Amados irmãos em Cristo, Salve Maria Puríssima!
É com grande alegria que neste tempo de preparação para a vinda do Senhor, trago-lhes estes sermões para o Natal de São João de Ávila nos quais desentranham o sentido profundo do nascimento de Cristo que, “sem falar, nos ensina e, inerme, nos resgata”. Sem dúvidas uma preciosidade para nosso crescimento espiritual, espero que lhes sejam muito útil.
Sumário
Breve Biografia de São João de Ávila
A Vinda de Cristo à Alma. Como Preparar-se?
Este sermão foi pregado no 3ª Domingo do Advento.
- Exórdio: o pregador, outro João Batista
- Cristo vem morar na nossa alma
- Cristo traz consigo o seu reino…
- …Reino de alegria e de paz
- Deus pede que lhe abramos a porta
- Deus e o demônio não podem morar juntos
- Como preparar-se?
- Um coração de carne
- O desejo de todos os povos
Sinais para Encontrar a Deus
Este sermão é próprio para o Natal. Foi pregado no dia de Santo Estevão (26 de Dezembro).
- Dia de regozijo e alegria
- Sinais para encontrar a Deus
- A honra e a majestade de Deus
- A mansidão e a misericórdia de Deus
- Envolto em panos, vestido de pecador
- A serpente de bronze
- À procura de pousada
- A Virgem e o Menino
- Por que a manjedoura?
- Para me curar
- Por que choras, Menino bom?
- Começamos uma vida nova
- Maria coloca o Menino na manjedoura para entregá-lo a ti
- Nas pegadas do Menino
Procurar e Encontrar Cristo
Este sermão é próprio para Epifania.
- Dor e alegria
- A vocação dos magos
- Procuremos o Senhor
- Procuremos com decisão
- Os que não acabaram
- Os sensuais e os medrosos
- A inquietação de Herodes
- A linguagem da estrela
- Adorar o Deus-Menino
- Oferecer-lhe o nosso dom
Quem foi São João de Ávila?
Nasceu em 1499. Contemporâneo de homens como São Thomas More, Lutero, Erasmo de Rotterdam e Calvino, participou ativamente na reforma da Igreja empreendida pelo Concílio de Trento: pregava, confessava, mantinha um constante apostolado epistolar, reunia discípulos, fundava colégios para a formação de seminaristas e para crianças pobres, aconselhava bispos e dava orientação espiritual personalizada a almas portentosas como Santa Teresa de Ávila, São Pedro de Alcântara, São João de Deus e São Francisco de Borja, ajudando-as a lutar pela santidade e a descobrir a concreta vontade de Deus para as suas vidas. Enfim, era um sacerdote incansável, cuja exclusiva ambição constituiu em servir a Igreja num momento especialmente crítico da sua história.
Filho do Renascimento, compartilhava os anseios gerais de uma renovação cristã e humanística, naquele clima de verdadeira fome do Evangelho e dos clássicos da Antiguidade: basta mencionar que lia assiduamente tanto o controvertido Erasmo do Elogio da loucura como Tomás de Kempis, o autor da Imitação de Cristo, obra que traduziu para o castelhano.
Essa atitude, demasiado aberta para a mentalidade de alguns dos seus conterrâneos, não deixou de causar-lhe problemas. Em 1531, já ordenado, chegou a ser preso pela Inquisição Real, em virtude de umas palavras que proferira, suscetíveis de ser mal interpretadas, e de umas reuniões em que se dedicava a rezar com alguns amigos. Só dois anos depois é que foi absolvido e liberado.
Sem dúvida, essa prisão se deveu também, entre outros fatores, à sua ascendência judaica. Já o seu pai se fizera batizar. mas, naquela altura e num país que buscava tão zelosamente uma identidade cultural e de pensamento que assegurasse a recém-constituída unidade nacional, quem pertencesse ao número dos cristãos-novos carregava necessariamente um estigma (1). E esse estigma iria marcá-lo, aos olhos de alguns, por toda a vida e até depois da morte.
O brilhantismo com que estudou letras, filosofia e teologia granjeou-lhe o título de Mestre. ordenado em 1526, e tendo repartido os seus bens pelos pobres, Mestre João de Ávila desejou ser missionário e levar o cristianismo às longínquas terras recém-descobertas da América. No entanto, a pedido do arcebispo de Sevilha, permaneceu na Península, onde não lhe faltaram oportunidades de empregar os seus talentos para a conversão dos seus coetâneos.
Nessa Espanha do Siglo de Oro – o período de auge da ciência e das artes, em que fervilhavam poetas e escritores como Garcilaso, Cervantes, Lope de Vega e Caderón -, não faltavam também os grandes oradores. João de Ávila logo se tornou um dos maiores. À sua clarividência doutrinal, somavam-se uma imediata empatia com todo e qualquer público e uma eloquência que entrelaçava citações bíblicas com provérbios populares, considerações teológicas com referências às realidades mais comezinhas.
Percorria o sul da Espanha com o coração devorado por ânsias apostólicas. Os fiéis, por sua vez, madrugavam para conseguir um lugar nas igrejas onde o entusiasmado pregador ia falar, e depois ouviam-no durante mais de duas horas, sem que ninguém sentisse a passagem do tempo. Ao término dos seus sermões, convidava quantos o desejassem a confessar-se, e eram tantos os penitentes que permanecia no confessionário até tarde.
O seu único desejo era converter as almas.
“Pregar, dizia, não é passar uma hora discorrendo sobre Deus, mas fazer que aquele que veio como um demônio saia como um anjo”
Por isso, preparava os sermões em oração, de joelhos, diante de um crucifixo. Ensinava os outros pregadores a estudar menos e rezar mais, pois sabia na prática que é no relacionamento com Deus que se aprende a verdadeira pregação. Certa vez, um teólogo perguntou-lhe o que fazer para aperfeiçoar-se na oratória, e João de Ávila foi categórico:
“Amar muito a Nosso Senhor”
Tanto é verdade, que levava para o púlpito muito poucas anotações. Falava da abundância do coração, colhendo da sua intensa vida de união com Cristo o que os ouvintes tinham necessidade de escutar. A espontaneidade das exclamações, a pertinência das improvisações e os raciocínios simples mas tocantes faziam que todos voltassem para casa dispostos a mudar de vida e a crescer espiritualmente.
Entre os muitos que se converteram ao ouvirem os seus sermões, contavam-se prostitutas e gente da nobreza, monges, sacerdotes e prelados cuja fé tinha esfriado, simples cristãos e até muçulmanos: qualquer um com quem deparasse nas suas andanças por centenas de cidades e povoados. As suas palavras eram a um tempo cheias de modéstia e de veemência, e “nunca pregou um sermão sem que várias almas se convertessem a Deus“, conforme registra o seu processo de beatificação. Depois de cada pregação, os fiéis queriam beijar-lhe as vestes, as mãos e os pés, e não poucos se tornavam seus discípulos.
Os seus sermões chegaram até nós graças unicamente ao empenho de admiradores, que tomavam notas da pregação, transformavam-na em texto e a submetiam à aprovação do pregador. O calor da argumentação e os vaivéns de uma exposição apaixonada mantém-se nessas peças lietrárias e lhes conferem uma vivacidade inexistente nas linhas buriladas de outros pregadores famosos como Bossuet ou Vieira.
Os três sermões de Natal aqui publicados (2) exemplificam o ardor dessa palavra a serviço de Cristo. Como frisa o próprio santo no primeiro sermão selecionado, o seu papel é o de João Batista: apontar a vinda do Messias e recomendar a todos, sem exceção, que se preparem para receber nas suas vidas o Deus humanado. Falando da parte de Deus, o pregador só tem em vista comunicar essa mensagem transformadora: o Todo-poderoso faz-se criança para para conquistar a confiança dos homens, para habitar nos corações.
Além de orador sacro, João de Ávila tornou-se conhecido também pelos seus tratados sobre o sacerdócio, sobre o amor de Deus, e, sobretudo, pelo Audi, filia, livro que inicialmente se destinava a ser um guia para a luta ascética, escrito para uso de uma jovem a quem aconselhava espiritualmente. Essas obras, e outras menores, obtiveram êxito durante a sua vida e foram reeditadas muitas vezes depois da sua morte.
Toda essa “performance”, no entanto, não impediu que João de Ávila acabasse por ser esquecido durante séculos. Apesar da sua patente vida de entrega a Deus e ao próximo, somente foi beatificado no final do século XIX, em 1894, por Leão XII, e canonizado em 1970, por Paulo VI. Mas há pelo menos duas razões que explicam essa – por assim dizer – “injustiça”.
O primeiro fato a salientar é que João de Ávila foi obscurecido por gigantes contemporâneos e conterrâneos seus, como São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila e Santo Inácio de Loyola, cuja projeção ultrapassou rapidamente os limites da própria Espanha. Por outro lado, o seu pensamento não é tão pronunciado como o desses luminares, mesmo porque Deus lhe reservara uma missão diferente, voltada muito mais para a gente comum do povo do que para as almas consagradas a Deus em alguma ordem religiosa.
Destaquemos também que ele não fundou nenhum instituição nem pretendeu definir uma espiritualidade apoiada na sua experiência ascética e mística. Vários dos seus discípulos, com os quais poderia ter empreendido uma iniciativa desse gênero, foram por ele mesmo ajudados a ingressar na Companhia de Jesus, nascida em 1537. O próprio João de Ávila pensou em abandonar a condição de clérigo secular e tornar-se jesuíta, projeto que a sua debilitada saúde inviabilizou. Sem um grupo de filhos da sua vida interior que promovesse a sua canonização, foi natural que o nome do “apóstolo da Andaluzia” se perdesse no meio dos de tantos outros bons sacerdotes do passado.
Todavia, essa modesta posição no hagiológio só aumenta ante os nossos olhos os méritos de São João de Ávila. Na verdade, ele seguiu o exemplo dos corações magnânimos, procurando “diminuir” para que Cristo “crescesse”, ocultar-se para que outros brilhassem, fazer-se transparente para que apenas o seu ideal fosse transmitido. Buscou ardentemente a santidade, mas não o brilho da santidade; não fez questão de deixar “pistas” que permitissem encontrá-lo e elevá-lo aos altares. Assim, deixou as mãos livres à Providência Divina… que não tem pressas desnecessárias, mas nunca permite que a verdade se perca.
João de Ávila passou os últimos dezesseis anos da sua vida gravemente doente. Quase cego, morreu com sessenta e nove anos, em 10 de Maio de 1569, na cidadezinha de Montilla. E aí surgiu um sugestivo provérbio, que reflete o quanto esse sacerdote foi amado pelo seu povo. Entre os montilhanos, quando alguém é repreendido por um defeito ou um erro que tenha cometido, facilmente replica:
“Olha só quem está falando! Por acaso você é o Mestre Ávila?”
Referências
(1) Sobre este tema controvertido, veja-se João Bernardino Gonzaga, A Inquisição em seu mundo, 7ª ed., Saraiva, São Paulo 1994.
(2) Publicados pela primeira vez em 1596 por Juan Díaz, em Madrid. Utilizamos para a tradução o texto das Obras completas del Beato Juan de ávila, ol. II, BAC, Madrid, 1953. Para facilitar a leitura, fizeram-se pequenos cortes e explicitaram-se alguns vocativos.
(Ávila, São João de. O Mistério do Natal. Prefácio e tradução de Gabriel Perissé. Quadrante 1998, 2ª ed., p. 3-7)