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Filotéia
Nesta obra, São Francisco de Sales se dirige a Filoteia, que significa uma alma que "ama a Deus" e é para essas almas que escreve. O livro procura ajudar Filoteia a percorrer com resolução, empenho, confiança e ardor, o caminho da vida devota, apresentando-lhe doutrina eclesial as virtudes necessárias, as ciladas do inimigo e os benefícios da solidão.
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Parte IV Capítulo II
Por mais bela e suave que seja a luz, ela nos deslumbra os olhos, se estivermos muito tempo na escuridão; e, por mais honestos e amáveis que sejam os habitantes dum lugar em que se é estranho, não se deixa de estar no começo um pouco embaraçado. Poderá, pois, acontecer, Filotéia, que esta grande separação das loucas vaidades do mundo e esta mudança de vida choquem o teu coração com um certo ressentimento de tristeza. Mas tem um pouco de paciência, eu te peço; tudo isso não é nada e passará com o tempo; foi a novidade que causou um pouco de admiração; espera e bem depressa voltarão as consolações. Tens saudades talvez da glória dos aplausos que os loucos motejadores do mundo davam as tuas vaidades; mas, ó meu Deus, queres perder a glória com que o Deus da verdade te coroará eternamente?27
Parte IV Capítulo I
Assim que a tua devoção se for tornando conhecida no mundo, maledicências e adulações te causarão sérias dificuldades de praticá-la. Os libertinos tomarão a tua mudança por um artifício de hipocrisia e dirão que alguma desilusão sofrida no mundo te levou por pirraça a recorrer a Deus. Os teus amigos, por sua vez, se apressarão a te dar avisos que supõem ser caridosos e prudentes sobre a melancolia da devoção, sobre a perda do teu bom nome no mundo, sobre o estado de tua saúde, sobre o incômodo que causas aos outros, sobre a necessidade de viver no mundo conformando-se aos outros e, sobretudo, sobre os meios que temos para salvar-nos sem tantos mistérios.26
Parte III Capítulo XLI
Ó virgens, se pretendeis casar-vos, conservai então cuidadosamente o vosso primeiro amor para a pessoa que o céu vos destinar. É uma fraude apresentar-lhe um coração que já foi possuído, usado e gasto pelo amor, em vez de um coração inteiro e sincero. Mas se, por vossa felicidade, vos sentis chamadas para as núpcias castas e virginais do Cordeiro imaculado, ah! Então conservai com toda a delicadeza de consciência todo o vosso amor para este divino Esposo, que, sendo a própria pureza, nada ama mais do que a pureza e a quem são devidas todas as primícias, máxime as do arriar.25
Parte III Capítulo XL
São Paulo instrui a todos os Prelados na pessoa do seu Timóteo, dizendo: Honra as viúvas que são deveras viúvas. Ora, para ser verdadeiramente viúva requerem-se estas coisas: 1. ° Que não somente a viúva seja viúva de corpo, mas também de coração, isto é, que seja decidida, com inviolável resolução, a conservar-se no estado duma casta viuvez. Porque as viúvas, que não o são senão enquanto esperam a ocasião de se tornar a casar, não estão separadas dos homens senão segundo o deleite do corpo, mas já estão juntas com eles segundo a vontade do coração. E se a verdadeira viúva, para se confirmar no estado de viuvez, quer oferecer a Deus em voto o seu corpo e a sua castidade, acrescentará um grande ornamento e atavio à sua viuvez, e porá em grande segurança a sua resolução: porque, vendo que depois do voto já não está na sua mão o poder deixar a sua castidade, sem deixar o Paraíso, será tão zelosa e desvelada pelo seu intento, que não consentirá nem por um só instante em seu coração os ma is simples pensamentos de casamento: de sorte que este sagrado voto porá uma forte barreira entre a sua alma e toda a sorte de projetos contrários a sua resolução.24
Parte III Capítulo XXXIX
O leito conjugal deve ser imaculado, como o chama o Apóstolo, isto é, isento de desonestidades e outras torpezas profanas. Porque o santo matrimônio foi primariamente instituído no Paraíso terreal, onde até então nunca tinha havido nenhum desconcerto da concupiscência, nem coisa desonesta. Há alguma semelhança entre os deleites vergonhosos e os do comer: porque ambos dizem respeito a carne, embora os primeiros, em razão da sua veemência brutal, se chamem simplesmente carnais. Explicarei, pois, o que não posso dizer de uns pelo que direi dos outros. 1. O comer é destinado a conservar as pessoas. Ora como o comer simplesmente, para alimentar e conservar a pessoa, é uma coisa boa, santa e prescrita: assim o que se requer no matrimônio para a geração dos filhos, e multiplicação das pessoas, é uma coisa boa e muito santa, porque é o fim principal do casamento.23
Parte III Capítulo XXXVIII
O casamento é um grande sacramento, eu digo em Jesus Cristo e na Sua Igreja é honroso para todos, em todos, e em tudo, isto é, em todas as suas partes. Para todos: porque as próprias virgens o devem honrar com humildade. Em todos: porque é tão santo entre os pobres como entre os ricos. Em tudo: porque a sua origem, o seu fim, as suas vantagens, a sua forma e matéria são santas. É o viveiro do Cristianismo, que enche a terra de fiéis, para tornar completo no céu o número dos eleitos: de sorte que a conservação do bem do casamento é sobremaneira útil para a república; porque é a raiz e o manancial de todos os seus arroios. Prouvera a Deus que o Seu Filho muito amado fosse chamado para todas as bodas como o foi para as de Caná; nunca faltaria lá o vinho das consolações e das bênçãos: porque se não as há senão um pouco ao princípio, é porque, em vez de Nosso Senhor, se fez vir a elas Adônis e, em lugar de Nossa Senhora, se faz vir a Vênus. Quem quer ter cordeirinhos bonitos e malhados, como Jacob, precisa como ele de apresentar as ovelhas quando se juntam para conceber umas lindas varinhas de diversas cores; e quem quer ser bem sucedido no casamento deveria em suas bodas representar a si mesmo a santidade e dignidade deste Sacramento; mas em lugar disso dão-se aí mil abusos e excessos em passatempos, festins e palavras. Não é pois de admirar que os efeitos sejam desordenados. Exorto sobretudo os casados ao amor recíproco que o Espírito Santo tanto lhes recomenda na Sagrada Escritura: ó casados, não se deve dizer: amai-vos um ao outro com o amor natural, porque os casais de rolas fazem isto muito bem; nem se deve dizer: amai-vos com amor humano, porque também os pagãos praticaram esse amor; mas digo-vos, encostado ao grande Apóstolo: Maridos, amai as vossas mulheres, como Jesus Cristo ama a Sua Igreja; ó mulheres, amai os vossos maridos, como a Igreja ama o seu Salvador. Foi Deus quem levou Eva a nosso primeiro pai Adão, e lha deu por mulher; foi também Deus, meus amigos, que com a Sua mão invisível fez o nó do sagrado laço do vosso matrimônio, e que vos deu uns aos outros: por que não haveis então de amar-vos com amor todo santo, todo sagrado, todo divino?22
Parte III Capítulo XXXVII
Todos sabem que não se deve desejar nada de mal, porque o desejo de uma coisa ilícita torna o coração mau. Mas eu acrescento, Filotéia, que não se deve desejar nada que é perigoso para a alma, como bailes, jogos e outros divertimentos, honras e cargos importantes, visões e êxtases; tudo isso traz muita vaidade consigo e é sujeito a muitos perigos e ilusões. Não desejes também as coisas que ainda estão para vir num futuro remoto, como fazem muitos, dissipando e cansando inutilmente o coração e expondo-o continuamente a muitas inquietações. Se um jovem ambiciona ardentemente ocupar um cargo precocemente, de que lhe poderá servir este desejo? Se uma mulher casada deseja entrar no convento: a que propósito? Se pretendo comprar a propriedade de outrem antes que ele queira ma ceder, não é isto perder o meu tempo? Se, estando doente, desejo pregar, dizer Missa ou visitar enfermos ou fazer exercícios dos que tem saúde, não são estes desejos vãos, posto que nada disso está em meu poder? Entretanto estes desejos inúteis ocupam o lugar doutros que deveria ter e que Deus manda que se efetuem, como os de ser paciente, mortificado, obediente e manso em meus sofrimentos. Mas em geral os nossos desejos se parecem com os das mulheres grávidas, que no outono desejam cerejas frescas e uvas novas na primavera.21
Parte III Capítulo XXXVI
Raro é achar homens verdadeiramente razoáveis, porque só somos homens pela razão e o amor-próprio a perturba muitas vezes e insensivelmente nos leva a praticar injustiças que, por menores que sejam, não deixam de ser muito perigosas. Assemelham-se as raposinhas de que se fala nos Cânticos, das quais não se faz caso por serem muito pequenas, e, por isso, elas causam grande dano a vinha, em vista de sua quantidade. Reflete um pouco e julga se os pontos que vou mencionar não são verdadeiras injustiças. Nós costumamos acusar o próximo pelas menores faltas por ele cometidas c a nós mesmos nos escusamos de outras muito grandes. Queremos vender muito caro e comprar o mais barato possível. Queremos que se faça injustiça a outros e que se façam graças a nós. Queremos que interpretem as nossas palavras benevolamente e com o que nos dizem somos suscetíveis em excesso. Queremos que o vizinho nos ceda a sua propriedade e não é mais justo que a conserve, se o quiser? Agastamo-nos com ele se não no-la quer vender, e não tem ele muito mais razão de se zangar conosco, por o estarmos incomodando?20