede — símbolo da Igreja, que se estende até à margem, ou seja, até o fim do mundo — Ele diz que ela envolve ao mesmo tempo os bons e os maus peixes.
Por fim, em muitas outras passagens, ele falou expressamente ou em parábolas, da mistura dos bons com os maus.
No entanto, alguma vez ele ordenou que não se mantivesse a disciplina na Igreja? Longe disso. Ele nos adverte para seguir as regras, quando diz: Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão. Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas. Se recusa ouvi-los, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano (Mt 18,16-18).
Ele ainda acrescenta esta passagem, em que dá à severidade esta sanção temível:
“Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu” (Mt 18,19).
Ele também nos proíbe de dar coisas santas aos cães (Mt 7,6).
Quando o Apóstolo diz: “Aos que faltam às suas obrigações, repreende-os diante de todos, para que também os demais se atemorizem” (1Tm 5,20), ele não contradiz as palavras do Senhor: “repreende-o entre ti e ele somente”. Isto é, com efeito, um duplo preceito que é preciso aplicar com vistas às diferentes doenças dos pecadores que queremos curar e salvá-lo e não perdê-lo; o remédio varia segundo as pessoas. A regra é, portanto, diferente; às vezes é preciso tolerar os maus com indulgência, às vezes repreendê-los e corrigi-los, às vezes afastá-los e cortar comunicação com os fieis.
Capítulo 5.
Erros dogmáticos
Cair no erro é não manter um justo meio termo; é quando só se vê um lado da verdade e se deixa ir até um ponto em que não se pensa mais nos outros testemunhos da autoridade religiosa, que são capazes de interromper essa precipitação e reconduzir até o centro da verdade, que está na concordância de todos os testemunhos entre eles.
Isto é uma fonte de erros não apenas na questão que estamos tratando neste momento, mas também num grande número de outras questões. Por exemplo, alguns, considerando que os testemunhos das Escrituras dão a entender que se deve adorar um Deus único, confundiram o Pai e o Espírito Santo com o Filho. Outros, atingidos, por assim dizer, por uma doença totalmente contrária, só prestam atenção às passagens que revelam a Trindade e, não podendo compreender que a unidade de Deus se concilia com a distinção das pessoas, acreditam estar fundamentados em reconhecer várias substâncias em Deus.
Alguns, admirando nas Escrituras o elogio à santa virgindade, condenaram o matrimônio e outros, pelo contrário, seguindo os testemunhos que louvam o santo matrimônio, equipararam a virgindade com as núpcias.
Outro erro: alguns, diante da passagem Bom é não comer carne, nem beber vinho, nem outra coisa que para teu irmão possa ser uma ocasião de queda (Rm 14,21) e outras semelhantes, declararam impuros, na criação divina, todos os alimentos que lhes agradava.
Outros ainda, lendo: Tudo o que Deus criou é bom e nada há de reprovável, quando se usa com ação de graças (1Tm 4,4), adotaram um sistema de sensualidade e de excessos que os tornaram incapazes de evitar uma falta sem cair em outra igual ou até mesmo mais grave.
Capítulo 6.
Os erros pastorais
Daí, a origem do debate que nos ocupa. Alguns, só considerando os preceitos rigorosos que nos mandam reprimir os perturbadores, não dar aos cães as coisas santas, ter como pagão o crítico da Igreja, afastar do corpo dos fiéis o membro que escandaliza e que perturba a paz da Igreja; essas pessoas vão tão longe que se esforçam para arrancar o joio antes da colheita, cegos pelo seu pré-julgamento e sem sentir que elas próprias se separam da unidade de Jesus Cristo.
Foi o que sustentamos contra os donatistas. E não contra aqueles que sabem que Ceciliano foi exposto a acusações tão falsas quanto caluniosas e que só um sentimento fatal de respeito humano impede de renunciar à sua opinião perniciosa. Mas contra aqueles aos quais dirijo estas palavras: mesmo que aqueles que deram pretexto ao seu cisma, tivessem sido maus, vocês deviam permanecer fiéis à Igreja, suportando os pecadores que vocês não tinham o poder de corrigir ou de excomungar.
Outros caíram em um erro totalmente oposto e só se sensibilizam pelas passagens onde a mistura dos bons com os maus na Igreja é assinalada e prevista. Eles só aprenderam os preceitos que nos recomendam a paciência, sem pensar que esses preceitos são destinados a nos dar a fé e a guardar a fé e a caridade, apesar do joio que vemos na Igreja e de nos impedir de deixá-la, sob o pretexto de que só observamos nela o joio. Assim afastados, eles pensam que se deva abolir a disciplina da Igreja. Eles querem inspirar àqueles que a governam uma falsa segurança e reduzem sua função a pregar o que é preciso fazer ou o que é preciso evitar, deixando tranquilamente cada um seguir seus instintos.
Capítulo 7.
Não se deve abandonar a Igreja por causa dos maus e nem descuidar da disciplina contra os mesmos maus
Acreditamos que a verdadeira doutrina consiste em basear nossa conduta e nossos pensamentos nos testemunhos das Escrituras, temperando uns pelos outros. É preciso tolerar os cães na Igreja, para assegurar a paz da própria Igreja e recusar as coisas santas aos cães, quando o repouso da Igreja não for perturbado.
Acontece de — pela negligência dos superiores, pela força natural das coisas ou de surpresa — se encontrar na Igreja pecadores aos quais não podemos aplicar as censuras ou as penas da lei eclesiástica? Evitemos abrir nosso coração ao pensamento ímpio, na medida em que é perigoso nos separar deles para evitar o contágio de seus pecados e querer arrastar atrás de nós discípulos, como se eles fossem modelos de inocência e de santidade e de prendê-los à unidade, sob o pretexto de livrá-los da influência dos vícios.
Lembremo-nos das parábolas das Escrituras. Os divinos oráculos têm pelo menos os exemplos infalíveis que nos mostram e nos predizem que os maus estarão misturados com os bons na Igreja até o fim do mundo e até o julgamento final, sem que sua participação nos sacramentos jamais prejudique os justos, que não se envolverão com seus pecados.
Os líderes da Igreja têm, pelo contrário, o poder de exercer sua autoridade contra os ímpios e os criminosos, sem perturbar a paz. Então, se não queremos cair na apatia e na indolência, devemos nos prender aos preceitos relativos à severidade. Desta forma guiamos nossos passos na Via do Senhor, seguindo o caminho que nos traçam as diferentes passagens das Escrituras, sem esconder nossa tibieza sob o véu da tolerância e nem disfarçar nosso rigor sob as aparências de zelo.
Capítulo 8.
Quando se deve admitir o batismo ao adúltero e ao pecador incorrigíveis
Examinemos então, observando a justa moderação que manda a santa doutrina, a questão de saber se devemos admitir ao batismo, sem tomar nenhuma precaução para não dar a cães as coisas santas e se devemos afastar a tolerância até o ponto de julgar dignos de receber um sacramento tão augusto aqueles que vivem abertamente no adultério e até afirmam a resolução de nele permanecer.
É fora de dúvida que eles não seriam admitidos se, nos dias que eles devem receber essa graça e que, se inscrevendo, eles se purificam na abstinência, no jejum e nos exorcismos, são vistos partilhando a cama, mesmo com uma esposa legítima e que se recusam a observar, nesse instante solene, a continência à qual eles não são submetidos no resto do tempo.
Em que situação então se poderia admitir nesse sacramento o adúltero que se recusa se corrigir, quando se recusa ao casado que não consente com um celibato temporário?
Capítulo 9.
A necessidade de uma instrução prévia ao batismo
Que se batize primeiro — dizem — e que se ensine depois as regras da moral.
Sem dúvida que, quando uma pessoa cai subitamente em perigo de morte, faz-se a ela um ato de fé, com certas fórmulas que reúnem todos os dogmas de forma abreviada e se confere a ela o batismo, para que, se ela vier a morrer, não esteja sob o golpe da acusação que arrastariam suas faltas passadas.
Mas, se esse sacramento for pedido com plena saúde e com tempo para a instrução, tem-se, para ensinar a se tornar e permanecer cristão, um momento mais favorável do que aquele em que se solicita com a atenção e a expectativa provocada pela própria religião, o sacramento destinado a fortificar a fé?
Teríamos perdido a memória a ponto de não nos lembrarmos da atenção e da emoção que excitava em nós o ensino dos catequistas, quando pedimos o batismo e recebemos a designação de postulantes?
Não vemos também, todo ano, o ânimo daqueles que vem se regenerar na água santa, se submetendo às instruções, aos exorcismos, aos exames de consciência? Que recolhimento, que zelo fervoroso, que ansiedade mesclada com esperança! Se esse não é o momento de aprender o segredo de colocar sua conduta em harmonia com a grandeza do sacramento que se deseja receber, quando será? Será quando, já recebido o sacramento e obstinado nas faltas as mais graves, mesmo após o batismo, estaremos mais diante de um velho culpado do que de um ser renovado?
Certamente que há uma estranha contradição em começar por dizer: “Vista o homem novo”, para acrescentar em seguida: “Dispa o homem velho”, quando o Apóstolo, seguindo a ordem natural das coisas, diz: Vós vos despistes do homem velho com os seus vícios e vos revestistes do novo (Col 3, 9-10) e o próprio Senhor clama: Ninguém põe um remendo de pano novo numa veste velha, porque arrancaria uma parte da veste e o rasgão ficaria pior. Não se coloca tampouco vinho novo em odres velhos; do contrário, os odres se rompem, o vinho se derrama e os odres se perdem. Coloca-se, porém, o vinho novo em odres novos e, assim, tanto um como outro se conservam (Mt 9,16-17).
Para que serve o tempo em que se tem o título e a classificação de catecúmeno, se não é para aprender no que consiste a fé e a conduta de um cristão, para que, tendo se provado, apresente-se para comer na mesa do Senhor e para beber de sua taça?
Que cada um se examine a si mesmo e assim coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que o come e o bebe sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação (1Cor 11,28-29).
Se estas máximas são seguidas durante todo o tempo fixado sabiamente na Igreja, para manter entre os catecúmenos aqueles que querem tomar o nome de Cristo, intensifica-se ainda mais a vigilância e o zelo nesses dias em que se recebe o título de postulante, após a inscrição para ser batizado.
Capítulo 10.
A virgem que se casou, ignorando, com um homem casado deve ser considerada adúltera
Mas — insistem — e se uma mulher se casa, sem saber, com um homem casado?
Pois bem! Se ela continuar ignorando essa bigamia, ela jamais será adúltera. Mas, se ela ficar sabendo da bigamia, ela se torna adúltera no exato instante em que toma ciência dessa relação ilegítima.
É como acontece com o código rural, em que se é considerado um posseiro de boa fé, quando se detém inconscientemente a posse de uma propriedade alheia. Mas, no momento em que se toma ciência de que a propriedade é alheia, passa-se a ser considerado posseiro de má fé e merece-se a qualificação de injusto.
Longe de nós, eu não digo a compaixão toda humana, mas a ilusão que nos faria deplorar a censura das infâmias como um atentado ao matrimônio. Sobretudo quando estamos na cidade de Deus, sobre a montanha santa (Sl 47,2-3); em outros termos, na Igreja onde o casamento não é somente uma união, mas também um sacramento tão augusto que um marido não tem o direito de ceder sua mulher a outro, como fez Catão, na cidade romana, ao dar um exemplo que provocou, não um escândalo, mas os aplausos públicos, no dizer dos historiadores (PLUTARCO. Biografia de Catão de Útica).
Seria inútil continuar esta discussão, pois nossos adversários não ousam sustentar que não há pecado nessa matéria e muito menos negar que há adultério aí, para não se colocar em flagrante contradição com o próprio Senhor e os santos Evangelhos.
Continuando, se devemos admitir esses pecadores ao batismo e à mesa do Salvador, apesar de sua resolução claramente confessada de rejeitar toda censura; o que eu digo? Que é preciso evitar lhes dirigir qualquer reprovação sobre este assunto e adiar sua instrução, para considerá-los de bom grão, se eles se submetem à observação das regras e à correção de suas faltas e de tolerá-los como ao joio, se eles são rebeldes.
Continuando, eu digo, essa opinião nos mostra bem que não se está disposto a defender tais desregramentos ou considerá-los com amenidades ou pecadilhos. E qual é o cristão, movido por uma sincera esperança, que consentiria em não relevar o adultério ou em atenuá-lo?
Capítulo 11.
A interpretação falsa das Escrituras
Acredita-se, no entanto, ter deduzido das santas Escrituras a regra que ensina, seja corrigir seja tolerar essas faltas no próximo, quando se cita o exemplo dos apóstolos. Reproduzem-se algumas passagens de suas cartas onde se observa que eles, com efeito, iniciaram nos mistérios da fé antes de ensinar as regras da moral.
Deseja-se concluir disso que é preciso se limitar a transmitir aos catecúmenos o princípio da fé e só fornecer as instruções capazes de reformar seus costumes após o batismo.
Pois bem! Foram lidas algumas cartas dos apóstolos dirigidas àqueles que se dispunham a receber o batismo, exclusivamente consagradas à questão da fé e outras àqueles que estavam batizados, sem outro objetivo além dos preceitos para evitar os pecados e para corrigir seus costumes? Ora, se é incontestável que suas cartas são dirigidas a cristãos já batizados, por que elas continham ao mesmo tempo uma exposição do dogma e da moral? Dir-se-ia que é preciso dividir esse ensinamento antes do batismo e comunicá-lo em seguida em seu conjunto?
Se essa consequência é absurda, é preciso reconhecer que os apóstolos, em suas cartas, imprimiram essa característica dupla em seu ensinamento. Se, comumente, eles iniciaram à fé antes de expor as regras da moral, é que a fé precede necessariamente no ser humano a vida honesta.
Pois toda boa ação realizada pelo ser humano só merece essa qualificação na medida em que ela está ligada à piedade que tem Deus por objetivo.
Se algumas pessoas levam a simplicidade e a ignorância até a acreditar que os apóstolos dirigiram essas cartas aos catecúmenos, elas são forçadas a reconhecer que é preciso simultaneamente expor àqueles que se preparam para o batismo o dogma e as regras morais que decorrem dele. Caso contrário, sua argumentação teria por consequência rigorosa nos condenar a ler aos catecúmenos o começo das cartas em que os apóstolos expõem o dogma aos fiéis e o fim, onde eles retraçam os deveres da vida cristã. Nada seria mais irracional do que uma pretensão dessas.
Assim, não se pode tirar das cartas dos apóstolos nenhuma prova que apoie a opinião segundo a qual o batismo deveria ser conferido sem outra justificativa além da fé e as instruções morais remetidas para após o batismo, sob o pretexto de que, no início de suas cartas, os apóstolos insistiram no dogma e terminaram, naturalmente, pela exortação aos fiéis a viverem bem. Pois, mesmo que esse duplo ensinamento seja feito, um no início e o outro no final, geralmente é necessário transmiti-lo em seu conjunto aos catecúmenos, como para os fiéis; tanto àqueles que se dispõem ao batismo, como àqueles que já o receberam; tanto para instruí-los, quanto para reavivar sua lembrança; tanto para ensiná-los a confessar a fé, quanto para confirmá-la; assim exige a santa e exata doutrina.
Que se acrescente então, à carta de Pedro, a de João, da qual se citam alguns testemunhos; as cartas de Paulo e a dos outros apóstolos.
Assim se poderá ver seus métodos de expor o dogma e de subordiná-lo à moral. Método que eu já expus muito claramente, se não me engano.
Capítulo 12.
São Pedro prega a fé junto com a penitência, aos que vão se batizar
Mas, nos Atos dos Apóstolos, acrescentam, Pedro, dirigindo-se àqueles que, após terem recebido sua palavra, foram batizados num total de três mil num só dia, só lhes prega a fé em Jesus Cristo.
Quando eles perguntaram:
“Que devemos fazer, irmãos? Pedro lhes respondeu: Façam penitência e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2, 37-38; em latim: Quid faciemus, viri fratres ? Petrus vero ad illos : Pœnitentiam, inquit, agite, et baptizetur unusquisque vestrum in nomine Jesu Christi in remissionem peccatorum vestrorum : et accipietis donum Spiritus Sancti).
Por que então não observar a ordem Façam penitência? Pois a penitência consiste em despir a vida antiga para vestir, no batismo, uma vida nova. Ora, o que se ganhará em fazer penitência das obras de morte, se não se renuncia ao adultério e a todas as volúpias criminosas envolvidas no amor ao mundo?
Capítulo 13.
A penitência que São Pedro prega não é só para a conversão da infidelidade, mas também para mudar a vida passada
São Pedro não quis somente fazê-los renunciar, com a penitência, à incredulidade. É um estranho pré-julgamento — para não usar uma expressão mais severa — querer aplicar somente à incredulidade as palavras Façam penitência. Pois é preciso mudar a vida passada para uma nova vida, de acordo com a doutrina do Evangelho, à qual vem se juntar a passagem do Apóstolo, concebida no mesmo sentido: Quem era ladrão não torne a roubar(Ef 4,28) e um grande número de outros textos, onde se ensina em detalhes a despir o velho ser humano e a vestir o novo.
As próprias expressões de São Pedro bastariam para convencer, se houvesse boa vontade de refletir sobre elas com atenção. Após ter citado as palavras Façam penitência e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois a promessa é para vós, para vossos filhos e para todos os que ouvirem de longe o apelo do Senhor, nosso Deus, o escritor sagrado acrescenta imediatamente Ainda com muitas outras palavras exortava-os, dizendo: Salvai-vos do meio dessa geração perversa!
Eles acolheram estas palavras com ardor, acreditaram nelas e foram batizados. Havia nesse dia cerca de três mil pessoas que se juntaram aos apóstolos (At 2,41).
Como não ver aqui que Pedro fez um longo discurso, abreviado pelo narrador, para tirá-los dessa geração perversa? Pois o princípio ao qual ele se prendia em seus longos discursos para fazer entrar nas mentes, só é indicado por alto.
A ideia essencial é formulada nestes termos: Salvai-vos do meio dessa geração perversa! e, para fazer com que ela fosse adotada, Pedro se dedicou a uma longa exortação. Nela ele condenou as obras de morte, às quais se dedicam os pecadores presos ao presente e fez sentir a perfeição da vida pura, à qual se prendem fielmente aqueles que são separados dessa geração ímpia.
Que se tente agora provar que basta a fé em Jesus Cristo para se salvar desse mundo perverso, mesmo permanecendo mergulhado em todo tipo de torpezas e até mesmo em notório adultério! E, como tal opinião é ímpia, é preciso reconhecer que os catecúmenos são obrigados a aprender não somente o que é preciso acreditar, mas também que é preciso praticar para se salvar dos erros do mundo, pois, para conseguir isso, eles devem aprender a conformar sua conduta com sua crença.
Capítulo 14.
O eunuco batizado imediatamente após a profissão de fé não é um bom exemplo
O eunuco que Felipe batizou, dizem, mal pronunciou estas palavras: Eu creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus e com esta declaração recebeu imediatamente o batismo.
Deve-se concluir daí que basta dar a mesma resposta para ser batizado imediatamente? Deve o catequista permanecer mudo e não exigir nenhuma profissão de fé sobre o Espírito Santo, a santa Igreja, a remissão dos pecados, a ressurreição dos mortos e se limite a dizer que Nosso Senhor Jesus Cristo é o Filho de Deus, sem falar de sua encarnação no seio de uma virgem, de sua paixão, de sua morte na cruz, de sua ascensão ao céu, onde está sentado à direita do Pai?
Se a resposta do eunuco Eu creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus, foi, na opinião de Felipe, uma razão suficiente para admiti-lo imediatamente ao batismo, por que não imitar seu exemplo? Por que não suprimimos também as condições que vemos como indispensáveis para batizar, mesmo em caso de necessidade? Eu quero dizer as questões sobre os mistérios, às quais os catecúmenos devem responder, mesmo não tendo eles o tempo de gravá-las na memória.
Mas, se as Escrituras passaram em silêncio e nos deixaram a tarefa de suprir o necessário a Felipe para preparar o eunuco para o batismo, elas nos mostraram claramente com as palavras Felipe batizou o eunuco (At 8,35-38), que todas as condições foram cumpridas. Condições que, por não serem mencionadas nas Escrituras devido à necessidade de abreviar, nem por isso são menos obrigatórias, como sabemos através da tradição.
Devemos interpretar da mesma maneira a passagem onde é dito que Felipe anunciou ao eunuco o Senhor Jesus. Não há dúvida de que ele lhe revelou todos os princípios do catecismo que têm relação com a conduta e os costumes de todo crente em Jesus Cristo.
O que é anunciar Jesus Cristo? Não é somente dizer que é preciso acreditar, mas que é preciso praticar, quando se quer se tornar um de seus membros. E mais: é ensinar todos os dogmas relativos a Jesus Cristo. Não apenas sua filiação divina, seu nascimento segundo a carne, as dores e as causas de sua paixão, os efeitos de sua ressurreição, a promessa e a concessão do Espírito Santo que ele fez aos fiéis. É também as virtudes que ele quer encontrar nos membros dos quais ele é o líder, para buscá-los, formá-los, amá-los, libertá-los e conduzi-los à glória da vida eterna.
Revelemos essas verdades, seja com precisão e brevidade, seja com abundância e em detalhes. Anunciemos Jesus Cristo. Não omitamos nada, com efeito, do que diz respeito à fé e à conduta dos fiéis.
Capítulo 15.
São Paulo confessa não saber nada além de Jesus Cristo
Racionalmente pode-se fazer o mesmo com a seguinte passagem de São Paulo, citada igualmente nessa controvérsia:
“Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2,2)
No entender de nossos irmãos, este texto só implica em uma coisa: batizar primeiro e ensinar depois as regras da vida cristã. Foi isso que bastou amplamente — eles dizem — a esse Apóstolo que, no entanto, lhes dizia que, mesmo que eles tivessem dez mil mestres em Jesus Cristo, eles não teriam, todavia, vários pais em Jesus Cristo, pois foi somente ele que os gerou em Jesus Cristo, através do Evangelho (1Cor 4, 15).
Eles pretendem que aquele que os gerou em Jesus Cristo, embora dê graças a Deus por não ter batizado nenhum deles, além de Crispo, Gaio e Estéfanas (1Cor 1, 14.16), só lhes ensinou a crucificação de Jesus? Mas, se ele só lhes pregou a crucificação de Jesus, por que ele disse:
“Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressurgiu ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Cor 15, 3-4)
Se eles não entendem assim o texto e pretendem que esses dogmas formam um todo com o dogma do Jesus crucificado, que eles saibam então que o mistério de Jesus crucificado inclui um grande número de ensinamentos; sobretudo este: Nosso velho homem foi crucificado com ele, para que seja reduzido à impotência o corpo (outrora) subjugado ao pecado, e já não sejamos escravos do pecado (Rm 6,6).
Daí vem também que, falando dele mesmo, o Apóstolo diz:
“Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,14)
Que eles reflitam e compreendam como se ensina e se aprende o mistério de Jesus crucificado. Que eles vejam bem que, como membros de seu corpo, somos nós mesmos crucificados para o mundo sobre a cruz. Em outros termos: colocamos um freio nas desordens da concupiscência e, por consequência, que não se pode tolerar o adultério abertamente confessado naqueles que são formados pela cruz do Salvador.
O apóstolo Pedro também desenvolve esse mistério da cruz, ou seja, da Paixão de Jesus Cristo e recomenda, àqueles que foram consagrados por ela, que não pequem.
Ele se expressa assim: Assim, pois, como Cristo padeceu na carne, armai-vos também vós deste mesmo pensamento: quem padeceu na carne rompeu com o pecado, a fim de que, no tempo que lhe resta para o corpo, já não viva segundo as paixões humanas, mas segundo a vontade de Deus (1Pd 4, 1-2).
Em seguida ele mostra que, de acordo com este princípio, por pertencer a Jesus crucificado, ou seja, por ter sofrido em sua carne, é preciso crucificar em seu corpo os desejos da carne e conformar sua conduta aos Evangelhos.
Capítulo 16.
Falsa aplicação do duplo mandamento do amor
Devo acrescentar que eles veem uma prova de sua opinião nos dois preceitos que contém, segundo o Senhor, a Lei e os Profetas? Como é dito: Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito. Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo.
Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os profetas (Mt 22,37.40), eles acreditam que o primeiro, onde se prescreve amar a Deus, se aplica aos catecúmenos, enquanto que o segundo, que parece ter relação com a sociedade humana, aos que já receberam o batismo.
Eles não se lembram de que também está escrito:
“Aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20).
Na mesma carta de São João também lemos:
“Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai” (1Jo 2,15)
Ora, todas as torpezas de uma conduta infame não estão relacionadas com o amor ao mundo? Por consequência, o primeiro mandamento — que segundo eles só diz respeito aos catecúmenos — não pode ser observado independentemente dos bons costumes.
Eu não quero insistir mais nisso, mas, examinando bem, estes dois preceitos estão unidos por um laço bem estreito, pois o amor a Deus não pode ser encontrado em quem não ama seu próximo e nem o amor ao próximo em quem não ama Deus. Seria sair do tema, insistir por mais tempo nesses dois mandamentos.
Capítulo 17.
Os israelitas primeiro atravessaram o mar, para depois receberem a lei
Mas, eles objetam, o povo de Israel primeiro atravessou o Mar Vermelho, que é a figura do batismo e só mais tarde receberam a Lei que estabeleceria seus deveres. Por que então ensinamos o símbolo aos catecúmenos e exigimos que eles o recitem? Pois nada assim foi pedido àqueles que Deus tirou das mãos dos egípcios através das ondas do Mar Vermelho.
Mas, se eles tiveram o bom senso de ver que a preparação para o batismo foi representada pelos mistérios que precederam a passagem pelo Mar Vermelho — o sangue do cordeiro marcado nas portas, os ázimos da verdade e da sinceridade (Ex 12-14) — por que não veem também que a saída do Egito figurou a renúncia ao pecado, a que se comprometem os catecúmenos?
É isto o que Pedro tem em vista na passagem já citada: Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo (At 2,38).
Ele parece dizer: “Deixem o Egito e atravessem o Mar Vermelho”.
Também o Apóstolo, na Epístola aos Hebreus, cita, dentre os princípios elementares que deve seguir um catecúmeno, a penitência pelas obras do corpo. Pois ele diz o seguinte: Pelo que, transpondo os ensinamentos elementares da doutrina de Cristo, procuremos alcançar-lhe a plenitude. Não queremos agora insistir nas noções fundamentais da conversão, da renúncia ao pecado, da fé em Deus, a doutrina dos vários batismos, da imposição das mãos, da ressurreição dos mortos e do julgamento eterno (Hb 6,1-2). Todos esses princípios elementares entram, portanto — de acordo com o testemunho claro e preciso das Escrituras — na iniciação dos catecúmenos.
Ora, o que é fazer penitência pelas obras de morte, se não é morrer para todos os pecados para viver? E não se deverá contar entre as obras de morte o adultério e a fornicação? Não basta se comprometer a renunciar a todas essas desordens; é preciso que todos os pecados passados, que parecem seguir nossos passos, sejam apagados no banho da regeneração. Da mesma forma como teria sido inútil aos israelitas sair do Egito, se a massa de inimigos que os perseguiam não tivesse sido dizimada nas próprias ondas que se abriam diante do povo de Deus e que asseguraram sua liberdade. Declarando que não se quer renunciar ao adultério, pode-se entrar no Mar Vermelho, já que se recusa a deixar o Egito?
Aliás, eles não observam por qual mandamento se abre a lei que foi dada aos hebreus após a passagem do Mar Vermelho: Não farás para ti escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo, sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto (Ex 20, 4-5). E a sequência, onde este mandamento se desenvolve.
Que nossos adversários sigam contra sua própria afirmação e reconheçam que é preciso ensinar ao mesmo tempo a adoração de um único Deus e o desprezo pela idolatria, não aos catecúmenos, mas somente aos cristãos já batizados. Que eles não venham mais sustentar que é preciso se contentar em iniciar na fé a Deus, antes do batismo e reservar para após o batismo as instruções sobre a moral, bem como sobre o segundo mandamento relativo ao amor ao próximo.
A lei que o povo recebeu após a passagem pelo Mar Vermelho, símbolo do batismo, compreende estes dois pontos ao mesmo tempo.
Os preceitos não estão ali divididos em duas partes, sendo uma destinada a ensinar o povo o desprezo pela idolatria, antes da passagem pelo Mar Vermelho e a outra dedicada a lhes ensinar mais tarde a obrigação de honrar seu pai e sua mãe, evitar o adultério, o assassinato, enfim, todos os princípios que estabelecem a honestidade e a segurança nas relações humanas.
Capítulo 18.
A inconsequência da opinião contrária
Vamos supor uma pessoa que peça o batismo, declarando que não renunciará ao culto dos ídolos, a não ser talvez mais tarde, quando ela achar melhor. Em seguida, com esta disposição, ela solicita a concessão imediata do batismo e aspira se tornar o templo do Deus vivo, apesar de sua idolatria e sua resolução em perseverar nesse abominável sacrilégio.
Eu pergunto aos meus adversários se eles consentiriam em receber como catecúmeno uma pessoa assim.
Eles vão dizer — eu não tenho dúvida — que é impossível receber uma pessoa assim. Seu coração não pode inspirar outra coisa. Que eles expliquem então, de acordo com testemunhos das Escrituras capazes de lhes autorizar sua opinião, baseado em que eles ousam combater e recusar o pedido de uma pessoa que protesta contra eles dizendo:
“Eu conheço e adoro o Jesus Crucificado. Eu creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. Não me façam esperar mais. Não me peçam mais nada”.
“O Apóstolo só impôs uma condição àqueles que ele regeneraria pelo Evangelho: reconhecer Jesus crucificado. O eunuco, diante da simples resposta de que ele acreditava que Jesus era o Filho de Deus, recebeu sem mais delongas o batismo das mãos de Felipe. Por que então me interditar o culto aos ídolos, invés de me marcar com o sinal de Jesus Cristo, antes que eu deixe este mundo?
“Quanto ao paganismo, eu o suguei com o leite e me mantive nele pela força do hábito. Eu o abandonarei quando puder, quando for minha hora e, mesmo que eu não o faça, eu poderei pelo menos terminar meus dias marcado com o sinal de Jesus Cristo e Deus não precisará pedir a vocês conta de minha alma”.
Que responder a este discurso? Consentirão em admitir esse pagão? Deus me livre de pensar que eles possam chegar a este extremo! O que eles poderiam responder? Sobretudo se o pagão pede para que não lhe peçam para renunciar à idolatria, da mesma forma como não se ensinou nada ao povo primitivo antes da passagem pelo Mar Vermelho, por que todas essas verdades estavam incluídas na Lei, que foi recebida fora do Egito, após sua libertação.
Sem dúvida que eles vão responder a esse homem:
“Você se tornará o templo de Deus após ter recebido o batismo. Ora, o Apóstolo diz: Como conciliar o templo de Deus e os ídolos?” (2Cor 6,16)
Por que eles não pensam que se pode dizer também:
“Você se tornará membro de Jesus Cristo, após ter recebido o batismo. Ora, os membros de Jesus Cristo não podem ser os de uma prostituta”.
Este também é o argumento do Apóstolo e ele diz, em outro lugar:
“Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus?”
Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus (1Cor 6,9-10).
Por que então recusar o batismo aos idólatras e acreditar que se pode admitir os fornicadores, quando o Apóstolo declara aos adúlteros e aos outros pecadores:
“Ao menos alguns de vós têm sido isso. Mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados, em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus” (1Cor 6,11).
Por qual motivo, quando se pode rejeitar o adúltero e o idólatra, permitir ao primeiro se apresentar ao batismo sem que ele renuncie ao seu relacionamento criminoso e defender o segundo, já que se diz, tanto a um como ao outro:
“Vocês têm sido isso, mas foram purificados”?
O que preocupa nossos adversários é o pensamento de que se salvará infalivelmente, embora passando pelo fogo, se se acreditar em Jesus Cristo e se se foi marcado com seu sinal. Em outros termos, se se foi batizado, levou-se a indiferença a reformar os costumes que levam a viver no pecado. Mas eu logo vou examinar, com a ajuda de Deus, o que é preciso pensar sobre este ponto, de acordo com as Escrituras.
Capítulo 19.
São João Batista fornecia, aos que iam se batizar, preceitos morais
O ponto que eu examino ainda neste momento é saber se é preciso, como pensam nossos adversários, ensinar, àqueles que são batizados, as regras da vida cristã ou se contentar em inculcar a fé nos catecúmenos.
Se fosse assim, João Batista — sem falar das numerosas passagens já citadas — teria essa linguagem para com aqueles que se apresentavam ao seu batismo: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? Dai, pois, frutos de verdadeira penitência? Isto não diz respeito à fé, mas às boas obras.
Da mesma forma, quando os soldados vieram lhe perguntar “E nós, que devemos fazer?”, ele não lhes disse: “Esperem acreditando e se batizem. Mais tarde aprenderão o que fazer”. Não. Ele começa por adverti-los, como um verdadeiro precursor, para preparar o caminho ao Senhor, que desceria em seus corações e lhes diz: Não pratiqueis violência nem defraudeis a ninguém, e contentai-vos com o vosso soldo (Lc 3,14).
Mesma resposta aos publicanos que lhe perguntaram o que deviam fazer: Não exijais mais do que vos foi ordenado (Lc 3,12).
Atendo-se a estes trechos, o Evangelista, cujo objetivo não era citar todos os artigos do catecismo, mostra claramente que o dever do catequista é dar lições e fazer exortações morais àqueles que se dispõem ao batismo.
Eu suponho mesmo que se eles tivessem respondido a João: “Não faremos frutos dignos de penitência. Queremos perseverar em nossas violências, nossas fraudes, nossa usura”. Uma declaração assim não o teria impedido de batizá-los. Nesta hipótese, não se poderia concluir também, no ponto em que a discussão chegou, que a instrução que deve ser ministrada aos catecúmenos para que eles vivam bem, não deve estar subordinada à época do batismo. João Batista, com efeito, instrui os publicanos e os soldados no momento de batizá-los.
Capítulo 20.
A catequese do Senhor. Cristo mandou observar os preceitos para alcançar a vida eterna
Aliás, para não citar outras passagens, qual foi a resposta do Senhor ao rico que lhe perguntou qual era o bem que ele deveria fazer para adquirir a vida eterna? Que a repassem em suas mentes:
“Se queres entrar na vida, observa os mandamentos. Quais mandamentos, ele perguntou. O Senhor o lembrou então os mandamentos da Lei: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás teu próximo como a ti mesmo. O rico, tendo dito que havia observado esses mandamentos desde sua juventude, o Senhor acrescenta o preceito que reúne a perfeição evangélica: o de vender todos os bens e convertê-los em esmolas para os pobres, a fim de ter um tesouro no céu e se unir ao Senhor que lhe falava” (Mt 19,16-21).
Os nossos adversários devem observar bem que esse personagem não foi convidado a acreditar e a se batizar — único meio, segundo eles, de adquirir a vida eterna —, mas foi instruído sobre as regras de conduta que somente a fé ensina a seguir docilmente.
Não quero, de fato, concluir do silêncio que o Senhor guardou sobre a necessidade de inculcar a fé, que se deve se limitar a ensinar regras de moral àqueles que aspiram se salvar. O dogma e a moral estão ligados por um laço indissolúvel, como eu já disse, pois o amor de Deus não pode existir naquele que não ama o próximo e nem o amor ao próximo naquele que não ama Deus.
As Escrituras mencionam tanto um preceito moral quanto um dogma — invés de formular a doutrina em seu conjunto — para mostrar que um não pode existir sem o outro. Com efeito, acreditar em Deus é se obrigar a cumprir os mandamentos de Deus e, para cumprir os mandamentos de Deus, é preciso necessariamente acreditar nele.
Capítulo 21.
A fé sem obras não basta para salvar-se
Chegamos então ao erro que deve ser rejeitado por todas as almas cristãs, se não querem perder a felicidade eterna, adotando a falsa opinião de que basta a fé para conquistá-la e de que não é preciso se preocupar em viver bem e nem caminhar pela senda das boas obras na via do Senhor.
Na própria época dos apóstolos, baseou-se em algumas passagens um pouco obscuras e mal interpretadas de São Paulo, para lhe atribuir este pensamento: “façamos o mal para que venha o bem” (Rm 3,8), por que ele havia dito em outro lugar:
“Sobreveio a lei para que abundasse o pecado. Mas onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20).
Este texto se aplica àqueles que, após terem recebido a Lei com uma confiança orgulhosa em suas forças, não imploraram com uma fé sincera pela graça divina, para triunfar sobre as desordens da concupiscência e se sobrecarregaram com transgressões à Lei, através das iniquidades mais graves e múltiplas. Sob o peso dessa pesada responsabilidade, eles tiveram que recorrer à fé para atrair a misericórdia que perdoa e o socorro do Deus que fez o céu e a terra (Sl 120,2). Eles quiseram assim, sob a inspiração do amor derramado em seus corações pelo Espírito Santo (Rm 5,5), cumprir com amor todos os preceitos que combatem a concupiscência do mundo, segundo a previsão do salmista: Numerosos são os sofrimentos que suportam aqueles que se entregam a estranhos deuses (Sl 15,4).
Quando então o Apóstolo diz acreditar que o homem é justificado pela fé, sem as observâncias da lei (Rm 3,28) e que ninguém se justifica pela prática da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo (Gl 2,16), sua ideia não foi condenar os atos de justiça realizados após se ter recebido e confessado a fé, mas ensinar aos cristãos que se pode ser salvo pela fé, mesmo quando não se praticou antes a Lei. As obras são a consequência da justificação; elas não são seu princípio.
Insistir neste ponto seria inútil nesta obra. Principalmente depois de eu ter dedicado a este tema um tratado bem longo intitulado A Letra e o Espírito.
Vendo nascer esta opinião, os apóstolos Pedro, João, Tiago e Judas se erguem contra ela em suas cartas, com grande energia e empregam todas as suas forças para estabelecer que a fé sem as obras é inútil.
O próprio Paulo entende por fé não uma crença qualquer em Deus, mas a crença sólida e realmente evangélica que, pela caridade, se torna uma fonte de boas obras. A fé opera pela caridade (Gl 5,6), ele diz. Da fé que, segundo alguns, basta para a salvação, ele afirma com tanta força que ela não serve para nada, que ele grita: Mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada (Rm 13,2). Para viver bem, é preciso que a caridade esteja de acordo com a fé, pois A caridade é o pleno cumprimento da lei (Rm 13,10).
Capítulo 22.
A catequese de São Pedro
Esta polêmica se relaciona manifestamente com uma passagem de São Pedro em sua segunda Epístola, em que ele recomenda uma pureza irrepreensível dos costumes e prevê que o mundo está destinado a perecer e que é preciso esperar novos céus e uma nova terra, que se tornarão o lar dos justos, querendo com isso advertir os fiéis para que se tornem dignos desse lar, através da santidade de suas vidas.
Sabendo então que certas mentes falsas se aproveitavam de algumas passagens difíceis das cartas do apóstolo São Paulo, para viverem na indiferença para com a moral, como se estivessem seguros de sua salvação somente em virtude da fé, São Pedro diz que havia nas cartas de seu irmão algumas passagens difíceis de entender e que pessoas ignorantes se desviavam de seu sentido, bem como de outras Escrituras, para sua própria ruína. Pois São Paulo pensava, como todos os apóstolos, que a salvação eterna só podia ser obtida com a condição de viver bem.
Eis o que diz São Pedro:
“Uma vez que todas estas coisas se hão de desagregar, considerai qual deve ser a santidade de vossa vida e de vossa piedade, enquanto esperais e apressais o dia de Deus, esse dia em que se hão de dissolver os céus inflamados e se hão de fundir os elementos abrasados! Nós, porém, segundo sua promessa, esperamos novos céus e uma nova terra, nos quais habitará a justiça. Portanto, caríssimos, esperando estas coisas, esforçai-vos em ser por ele achados sem mácula e irrepreensíveis na paz. Reconhecei que a longa paciência de nosso Senhor vos é salutar, como também vosso caríssimo irmão Paulo vos escreveu, segundo o dom de sabedoria que lhe foi dado. É o que ele faz em todas as suas cartas, nas quais fala nestes assuntos. Nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras. Vós, pois, caríssimos, advertidos de antemão, tomai cuidado para que não caiais da vossa firmeza, levados pelo erro destes homens ímpios. Mas crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele a glória agora e eternamente” (2Pd 3,11-18)
Capítulo 23.
A catequese de São Tiago
Quanto a São Tiago, ele tem tanta aversão por aqueles que acreditam que a fé pode salvar sem as obras, que ele os compara aos demônios. Ele diz:
“Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também os demônios creem e tremem” (Tg 2,19).
É possível dizer algo mais curto, mais justo e mais enérgico? Pois, lemos nos Evangelhos que o demônio prestou a Jesus o mesmo testemunho (Mc 1,23-25) e que ele repreendeu em sua boca o que aprovou na de Pedro (Mt 16,16-17).
Diz São Tiago:
“De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? E ele acrescenta: Acaso esta fé poderá salvá-lo?” (Tg 2,14)
Qual não é, portanto, o erro daqueles que colocam em uma fé morta a esperança da vida eterna!
Capítulo 24.
A refutação dos que afirmam que a fé sem obras é proveitosa para a salvação
É preciso considerar com atenção o sentido que se deve dar a esta passagem do Apóstolo, muito difícil de compreender: Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto: Jesus Cristo. Agora, se alguém edifica sobre este fundamento, com ouro, ou com prata, ou com pedras preciosas, com madeira, ou com feno, ou com palha, a obra de cada um aparecerá. O dia (do julgamento) demonstrá-lo-á. Será descoberto pelo fogo; o fogo provará o que vale o trabalho de cada um. Se a construção resistir, o construtor receberá a recompensa. Se pegar fogo, arcará com os danos. Ele será salvo, porém passando de alguma maneira através do fogo (1Cor 3,11-15).
Na opinião de alguns, aqueles que erguem sobre esse fundamento um edifício de ouro, de prata ou de pedras preciosas, representam os cristãos que acrescentam as boas obras à fé. Enquanto que, aqueles que só erguem um edifício de palha, de feno ou de madeira, designam os pecadores que, mesmo tendo fé, fazem o mal. Eles concluem disso que se pode expiar suas faltas através das penas do purgatório e obter a salvação eterna pela própria virtude do princípio que serviu de fundamento aos atos.
Capítulo 25.
A aplicação falsa
Se esta interpretação está correta, reconhecemos que nossos adversários são guiados por uma caridade sublime, quando se apressam em admitir confusamente ao batismo os libertinos e os concubinados que, desprezando o mandamento de Jesus Cristo, escondem seu relacionamento sob o véu do casamento. O que eu digo? Os prostituídos, teimosamente presos aos seus infames relacionamentos, jamais foram admitidos ao seio da Igreja mais liberal, sem antes terem sido tirados de suas vergonhosas atividades.
Admitido este princípio, eu não vejo com que argumento se poderia rejeitar essas criaturas, pois, quem não ficaria feliz em ver que, após terem empilhado sobre o fundamento sagrado da fé, a madeira, o feno e a palha, elas poderiam se purificar através do suplício mais ou menos prolongado do fogo, invés de serem condenadas à morte eterna?
Mas, ao mesmo tempo, é preciso taxar como erros esses princípios tão claros e tão pouco equivocados:
“Mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada” (1Cor 13,2); “De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo?” (Tg 2,14)
Será preciso também considerar como errada esta passagem:
“Não vos enganeis: Nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus” (1Cor 6,9-10).
E também esta:
“Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus!” (Gl 5,19-21)
Todas estas afirmações se tornam falsas, pois bastará acreditar e ser batizado, para ser salvo pelo fogo, apesar de sua falta de arrependimento. Todos esses crimes não impedirão aquele que tiver recebido o batismo em Jesus Cristo, de ser herdeiro do reino de Deus.
Esta passagem: “Ao menos alguns de vós têm sido isso. Mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados, em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus” (1Cor 6,11), não terá mais nenhuma verdade, pois aqueles que tiverem sido purificados, permanecerão maculados pelos mesmos vícios.
Tudo será vazio nestas palavras de São Pedro:
“Esta água (do dilúvio) prefigurava o batismo de agora, que vos salva também a vós, não pela purificação das impurezas do corpo, mas pela que consiste em pedir a Deus uma consciência boa, pela ressurreição de Jesus Cristo” (1Pd 3,21)
Aqueles que tiverem uma consciência culpada, tão carregada por todos os crimes e todas as infâmias, que a penitência não terá eficácia em apagar suas sujeiras, serão salvos pelo batismo. A fé, que o batismo assegura o fundamento, assegurará sua salvação, desde que eles passem pelo fogo.
Eu não compreendo também por que o Senhor disse: “Se queres entrar na vida, observa os mandamentos” (Mt 19,17) e recordou todos os princípios da moral, se é possível obter a vida, sem observar essas regras, somente em virtude da fé, que, no entanto, é morta sem as obras.
Que verdade poderia haver então nestas palavras, que devem ser dirigidas um dia aos maus colocados à sua esquerda: Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos (Mt 25,41)? Pois, não é reprovada aqui sua incredulidade, mas sua vida vazia de boas obras.
Para que ninguém se gabe de obter a vida eterna através da fé, que é morta sem obras, ele teve o cuidado de dizer que separará as nações que obedecem aos mesmos pastores, para que fique evidente que aqueles que lhe disserem então: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos? (Mt 25,44) serão os cristãos que, mesmo acreditando nele, negligenciaram as boas obras, com a ideia de que uma fé morta bastava para levar à vida eterna.
O fogo eterno será a partilha daqueles que não foram misericordiosos, daqueles que se apropriaram de bens alheios e daqueles que trataram a si mesmo sem misericórdia, destruindo em seu coração o templo do Espírito Santo. De que servem as obras de misericórdia, se o amor não é o seu princípio? Pois, disse o Apóstolo:
“Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria!” (1Cor 13,3)
Pode amar o próximo como a si mesmo, quem não ama a si mesmo?
“Quem ama a iniquidade, odeia sua alma” – Qui autem diligit iniquitatem, odit animam suam (Sl 10,6)
Não se poderia pretender aqui, como certas pessoas ingênuas, que o fogo e não o suplício durará eternamente. Elas incutem em seus adeptos a esperança de que se salvarão através do fogo eterno e que lhes bastará ter a fé morta para escapar da chama. Em seu pensamento, o fogo será eterno, mas ele não as devorará eternamente.
Mas o Senhor, em sua sabedoria soberana, previu esse erro, resumindo sua doutrina com estas palavras: E estes irão para o castigo eterno e os justos, para a vida eterna (Mt 25,46). O suplício será, portanto, eterno como o fogo e ele está reservado, segundo o testemunho da própria Verdade, àqueles que tiveram a fé, mas não lhe acrescentaram as obras.
Capítulo 26.
O sentido verdadeiro
Todas estas passagens e muitas outras, encontradas em todo o conjunto de Escrituras, sem o menor equívoco, são falsas? Então se terá razão em entender que a combustão da madeira, do feno e da palha significa o fogo destinado a purificar aqueles que mantiveram a fé em Cristo sem acrescentar a ela as boas obras. Ou é o contrário, elas são tão verdadeiras quanto precisas? É necessário então buscar um novo sentido para as palavras do Apóstolo e colocar esta passagem no meio das verdades difíceis de entender em suas Epístolas, como reconhece São Pedro, sem usá-las para sua própria perda e nem inspirar, apesar dos testemunhos mais claros das Escrituras, uma segurança cega sobre sua salvação, aos pecadores que, mantendo-se teimosamente em suas desordens, recusam se purificar e se converter através da penitência.
Capítulo 27.
Outra passagem do Apóstolo traído por aqueles que ensinam que a fé salva sem obra
Sem dúvida que vão me perguntar qual é o sentido que eu atribuo a esta passagem do apóstolo São Paulo e qual é sua verdadeira interpretação. Eu preferiria, confesso, que meu papel se limitasse a recolher, da boca de pessoas mais esclarecidas e mais judiciosas, uma explicação capaz de conciliar, com esta passagem, todos os textos de verdade incontestável que eu já citei ou que poderia ter citado acima e que provam, pelo testemunho irrecusável das Escrituras, que a fé que salva é exclusivamente aquela que, na definição do Apóstolo, opera pela caridade (Gl 5,6), enquanto que, se ela não for acompanhada pelas obras, a fé é impotente para salvar, com ou sem a ajuda do fogo. Pois, se ela opera a salvação com a ajuda do fogo, ela realmente tem, nela mesma, a virtude de salvar. Ora, está dito claramente e sem restrição: De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo? (Tg 2,14). No entanto, eu vou expor, da maneira mais breve possível, a maneira como interpreto este texto tão difícil de compreender. Não se deve esquecer que eu preferiria, como confessei, ouvir teólogos mais esclarecidos que eu para discutir esta passagem.
A fundação do edifício erguido pelo sábio arquiteto é Jesus Cristo. Este princípio não precisa de demonstração, pois, de acordo com as palavras do Apóstolo: Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto: Jesus Cristo (1Cor 3,11). Por Jesus Cristo é preciso entender, evidentemente, a fé em Jesus Cristo, pois ele habita nos corações pela fé, segundo a expressão do mesmo Apóstolo (Ef 3, 17. Que Cristo habite pela fé em vossos corações, arraigados e consolidados na caridade). Ora, essa fé necessária em Jesus Cristo não é outra além daquela fé que age pela caridade, como também a define o Apóstolo. Pois seria insensato tomar como fundamento o tipo de fé que se impõe aos próprios demônios, que os faz tremer e lhes arranca a confissão de que Jesus Cristo é o Filho de Deus. Gostaríamos de tomar pela fé, não a crença que fecunda a caridade, mas a confissão que arranca o medo? Portanto, é a fé em Jesus Cristo, a fé que inspira a graça cristã e que a caridade torna fecunda com boas obras é que é o fundamento da salvação para todos os humanos.
.O que se deve entender agora por edifício de ouro, de prata, de pedrarias ou de madeira, palha e feno, erguido sobre este fundamento?
Eu temo dar, ao aprofundar muito o texto, uma explicação mais obscura do que o próprio texto. No entanto, eu vou tentar, com a ajuda de Deus, expor meu sentimento com toda a precisão e toda clareza que eu for capaz.
Não se recordam daquele que perguntou ao próprio Príncipe do Bem, o bem que ele devia realizar para possuir a vida eterna? Ele aprendeu que devia cumprir os mandamentos, se queria conquistar a felicidade eterna. E, como ele perguntou também quais eram os mandamentos, obteve a resposta: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás teu próximo como a ti mesmo (Mt 19, 18-19). Agindo assim, sob a inspiração da fé em Jesus Cristo, ele teria manifestamente a fé que opera pela caridade.
Pois, como amar o próximo como a si mesmo, sem ter recebido o dom do amor de Deus; verdadeiro princípio do amor a si mesmo?
Mas, se ele observou em seguida o que Nosso Senhor acrescenta: Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!81, ele construiu, sobre esse fundamento, um edifício de ouro, de prata e de pedras preciosas, pois todos os seus pensamentos, não tendo outro objeto além das coisas divinas, teriam sido dedicados a agradar a Deus e são esses altos pensamentos que representam, na minha opinião, o ouro, a prata e as pedras preciosas.
Mas, se ele estivesse preso por uma afeição totalmente carnal às suas riquezas, ele teria em vão feito de seus bens abundantes esmolas, evitado a fraude e o furto para aumentar seus tesouros, resistido a todas as tentações do crime e da desonestidade para não vê-los diminuir ou se esgotar. Em vão ele jamais teria se afastado do princípio inabalável que lhe serviu de fundamento. Nessa paixão totalmente mundana que o impediu de renunciar sem arrependimento à sua fortuna, ele teria erguido, sobre a fundação sólida, apenas um edifício de madeira, de feno ou de palha. Principalmente se ele tinha uma esposa que o levou, para lhe agradar, a só pensar nas coisas do mundo, no interesse de sua vaidade.
Só podemos nos decidir a perder sem arrependimentos os bens aos quais não estamos ligados por um sentimento totalmente carnal.
Possuamo-los tomando por base o fundamento da fé que age sob o impulso da caridade. Não coloquemos jamais, por cobiça ou avareza, nosso ouro acima de nossas crenças. Se sua perda aflige como um sacrifício, só obteremos a salvação passando pela pena ardente do fogo.
Menos expostos estamos a esse suplício e a esse arrependimento, quanto menos presos estamos às riquezas. Ou se as possuímos como se não as possuíssemos.
Caímos, para conservá-las ou adquiri-las, no homicídio, no adultério, na fornicação, na idolatria e outros crimes igualmente monstruosos? A solidez do fundamento não assegura a salvação através das chamas. Perderemos esse apoio e seremos abandonados aos tormentos eternos.
Capítulo 28.
O privilégio paulino
É portanto em vão que, para provar a eficácia da fé, por ela mesma, alega-se esta passagem do Apóstolo: Mas, se o pagão quer separar-se, que se separe; em tal caso, nem o irmão nem a irmã estão ligados. Deus vos chamou a viver em paz (Mt 19,21). Isto significa que somente a fé em Jesus Cristo autoriza deixar um esposo legítimo se ele se recusa a coabitar com a outra parte que é cristã.
Aqui nossos adversários não levam em conta que haveria total justiça em repudiar uma mulher que tivesse um discurso assim com seu marido:
“Eu não quero mais ser sua esposa, se você não me enriquece mais com seus roubos, se você deixa de praticar — por que é cristão — o tráfico, que transformou sua casa em um lugar de prazeres”.
Enfim, uma mulher que mantivesse seu marido em todos os vícios, em todas as infâmias que ela conhecesse nele e das quais ela se aproveitava com prazer, seja para satisfazer sua lubricidade, seja para viver na ociosidade ou até mesmo para ostentar uma pompa maior.
Seguramente, o homem que tivesse uma mulher com um comportamento desses não deixaria de experimentar — se tivesse renunciado, pela penitência, às obras de morte, se aproximado do batismo e tomado por fundamento de sua conduta a fé que age através das obras — uma atração mais viva e mais poderosa pela graça divina do que pela beleza totalmente física de sua mulher e teria suficiente energia para cortar o membro que o escandaliza.
Ora, esse homem experimenta, ao romper seu casamento, uma dor inspirada em seu coração pela ligação totalmente carnal à sua esposa?
Eis a palha que a chama consumirá sem comprometer sua salvação.
Se for o contrário. Se ele tinha uma esposa como se não a tivesse.
Menos por concupiscência do que por um sentimento de misericórdia que o fizesse desejar salvá-la com ele e cumprir, mais do que exigir, as obrigações do casamento? A carne não se revoltará nele, quando houver o rompimento de uma união assim, pois ela não o impedirá de pensar unicamente nas coisas do Senhor e só lhe inspirará um desejo, o de agradar a Deus (1Cor 7, 29-34). Portanto, como ele só acrescentou ao fundamento o ouro, a prata e as pedras preciosas, se mantendo nos pensamentos totalmente divinos, ele não perderá nada e seu edifício, ao qual a palha não se misturou, não poderá ser consumido pela chama.
Capítulo 29.
Conclusão
Que as pessoas vejam desde aqui debaixo suas obras se purificarem assim, já que um julgamento após a morte as condena a essa pena.
O sentido que eu atribuo a esta passagem não tem nada que esteja em contradição com a verdadeira doutrina. Se ela comporta outra — que não se apresenta em minha mente — rogo que ela seja adotada preferencialmente. Pelo menos esta interpretação não nos obriga a dizer aos injustos, aos incorrigíveis, aos sacrílegos, aos celerados, aos parricidas, aos homicidas, aos fornicadores, aos infames, àqueles que traficam pessoas livres, aos mentirosos, aos perjuradores, enfim, a todos os que são contrários à santa doutrina, contida nos Evangelhos que Deus soberanamente feliz tira sua glória (1Tm 9-11): somente acreditem em Jesus Cristo e recebam o sacramento do batismo, pois, mesmo que vocês não renunciem às suas vidas abomináveis, vocês serão salvos.
Capítulo 30.
A fé da cananeia
O exemplo da cananeia também não poderia nos induzir a esse erro. Sem dúvida que o Senhor atendeu sua prece, após lhe ter dito: Não convém jogar aos cachorrinhos o pão dos filhos (Mt 15,26). Mas o Deus que sonda os corações tinha visto sua conversão interior, quando louvou sua fé e, assim, não disse: “Cadela, tua fé é grande”, mas Ó mulher, grande é tua fé! (Mt 15,28). Ele muda sua expressão por que vê que os sentimentos da cananeia mudaram e suas censuras surtiram efeito.
Eu não poderia pensar sem espanto que se preconiza nessa mulher a fé sem obras; essa fé que não é seguida pela caridade; essa fé morta que não é privilégio dos cristãos, mas dos demônios, como não hesita em chamá-la o apóstolo São Tiago.
Quem não quiser compreender que a cananeia viu se operar uma reviravolta em suas paixões criminosas, sob as palavras desdenhosas e severas de Jesus Cristo, então, quando encontrarem pessoas que possuem a fé, mas que não escondem sua conduta desregrada e chegam até mesmo a expô-la publicamente e se recusam a mudar, que curem seus filhos, se puderem, como Jesus Cristo curou a filha da cananeia, mas que não façam essas pessoas membros de Jesus Cristo, quando obstinam em permanecer como prostituídas.
Há razão, eu digo, para acreditar que se comete com relação ao Espírito Santo um pecado irremissível, ao perseverar na incredulidade até o fim de seus dias. Mas também é preciso compreender qual é o caráter da crença verdadeira em Jesus Cristo. Não é uma fé morta — como foi justamente chamada — e que é encontrada até nos próprios demônios; é a fé que age através da caridade.
Capítulo 31.
O mau argumento tirado das parábolas do joio e dos convidados.
De acordo com estes princípios, nosso objetivo, ao recusar o batismo a esses pecadores, não é arrancar o joio antes da colheita, mas é o de não semeá-lo, como faz Satã. Longe de repelir aqueles que querem se juntar a Jesus Cristo, nós lhes provamos, através de sua conduta, que são eles que se recusam a vir até ele. Longe de impedi-los de acreditar, nós lhes demonstramos que eles são culpados por sua incredulidade, já que não querem reconhecer um adultério no ato qualificado como adultério pelo próprio Senhor, pensam que podem se incorporar a Jesus Cristo aqueles que jamais possuirão o reino de Deus, como também foi dito pela boca do Apóstolo e se opõem à santa doutrina onde Deus se glorifica em sua felicidade sem limites.
Não comparemos também esses pecadores aos convivas que vieram ao festim das núpcias; eles devem ser comparados com aqueles que se recusaram a vir. Muito audaciosos para se colocarem em plena contradição com a própria doutrina de Jesus Cristo e se revoltar contra os santos Evangelhos, eles desdenham em vir, muito mais do que se recusar.
Há os que renunciam ao mundo em palavras, muito mais do que em atos. Estes pelo menos se apresentam e estão semeados no meio dos bons. Eles estão reunidos na eira; eles estão juntos às ovelhas; eles entram na rede; eles são acolhidos dentre os convivas. Sejam eles hipócritas, sejam sinceramente dóceis; não temos razão para rejeitá-los, já que não se pode penetrar em suas consciências e não se deve prejulgar os motivos que justificariam sua excomunhão.
Longe de nós a ideia de que admitir na sala das núpcias aqueles que se encontra, sejam bons ou maus (Mt 22,10), ali se introduz igualmente aqueles que demonstraram sua resolução de perseverar no mal. Com este argumento, com efeito, os servidores do pai de família também teriam semeado o joio e tudo seria vão nesta passagem: O inimigo, que o semeia, é o demônio (Mt 13,39). Sendo esta hipótese impossível, é preciso pensar que os servidores conduziram os bons e os maus, escondidos sob falsas aparências ou somente reconhecidos após terem sido introduzidos na sala do festim.
Talvez ainda a expressão bons e maus tenha o mesmo significado que na linguagem comum, onde não passa de um termo de louvor ou de desprezo, que se qualifica até mesmo os pagãos. Foi neste sentido que Jesus Cristo a empregou ao falar aos discípulos que ele enviou pela primeira vez pregar o Evangelho. Ele lhes recomenda que se informem, em todas as cidades onde entrarem, sobre as pessoas que são dignas de recebê-los em suas casas até sua partida (Mt 10,11).
Ora, com qual marca se reconheceriam as pessoas dignas, se não era através da estima que eles desfrutavam entre seus concidadãos e as pessoas indignas através de sua má reputação?
Eis os bons e os maus que são conduzidos a Jesus Cristo e que se apresentam para acreditar nele. Eles são acolhidos se consentem em se livrar, através da penitência, das obras de morte. Se não consentem, são rejeitados e, longe de procurar entrar, eles mesmos fecham a porta, com um oposição bem clara.
Capítulo 32.
Semelhança inútil com o servo que não queria perdoar
E quanto ao servidor do Evangelho que se recusou a aplicar o talento de seu senhor! Ele deveria banir toda preocupação e não temer ser acusado de negligência. Comparam-no com aqueles que não querem receber o talento que o Senhor lhes confia. Essa parábola (Mt 25,14-30) se dirige àqueles que não querem assumir na Igreja a função de distribuir os tesouros do Senhor, disfarçando sua indiferença sob o pretexto de que não querem responder pelos pecados alheios. Eles ouvem sem agir e recebem sem nada retribuir.
Ora, quando o servidor correto e fiel, cheio de entusiasmo por aplicar os tesouros de seu senhor e atento em administrar seus interesses, vem dizer a um adúltero:
“Se você quer ser batizado, deixe de ser adúltero; acredite em Jesus Cristo, que qualifica de adultério o relacionamento que você mantém. Deixe de pertencer a uma prostituta, se você quer se tornar membro de Jesus Cristo”.
Se esse homem lhe responde:
“Não obedecerei. Não pararei”.
Está claro que ele se recusa em receber o talento de boa qualidade do Senhor, ou então que ele gostaria de misturar a esse tesouro sua falsidade.
Suponhamos que, após ter prometido obedecer, ele não cumpre seu compromisso e não se possa corrigi-lo. É preciso ver o que fazer com ele, para impedi-lo de arruinar outros, após ele ter arruinado a ele mesmo. Peixe ruim, perdido na rede divina, deve ser impedido de prender em suas armadilhas os peixes do Senhor. Que não se permita que, levando uma vida culposa na Igreja, ele faça nascer uma doutrina perniciosa.
Se esses pescadores — fazendo a apologia de suas torpezas e espalhando a intenção expressa de perseverar nelas — são admitidos ao batismo, então só nos resta, me parece, pregar que os fornicadores e os adúlteros, que devem guardar seus hábitos criminosos até o fim de seus dias, possuirão o reino de Deus e, por causa da fé, totalmente morta que é sem as obras, obterão a vida e a salvação eterna.
Esta é a mais perigosa das redes e os pescadores devem desconfiar dela. Eu falo assim pensando que a parábola do Evangelho designa os bispos e os diretores subalternos da Igreja, segundo estas palavras: Vinde após mim e vos farei pescadores de homens (Mt 4,19). A rede prende todo tipo de peixes, bons e maus; mas uma má rede jamais prenderá os bons peixes. Ora, no seio da verdadeira doutrina pode-se ser bom se se acrescenta as obras à fé; mau, se se acredita sem praticar. Na heresia, se é mau não se conformando ao que se acredita ser verdadeiro; mas culpado também, se se conforma a isso.
Capítulo 33.
A proibição do batismo aos empedernidos não é uma novidade
Na opinião que nos separa de nossos irmãos e que suas consequências perigosas obrigam a rejeitar — seja ela antiga ou moderna — uma coisa me parece estranha: é a classificação como novidade a doutrina que proíbe admitir ao batismo as pessoas tão perversas que proclamam a resolução de persistir em seus desregramentos.
Dir-se-ia que sua imaginação as leva para não sei onde, pois as cortesãs, os perversos e outros perseguidores da corrupção pública só são admitidos aos sacramentos da Igreja com a condição de romper suas correntes. Ora, seguindo as máximas de nossos adversários, todos seriam admitidos indiferentemente. Mas a santa Igreja permanece fiel à antiga e inalterável tradição que remonta ao princípio muito claramente estabelecido por estas palavras: Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus! (Gl 5,19-21; 1Cor 6,9-10). Se a penitência não apaga essas obras de morte, o batismo está interditado aos pecadores e se eles o obtém, mas não reformam seus hábitos, sua salvação é impossível.
Os beberrões, os avaros, os difamadores e todos os pecadores cujos hábitos criminosos não são tema para uma condenação motivada por atos notórios, são objeto de vigorosas admoestações no catecismo e só entram no banho sagrado após terem demonstrado disposições melhores.
Quanto aos adúlteros, condenados pelas leis divinas e não pelas leis humanas, eles são admitidos talvez muito rapidamente em algumas Igrejas. Mas, são exceções que devem ser condenadas em nome da regra, invés de afrouxar a regra por causa desses precedentes. Em outros termos, é preciso afastar os indignos, invés de admitir como princípio que os postulantes não devem receber nenhuma instrução moral e acolher, por uma consequência necessária, todos os escravos da corrupção pública, cortesãs, prostitutas, gladiadores e outras pessoas desta espécie, que insistem em permanecer em suas atividades.
Os crimes, cuja enumeração feita pelo Apóstolo termina com a frase Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus! encontram, nos que atuam energicamente, censores vigorosos. Se confessam e proclamam, com toda a dignidade de seus caracteres, que têm a intenção de perseverar em seus erros, não são admitidos ao batismo.
Capítulo 34.
Três pecados mortais admitidos por todos
Aqueles que pensam que a esmola pode facilmente absolver os pecados não hesitam em reconhecer que há três deles que são mortais e dignos de excomunhão, na medida em que não são expiados pelas humilhações da penitência. São eles: a imoralidade, a idolatria e o homicídio.
Seria supérfluo examinar aqui essa opinião e procurar, se for necessário, admiti-la com reserva ou aprová-la. Isso seria complicar nosso tema com uma questão estranha ao seu objetivo. Esta confissão nos basta, pois, se todos os pecados são motivos para excluir do batismo, o adultério faz parte deles. Ora, este é o pecado que levantou esta controvérsia.
Capítulo 35.
O desleixo e a tolerância negligente
Como os cristãos — qualquer que tenha sido a corrupção dos costumes nos séculos precedentes — parecem ter permanecidos estranhos à união criminosa de um homem com uma mulher ou de uma mulher com um homem, sem levar em conta um casamento anterior, este provavelmente deve ser o motivo da ausência de preocupação com essa desordem em certas Igrejas e de se ter esquecido de incluir na instrução dos postulantes a descrição e condenação dessa imoralidade. Essa negligência fez nascer a necessidade de se banir tal desordem. No entanto, não há poucos desses casos entre pessoas que receberam o batismo e, se há exemplos tão numerosos, é preciso atribuir isso à nossa apatia.
Essa falta de vigilância, devido à indiferença de uns, a inexperiência de outros e, algumas vezes, da ignorância, foi verdadeiramente chamada pelo Senhor de sono, quando ele disse: Na hora, porém, em que os homens dormiam, veio o seu inimigo, semeou joio no meio do trigo e partiu (Mt 13, 25. Cum autem dormirent homines, venit inimicus ejus, et superseminavit zizania in medio tritici, et abiit).
Uma prova de que essa desordem não surgiu nos costumes nem mesmo dos maus cristãos, é que o bem-aventurado Cipriano, em sua carta sobre os fiéis caídos, dentre todos os crimes que ele assinalou, deplorando-os e estimagtizando-os e que, segundo ele, foram capazes de provocar em Deus uma indignação tão viva a ponto dele abandonar sua Igreja aos horrores de uma pavorosa perseguição, ele jamais citou este pecado. Esse silêncio é tão mais significativo que ele não se esquece de assinalar como um traço de corrupção o casamento com os infiéis, que ele vê como uma prostituição dos membros de Jesus Cristo aos pagãos. No entanto, este casamento não é mais visto como um pecado.
O Novo Testamento não deixou nenhum preceito sobre este ponto e, por isso, concluiu-se que tal união era legítima ou, pelo menos, sujeita a controvérsia.
Não se sabe também se Herodes desposou a mulher de seu irmão antes ou depois de sua morte e, por isso, não se fixou na própria natureza do crime, que João reprovou (Mt 14,3.6).
Deve-se admitir ao batismo uma concubina que se comprometeu a jamais se relacionar com outro homem e que até mesmo foi rejeitada por seu sedutor?
O caso suscita dúvidas, mas não se pode confundir o marido ultrajado que se separa de sua mulher e assume um novo relacionamento com outra e aquele que, sem ter surpreendido sua mulher em adultério, se divorcia e se casa com outra.
Os textos sagrados são tão obscuros sobre este ponto que é difícil decidir se um marido, mesmo podendo rejeitar sua mulher em caso de adultério, também não se torna adúltero ao formar uma nova união.
Neste caso, eu creio, pelo que eu posso julgar, trata-se de um erro venial. Por consequência, todos os pecados de impureza, quando são evidentes, levam à exclusão do batismo; a menos que eles sejam expiados por um arrependimento sincero e pela penitência. Eles são duvidosos e mal definidos? É preciso impedir por todos os meios esses casamentos equivocados. Pois, para que comprometer um princípio com tais enigmas? No entanto, se o casamento já está consumado, eu me inclino a acreditar que não se deve recusar o batismo.
Capítulo 36.
A ordem da cura dos catecúmenos
Para guardar em sua integridade a verdadeira doutrina que proíbe assegurar a todo pecado mortal uma perigosa segurança ou de rodeá-lo de um prestígio funesto, eis aqui a ordem na qual se deve proceder à cura dos catecúmenos: eles devem acreditar em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, segundo a fórmula do Símbolo; fazer penitência pelas obras de morte e serem convencidos de que vão receber no batismo a remissão de seus pecados, não para serem autorizados a pecar no futuro, mas para estarem isentos das penas correspondentes às suas faltas no passado, pois a remissão do pecado não inclui a liberdade de cometê-lo.
Eles estão nestas condições? Então se pode aplicar a eles, em um sentido espiritual, esta passagem: Eis que ficaste são; já não peques (Jo 5,14).
Se o Senhor falou aqui da saúde do corpo, foi por que ele sabia bem que o enfraquecimento dos órgãos era, naquele que foi curado por ele, uma consequência de seus pecados.
Mas eu não sei em que sentido nossos adversários poderiam dizer àquele que entrou adúltero no banho sagrado e saiu adúltero: “Tu estás curado”. Que doença seria então mortal, se o adultério era a própria saúde?
Capítulo 37.
A catequese dos apóstolos não favorece quem quer admitir os adúlteros ao batismo
Mas, argumentam, dentre as três mil pessoas que foram batizadas no mesmo dia pelos apóstolos ou na multidão de fiéis aos quais Paulo anunciou o Evangelho, desde Jerusalém até os confins da Ilíria (Rm 15,19) devia haver homens e mulheres unidos sem levar em conta a lei conjugal.
Neste caso o apóstolo deve ter estabelecido uma regra destinada a guiar as Igrejas e decidir que se devia recusar o batismo a todos aqueles que não renunciaram ao adultério.
Não é fácil retorquir este argumento pedindo que se cite o nome de uma só pessoa admitida ao batismo, apesar de suas ligações criminosas? Por outro lado, não é impossível enumerar as faltas particulares de cada indivíduo? Esse cálculo seria interminável e totalmente inútil, já que a regra estabelecida por Pedro, em sua longa exortação àqueles que deviam ser batizados: Salvai-vos do meio dessa geração perversa! (At 2,40-41), basta para sua universalidade. Pois, podemos duvidar que a corrupção do mundo abrange ao mesmo tempo o adultério e aqueles que se obstinam nessa iniquidade?
Seguindo este princípio, seria preciso igualmente sustentar que poderia haver nessa multidão de fiéis espalhados por todas as nações, prostituídos infelizes que nenhuma Igreja jamais admitiu antes de tê-los tirado de sua infame atividade e que o Apóstolo teria fixado as condições em que se podia admiti-los ou excluí-los.
Mas, pode-se concluir pelo menos isto: os publicanos que se apresentaram ao batismo de João receberam a ordem de não exigir mais do que lhes foi ordenado (Lc 3,13). Eu ficaria muito surpreso se o adultério fosse autorizado àqueles que se apresentaram ao batismo de Jesus Cristo.
Capítulo 38.
Não tem fundamento algum afirmar que os judeus foram aniquilados unicamente por sua infidelidade
Citam-se também os israelitas, cuja ruína completa veio, não dos crimes enormes que eles cometeram, não do sangue dos profetas que eles derramaram tantas vezes, mas da incredulidade que os fez desconhecer Cristo. Esquecem que o pecado dos judeus não foi somente terem negado Cristo, mas de tê-lo imolado. Seu crime é uma barbárie na medida em que a incredulidade é uma iniquidade tanto quanto a falta de fé.
Ora, esse duplo pecado não é encontrado naquele que tem fé em Jesus Cristo. Não a fé morta, que até os demônios possuem (Tg 2,19-20), mas a fé da graça, que opera pela caridade (Gl 5,6).
Capítulo 39.
Que o reino dos céus sofre violência não foi dito pela fé, mas pela caridade
Esta é a fé mencionada nesta passagem: O Reino de Deus já está no meio de vós (Lc 17,21). A ele só são arrebatados os que obtêm, com a vivacidade da fé, o espírito de caridade, pois a caridade é o pleno cumprimento da lei (Rm 13,10) e, separada dela, a lei não passa de letra morta, que torna culpado até mesmo de crime de prevaricação.
Nós nos enganaríamos, no entanto, se acreditássemos que as palavras: O Reino dos céus é arrebatado à força e são os violentos que o conquistam (Mt 11,12) significam que os maus obtêm, pela vivacidade de sua fé e apesar da indignidade de sua conduta, o reino dos céus. Ela nos ensina somente que a acusação de prevaricação — sob a qual nos foi dada a lei; eu quero dizer, a letra sem o espírito — cai pela virtude da fé, cuja vivacidade nos faz obter o Espírito Santo, através do qual a caridade se espalha em nosso corações (Rm 5,5) e a lei se cumpre menos por medo do castigo do que pelo amor à justiça.
Capítulo 40.
O verdadeiro conhecimento de Deus, que leva à vida eterna
É, portanto, em vão que uma mente superficial pensa conhecer Deus, quando confessa com uma fé morta; eu quero dizer, sem as boas obras, à maneira dos demônios, ou que alega conquistar a vida eterna se apoiando nesta passagem: A vida eterna consiste em que conheçam a ti, um só Deus verdadeiro e a Jesus Cristo que enviaste (Jo 17,3).
É necessário, com efeito, se lembrar desta outra passagem: Eis como sabemos que o conhecemos: se guardamos os seus mandamentos.
Aquele que diz conhecê-lo e não guarda os seus mandamentos é mentiroso e a verdade não está nele (1Jo 2,3-4).
Acreditam que estes mandamentos só têm relação com a fé?
Mesmo que ninguém tenha ousado sustentar esta opinião, a expressão do mandamento impede a mente de pensar em um grande número de outros preceitos, ao se lembrar dos dois mandamentos que resumem a lei e os profetas.
Mesmo que se possa dizer com razão que os mandamentos de Deus estão relacionados à fé — se entendemos por isso não a fé morta, mas a fé viva, que age pela caridade — no entanto, o próprio João explicou, em outro lugar, seu pensamento, dizendo: Eis o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho Jesus Cristo e nos amemos uns aos outros, como ele nos mandou (1Jo 3,23).
Capítulo 41.
Deve-se perdoar os arrependidos e esperar pelos que se afastam do pecado
O benefício que nos vale a graça de acreditar sinceramente em Deus, honrar Deus, conhecer Deus, é obter sua assistência para viver bem e sua misericórdia, se pecamos. Obtemos esse favor não perseverando com indiferença nas desordens que ele condena, mas renunciando a elas.
Piedade para mim, Senhor; sarai-me, porque pequei contra vós (Sl 40,5). Ora, não se tem a quem dirigir esta prece se não se acredita em Deus e ela é feita inutilmente por quem está tão afastado dele que não tem nenhuma parte na graça do Mediador.
Daí estas palavras, tiradas do Livro da Sabedoria e entendida, não sei como, pelas pessoas que afetam uma falsa segurança: Mesmo se pecamos, somos vossos (Sb 15,2). Pois, se nosso Deus é tão bom e tão poderoso para ter o desejo e o poder de curar o pecado seguido do arrependimento, ele não leva a fraqueza até o ponto de perder àqueles que se endurecessem em seus crimes.
Assim, o sábio, após ter dito: Somos vossos, acrescenta: Porque conhecemos vosso poder. Poder infinito do qual o pecador não pode evitar nem os golpes e nem a vigilância. E ele conclui: Não pecaremos, cientes de que somos considerados como vossos.
É possível, com efeito, conceber em toda sua beleza o lar onde devem morar com Deus todos aqueles que para ali são predestinados, de acordo com os conselhos eternos, sem se esforçar para levar uma vida digna desse lar celeste, quando João diz: Filhinhos meus, isto vos escrevo para que não pequeis. Mas, se alguém pecar, temos um intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo. Ele é a expiação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo (1Jo 2,1-2)?
Ele quer que pequemos sem medo? Não. Ele quer que, renunciando aos pecados que possamos ter cometido, tenhamos confiança no advogado que falta aos infiéis, para não ficarem desesperados pela misericórdia divina.
Capítulo 42.
A condenação eterna nas Escrituras
Se a passagem que acabamos de citar pouco permite contar com uma sorte feliz àqueles que querem acreditar em Deus sem interromper suas desordens, mais ameaçadora ainda deve lhes parecer aquela em que o Apóstolo diz: Todos os que sem a lei pecaram, sem aplicação da lei perecerão; e quantos pecaram sob o regime da lei, pela lei serão julgados (Rm 2,12). Há os que acreditam que as expressões perecer e ser julgado são diferentes, mas elas são rigorosamente sinônimas.
Na linguagem comum das Escrituras, a palavra julgamento significa condenação eterna. Foi neste sentido que Nosso Senhor a empregou, quando disse: Vem a hora em que todos os que se acham nos sepulcros sairão deles ao som de sua voz: os que praticaram o bem irão para a ressurreição da vida e aqueles que praticaram o mal ressuscitarão para serem julgados (Jo 5,28-29), ou condenados. E aqui não se fala daqueles que tiveram a fé ou que foram incrédulos; trata-se apenas daqueles que fizeram o bem ou que fizeram o mal. Pois a vida honesta é inseparável da fé que age através da caridade, ou melhor, ela está incluída inteira nela.
Está claro, portanto, que por “ressurreição seguida de julgamento”, o Senhor entende a ressurreição seguida da condenação eterna, pois ele coloca em duas classes aqueles que ressuscitarão, sem excluir os incrédulos que também estão no sepulcro e declara que uns ressuscitarão para a vida eterna e os outros para serem julgados.
Capítulo 43.
O juízo, nas Escrituras, equivale à condenação eterna
Sustenta-se que esta passagem não diz respeito aos incrédulos, mas aos crentes, cuja fé os salvará através das chamas, apesar de sua vida criminosa e que é preciso entender pelo termo julgamento a pena passageira à qual eles serão condenados.
Este discurso soa bem despudorado depois que o Senhor dividiu aqueles que ressuscitarão, sem excluir os incrédulos, em duas classes, caracterizadas pelos termos “vida” e “julgamento”. Ele designou, então, implicitamente a vida e o julgamento eternos; especialmente por que ele não qualificou de eterna a vida à qual ressuscitarão os bons, embora não se possa atribuir outro sentido à sua expressão.
Mas, o que dirão sobre esta passagem: Quem não crê já está julgado (Jo 3,18 – Qui autem non credit, jam judicatus est)? Aqui, com efeito, das duas uma, ou se reconhece que o julgamento implica na danação eterna ou se admite ousadamente que os próprios incrédulos escaparão através do fogo. A palavra julgado, nesta passagem, significa destinado ao julgamento: Quem não crê já está julgado.
Desta forma, não se prometeu um favor maravilhoso aos crentes que vivem no mal, já que os incrédulos também teriam que sofrer um julgamento, muito mais do que uma condenação.
Não é muita ousadia ter um discurso assim? Que não se tenha então a ousadia de alimentar uma doce esperança naqueles dos quais foi dito: Pela lei serão julgados (Rm 2,12), pois é incontestável que a palavra julgamento é comumente sinônimo de condenação eterna.
Eu acrescentaria que aqueles que pecam conscientemente são ameaçados por uma sorte bem mais rigorosa. Eles estão longe de esperar um tratamento mais suave. Esses pecadores são principalmente aqueles que admitiram a lei, pois, segundo o que está escrito: A lei produz a ira e onde não existe lei, não há transgressão (Rm 4,15). E, em outro lugar: Eu não conheci o pecado senão pela lei. Porque não teria ideia da concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás. Foi o pecado, portanto, que, aproveitando-se da ocasião que lhe foi dada pelo preceito, excitou em mim todas as concupiscências; porque, sem a lei, o pecado estava morto (Rm 7,7-8). Omito um grande número de passagens em que o Apóstolo trata este ponto da doutrina.
Essa acusação é muito grave, mas ela cai, sob a influência da graça do Espírito Santo, no nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. A graça, com efeito, derramada pela caridade no fundo de nossos corações, nos inspira pela justiça um amor capaz de interromper os atrativos da concupiscência.
Esta é a prova evidente de que aqueles que pecaram sob o regime da lei, pela lei serão julgados (Rm 2,12) e sofrerão um castigo mais severo e mais rigoroso do que aqueles que, tendo pecado fora da lei, serão condenados fora da lei. A palavra julgamento não designa, neste trecho, um suplício passageiro, mas a própria pena que será decretada contra os incrédulos.
Capítulo 44.
Deve-se entender que só os crentes maus irão à ressurreição do juízo, para que o juízo não seja a condenação eterna
De fato, apoiando-se nesta passagem: Todos os que sem a lei pecaram, sem aplicação da lei perecerão e quantos pecaram sob o regime da lei, pela lei serão julgados (Rm 2,12), para manter em seus fiéis, presos a uma vida desregrada, a esperança de salvação através das chamas, como se esse fosse o caso, invés da condenação à purificação pelo fogo, esquecem um ponto: é que o Apóstolo, ao falar ao mesmo tempo aos judeus e aos gentios, tinha em vista os pecadores submetidos à lei ou estranhos às suas prescrições. Ele queria provar a ambos que a graça de Jesus Cristo era a condição indispensável de sua salvação; verdade capital que é o fundamento da carta aos romanos.
Que não se hesite então em prometer aos judeus prevaricadores que vivem sob o império da lei e que pela lei serão julgados, que o fogo os purificará sem a graça de Jesus Cristo, por que eles pela lei serão julgados. Não se ouse ir além, com o risco de se contradizer e de negar, após ter reconhecido, a acusação esmagadora de incredulidade que pesa sobre os judeus.
Por que então aplicar aos fiéis e aos incrédulos e remeter a uma questão de fé em Jesus Cristo uma passagem relativa àqueles que pecaram sem a Lei ou com a Lei e inspirada, com relação aos judeus e aos gentios, com o único objetivo de atraí-los para a graça de Jesus Cristo?
Não foi dito, com efeito: aqueles que pecaram, não estando sob o império da fé, serão condenados em nome da fé. Não, trata-se apenas da Lei e daí ressalta, evidentemente, que toda a questão gira em torno da discussão que se debatia então entre os judeus e os gentios e que não tinha nenhuma relação com os bons e os maus cristãos.
Capítulo 45.
Não seja a liberdade o véu da malícia
Há o desejo, todavia — sem recuar diante de uma hipótese tão falsa quanto deplorável — de tomar a palavra lei, nesta passagem, como sinônimo de fé? Há que se ler uma passagem de São Pedro, que joga sobre este ponto uma clareza irresistível.
Ele havia falado, em sua primeira Epístola, dos fiéis que, para viver segundo a carne e cobrir sua perversidade, abusavam do princípio estabelecido no Novo Testamento: Não somos filhos da escrava, mas sim da que é livre (Gl 4,31). É para que sejamos homens livres que Cristo nos libertou (Gl 5,1). E, contando com o prêmio infinito dessa compra, faziam a liberdade consistir na satisfação de todas as suas paixões, sem refletir nesta passagem: Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não abuseis, porém, da liberdade como pretexto para prazeres carnais (Gl 5,13). E nem nestas outras palavras, do próprio Pedro: Comportai-vos como homens livres e não à maneira dos que tomam a liberdade como véu para encobrir a malícia 1Pd 3,16).
Ele retoma este assunto em sua segunda Epístola e fala assim desses cristãos: Encontram as suas delícias em se entregar em pleno dia às suas libertinagens. Homens pervertidos e imundos, sentem prazer em enganar, enquanto se banqueteiam convosco. Têm os olhos cheios de adultério e são insaciáveis no pecar. Seduzem pelos seus atrativos as almas inconstantes; têm o coração acostumado à cobiça; são filhos da maldição. Deixaram o caminho reto, para se extraviarem no caminho de Balaão, filho de Bosor, que amou o salário da iniquidade. Mas foi repreendido pela sua desobediência: um animal mudo, falando com voz humana, refreou a loucura do profeta. Estes são fontes sem água e nuvens agitadas por turbilhões, destinados à profundeza das trevas. Com palavras tão vãs quanto enganadoras, atraem pelas paixões carnais e pela devassidão aqueles que mal acabam de escapar dos homens que vivem no erro. Prometem-lhes a liberdade, quando eles mesmos são escravos da corrupção, pois o homem é feito escravo daquele que o venceu. Com efeito, se aqueles que renunciaram às corrupções do mundo pelo conhecimento de Jesus Cristo nosso Senhor e Salvador nelas se deixam de novo enredar e vencer, seu último estado torna-se pior do que o primeiro. Melhor fora não terem conhecido o caminho da justiça do que, depois de tê-lo conhecido, tornarem atrás, abandonando a lei santa que lhes foi ensinada. Aconteceu-lhes o que diz com razão o provérbio: O cão voltou ao seu vômito; e: A porca lavada volta a revolver-se no lamaçal (2Pd 2,13-22).
Como então prometer àqueles que, tendo conhecido o caminho da justiça, ou seja, Senhor Jesus, nem por isso deixaram de viver no pecado, um tratamento mais suave do que eles teriam se jamais o tivessem conhecido? Isto não é contradizer a verdade tão claramente expressa nesta passagem: Melhor fora não terem conhecido o caminho da justiça do que, depois de tê-lo conhecido, tornarem atrás, abandonando a lei santa que lhes foi ensinada?
Capítulo 46.
O santo mandamento. Que pena aguarda os que, conhecendo-o, o quebram?
Sob a expressão lei santa, não se deve entender aqui a obrigação de acreditar em Deus, embora este preceito inclua tudo de forma abreviada, se não for separada a fé da caridade.
Os termos do Apóstolo são decisivos; ele entende por lei santa a obrigação de renunciar à corrupção do mundo e de levar uma vida pura:
“Se, após terem conhecido Jesus Cristo nosso Senhor e nosso Salvador e se retirado da corrupção do mundo, eles se deixam novamente enlaçar e vencer, seu último estado se torna pior do que o primeiro”.
Não se trata de acreditar em Deus e nem de renunciar à incredulidade do mundo, mas de sair da corrupção; palavra que compreende todas as torpezas.
Foram esses pecadores que o Apóstolo descreveu um pouco antes: Homens pervertidos e imundos, sentem prazer em enganar, enquanto se banqueteiam convosco. Têm, os olhos cheios de adultério e são insaciáveis no pecar (2Pd 2, 13-14).
Ele os chama de fontes sem água; fontes, por que foram iniciados na doutrina de Jesus Cristo; sem água, por que seus atos não correspondem à sua crença.
O apóstolo São Judas os caracteriza quase nos mesmos termos: Banqueteiam-se convosco despudoradamente e se saciam a si mesmos.
São nuvens sem água, que os ventos levam! (Jd 1,12) A ideia é a mesma nas duas passagens. Segundo São Pedro, Homens pervertidos e imundos, sentem prazer em enganar, enquanto se banqueteiam convosco. Têm, os olhos cheios de adultério e são insaciáveis no pecar. Segundo São Judas, Banqueteiam-se convosco despudoradamente e se saciam a si mesmos.
Os maus, de fato, se misturam aos bons no banquete dos sacramentos e nas efusões da caridade. A fonte seca de São Pedro e a nuvem sem água de São Judas são a fé morta de São Tiago (Tg 2,17).
Capítulo 47.
Não se deve prometer um castigo transitório aos batizados que vivem pecaminosamente
Que não se prometa então o purgatório àqueles que, após terem conhecido a vida da justiça, vivem uma vida de desordem e de crimes, pois teria sido melhor para eles que não a tivessem conhecido, segundo o testemunho das Escrituras.
A eles se aplicam estas palavras do Senhor: O último estado daquele homem torna-se pior que o primeiro (Mt 12,45). Ao se recusarem receber o Espírito Santo em seus corações, para que ele ali resida e os purifique, eles chamam o espírito imundo e seus companheiros.
Seria um mérito deles não terem recaído no adultério, já que jamais renunciaram a ele, ou não estarem cobertos com suas sujeiras passadas, já que jamais quiseram se purificar?
Mas eles nem mesmo se dignam entrar no banho sagrado com uma consciência descarregada de suas faltas e em rejeitar suas torpezas.
Eles devem retornar a elas, como o cão aos seus vômitos. No próprio seio da água que regenera, eles mantém em seus corações o peso de sua perversidade. Longe de esconderem sua intemperança, mesmo sob o véu de uma promessa hipócrita, eles a proclamam e parecem vomitá-la, com a impudente confissão de seu endurecimento.
Eles não somente imitam a mulher de Ló, que, ao deixar Sodoma, olhou para trás, como não querem nem mesmo deixar Sodoma.
Que digo!? Eles até mesmo se esforçam por levar Jesus Cristo para Sodoma.
Por que São Paulo disse: Outrora era blasfemo, perseguidor e injuriador. Mas alcancei misericórdia, porque ainda não tinha recebido a fé e o fazia por ignorância (1Tm 1,13), digamos a esses pecadores: “Vocês terão direito à misericórdia divina, na medida em que viveram cientemente no mal, tendo a fé”.
Mas, iríamos muito longe, iríamos até o infinito, se quiséssemos reunir todos os testemunhos das Escrituras que mostram claramente que a condição dos pecadores, cuja vida foi culposa e infame, apesar das luzes da fé, longe de ser mais suave, será tão rigorosa quanto mais eles agiram conscientemente. Este é um princípio que demonstramos suficientemente.
Capítulo 48.
O batismo não leva ao reino dos céus se a vida não for correspondente
Coloquemos então toda nossa atenção, com a ajuda do Senhor nosso Deus, em não inspirar nas pessoas uma falsa segurança, insuflando-lhes a esperança de que poderão, após terem sido batizados em Jesus Cristo, obter a salvação eterna, qualquer que tenha sido o desacordo de sua conduta com essa fé nova.
Evitemos fazer cristãos como faziam prosélitos os judeus dos quais o Senhor disse:
“Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Percorreis mares e terras para fazer um prosélito e, quando o conseguis, fazeis dele um filho do inferno duas vezes pior que vós mesmos” (Mt 23,15).
Mantenhamo-nos na verdadeira doutrina estabelecida por Deus, nosso mestre, segundo a qual a vida cristã deve corresponder com a santidade do batismo e a esperança da vida eterna deve ser interditada a todo aquele que não cumpre esta dupla lei.
Eis, com efeito, as palavras do Senhor: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus (Jo 3,5). E também: Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos céus (Mt 5,20). Ele os descreve assim: Os escribas e os fariseus sentaram-se na cadeira de Moisés. Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem (Mt 23, 2-3).
Sua justiça consiste, portanto, em falar sem praticar. Por consequência, a nossa deve ser mais abundante que sua estéril teoria. Deve consistir em falar e praticar como quer Nosso Senhor. Caso contrário, o reino dos céus nos estará fechado.
Eu não quero dizer que se deva ter orgulho a ponto de se vangloriar diante dos outros, ou mesmo em sua consciência, de ser sem pecado aqui embaixo; longe disso. Mas, se não houvesse faltas tão graves a ponto de merecer a excomunhão, o Apóstolo não teria dito: Reunidos vós e o meu espírito, com o poder de nosso Senhor Jesus, seja esse homem entregue a Satanás, para mortificação do seu corpo, a fim de que a sua alma seja salva no dia do Senhor Jesus (1Cor 5,4-5).
Ele também não teria acrescentado a este tema: Receio que à minha chegada entre vós Deus me humilhe ainda a vosso respeito; e tenha de chorar por muitos daqueles que pecaram e não fizeram penitência da impureza, fornicação e dissolução que cometeram (2Cor 12,21).
Sem dúvida também, se não houvesse certos crimes que devessem ser espiados pelas humilhações da penitência que a Igreja inflige costumeiramente aos fiéis que se arrependem, mas remédios mais eficazes, o próprio Senhor não teria dito: Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão (Mt 18,16).
Por fim, se não houvesse faltas inseparáveis da vida humana, ele não teria estabelecido um remédio cotidiano na oração que ele nos ensinou: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam (Mt 6,12).
Capítulo 49.
Crítica infundada contra os responsáveis
Creio ter desenvolvido suficientemente meu pensamento sobre os pontos gerais do tema. Esses pontos se reduzem a três.
Primeiro a questão tem por objeto a mistura dos bons com os maus na Igreja. Mistura essa representada pelo bom grão e o joio. Ora, sobre este ponto, não se pode acreditar que sob essa parábola, sob a figura dos animais impuros introduzidos na arca e outros símbolos análogos, se esconde o princípio de deixar enfraquecer a disciplina da Igreja, tão bem representada pela mulher da qual se diz:
“As leis de sua casa são severas”.
Essas imagens têm por objetivo impedir a louca precipitação, como o zelo exagerado de antecipar a separação dos bons e dos maus e produzir um cisma ímpio. Essas parábolas e essas figuras servem para recomendar aos justos, não a indiferença para com as desordens que eles devem reprimir, mas a paciência necessária para tolerar, sem prejuízo dos princípios, os abusos que não se pode consertar.
Se está escrito que Noé fez entrar na arca até os animais impuros, os líderes da Igreja devem ver aí um motivo para deixar um miserável entrar no banho sagrado com uma sujeira medonha e dançando, embora esse sacrilégio fosse menos grave do que se ele aí entrasse com um pensamento de adúltero.
Então, sob esse símbolo, Deus nos faz entender que a Igreja deve incluir gente impura pelo espírito de tolerância e não para alterar seus dogmas ou relaxar sua disciplina.
Os animais impuros não foram introduzidos na arca de qualquer maneira; eles ali foram introduzidos sem degradá-la, pela única porta de entrada, que lhes foi aberta pelo construtor do navio.
Eis o segundo ponto dessa controvérsia: nossos adversários entendem que basta iniciar na fé os catecúmenos e esperar o batismo para depois lhes ensinar a moral cristã. Nós demos provas superabundantes de que o catequista deve aproveitar a atenção e o zelo daqueles que aspiram receber o sacramento da fé, para lhes mostrar o castigo que o Senhor ameaça os cristãos que vivem no pecado; se ele quer evitar que o batismo, onde eles vão receber a remissão de suas faltas, não seja para eles a fonte da acusação mais temível.
Quanto ao terceiro ponto, o mais fecundo em consequências desastrosas, ele tem por princípio, na minha opinião, um exame pouco atento das palavras santas que ele contradiz. Ele consiste em prometer, àqueles que vivem no crime e na infâmia, que eles obterão a vida eterna, mesmo perseverando em suas desordens; com a única condição de acreditarem em Jesus Cristo e de receberem os Sacramentos. Esta é uma opinião manifestamente oposta ao princípio expressamente estabelecido por Nosso Senhor, quando ele respondeu àquele que buscava a vida eterna: Se queres entrar na vida, observa os mandamentos (Mt 19,17). E, já que ele até mesmo cita os mandamentos destinados a proscrever os pecados que se quer conciliar, eu não sei por qual ilusão se vislumbra a possibilidade de chegar à vida eterna através de uma fé estéril e sem obras.
Sobre estes três pontos, eu fiz todos os desenvolvimentos necessários. Eu provei que a tolerância para com os pecadores devia se conciliar na Igreja com a manutenção da disciplina. Que é preciso ensinar e fazer os postulantes adotarem, não apenas os mistérios da fé, mas as regras da moral. Que é preciso assegurar aos fiéis que, para chegar à vida eterna, eles devem ter não a fé morta e impotente para salvar sem as obras, mas a fé da graça que age pela caridade.
Longe de acusar os servidores fiéis de indiferença ou de preguiça, mas que se foque na obstinação dos pecadores em pequeno número que se recusam a aceitar o talento do Senhor e gostariam de constranger seus ministros a receber sua falsa moeda.
Estes são mais culpáveis do que os pecadores mencionados por São Cipriano (Cipriano. De Lapsis. 27), que renunciam ao mundo da boca para fora e não de coração, pois, longe de renunciar às obras de Satã, mesmo em palavras, eles declaram abertamente que estão prontos para viver até o fim no adultério.
Se houver alguma objeção que eles gostariam de levantar e que eu omiti ao longo dessa controvérsia, eu creio que isso pouco vale a pena ser refutado; seja por que ela era estranha ao assunto, seja por que ela oferecia uma solução ao alcance de todo mundo.