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Tratado da Vida Espiritual

São Vincente Ferrer

São Vincente Ferrer
(1350-1419)

Compre o livro Tratado da Vida Espiritual, de São Vicente Ferrer na Editora Rumo à Santidade
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Sumário
Prólogo
Da pobreza
Do silêncio
Da pureza de coração e mortificação de paixões e sentidos
Mortificação da própria vontade
Mortificação do amor-próprio
A alma, purificada, une-se a Deus pela contemplação
Síntese
Do diretor espiritual
Da obediência na observância da regra
Modo de regular o corpo na comida e bebida
Da bebida
Da postura interior e exterior na mesa
Modo de preservar na sobriedade e na abstinência
Ordem do sonho e nas vigílias, no estudo e na oração
Do estudo
Na cela, nas Matinas e demais Horas
Do modo de pregar
Alguns remédios contra as tentações que provêm por sugestões do demônio
Alguns remédios contra aqueles que semeiam tais tentações com sua doutrina
Razões pelas quais se move o coração à maior perfeição
Eficácia destas razões
Conselhos para escapar dos laços do diabo
Sete afetos para com Deus, para si mesmo e para com o próximo
Quinze perfeições necessárias para o que serve a Deus na vida espiritual
Cinco ternários em que tem que exercitar-se
APÊNDICE

Prólogo

Neste tratado colocarei somente documentos saudáveis, tirados das sentenças dos doutores. Não aduzirei testemunho algum da Sagrada Escritura ou de algum doutor para prova o que digo ou para persuadi-lo, já porque intento a brevidade, já porque dirijo minha palavra exclusivamente a quem deseja cumprir, com grande afeto, o que deve se cumprir segundo Deus. Por isso, tampouco provo o que digo, pois intento instruir ao humilde, não discutir com arrogantes e nem servir às controvérsias.

Quem queira, pois, ser útil às almas de seus próximos e edificá-los com palavras, procure primeiro ter em si mesmo o que terá de ensinar aos demais, pois, do contrário, aproveitará pouco. Porque sua palavra será ineficaz se antes os homens não descubram em ti o que ensina, e ainda coisas maiores.

Da pobreza

Convém, primeiramente, que despreze todo o terreno e o repute como esterco, servindo-se dele estritamente para a necessidade. Esta necessidade há de reduzi-la a poucas coisas, ainda sofrendo algum incômodo por amor da pobreza, como alguém disse:

“Sei que não é louvável ser pobre, senão na pobreza de amar a pobreza, e aguentar com gozo e alegria a escassez da mesma, por Cristo. Porém, que pena! Muitos se gloriam só do nome da pobreza. Porém em que sentido? Contanto que nada lhes falte. Chamam-se amigos da senhora pobreza, porém fogem, enquanto podem, dos amigos e companheiros da pobreza, isto é, da fome, do frio, da sede, do desprezo e da abjeção”

Não foi assim nosso Beatíssimo Pai Domingos, nem tampouco Aquele que, sendo rico, se fez pobre por nós (2Cor 8,9), nem todos os Apóstolos que, como sabes, nos ensinaram com a palavra e com o exemplo.

Nada peças a outro, a não ser por necessidade, nem consintas com quem queira dar-te algo, ainda que seja com muitos rogos, inclusive com o pretexto de que o repartas aos pobres. Porque, creia-me, nisto o doador e todos os que o cercam se edificaram muito, e por ele poderás induzir mais facilmente ao menosprezo do mundo e inclinar-nos ao socorro de outros pobres.

Entendo por necessidade para ti um alimento pouco e simples, e um vestido vil, assim como o calçado, segundo a necessidade do momento presente. Não chamo necessidade a carência de livros, sob cujo véu frequentemente se cobre uma grande ganância. Na Ordem se encontram livros comuns e bons.

E quem queira conhecer claramente o afeto do que foi dito, procure antes de mais nada cumpri-lo com coração humilde; do contrário, se quisesse contradizer com soberbo coração, ficará fora. Porque aos humildes Cristo, Mestre de humildade, manifesta-lhes a verdade, que permanece oculta aos soberbos (Mt 11, 25-29).

Do silêncio

Achado, pois, o fundamento estável da pobreza pelo arquiteto Cristo, que, estando no cume do monte, disse: Bem-aventurados os pobres de espírito (Mt 5,3), etc., prepare-se virilmente para refrear a língua, para que a língua, que dever falar coisas úteis, abstenha-se por completo de coisas ociosas e inúteis. E para melhor restringi-la, apenas fale se é interrogado. Digo, interrogado sobre coisa necessária e útil. Pois uma pergunta inútil deve contestá-la com o silêncio.

Porém, se alguém lhe disser palavras engraçadas ou brincalhonas, para parecer chato aos demais, poderás mostrar certa hilaridade e benignidade no rosto, porém, em nenhum caso falar, ainda quando os presentes, quaisquer que sejam, pareçam que murmuram ou que se entristecem por isso, ou que profiram palavras difamadoras, taxando-o de antissocial, de supersticioso ou sério. Deve, melhor, orar por eles mais atentamente, para que Deus tire de seus corações toda a desordem.

Não obstante, poderá falar alguma vez, se se apresenta uma necessidade ou por caridade pelo próximo, ou solicitado pela obediência. Mas então faça isso muito premeditadamente e com poucas palavras, com voz humilde e baixa. O mesmo deve fazer também quanto tem que responder a alguém sobre qualquer coisa.

“Silencie algum tempo para edificação do próximo, para que calando, aprenda como tem que falar utilmente quando chegar o momento. Porém rogando a Deus que supra por si mesmo, inspirando interiormente no coração de seus irmãos aquilo que você não falou, enquanto domava sua língua no silêncio” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c. 58 ).

Da pureza de coração e mortificação de paixões e sentidos

Extirpadas, pois, pela pobreza voluntária e pelo silêncio, as muitas preocupações que sufocam as sementes das virtudes, semeadas com muita frequência no campo do coração por inspiração divina, e que impedem seu desenvolvimento, resta-te trabalhar algo mais no cuidado daquelas virtudes que te levaram a uma pureza de coração pela qual os olhos interiores, segundo a palavra do Salvador (Mt 5,8), abram-se à contemplação divina, pela que terás descanso e paz para que Aquele que tem sua morada na paz (Sl 75,3), digne-se habitar também em ti.

Não entendas que falo agora daquela pureza que limpa ao homem só da imundície de pensamentos lascivos (libidinoso, impudico, carnal), senão que falo melhor daquela limpeza e pureza de coração que a afasta, na medida do possível nesta vida, todos os pensamentos inúteis, de forma que ao homem não lhe goste pensar outra coisa senão de Deus ou para Deus.

Mortificação da própria vontade

Para alcançar esta pureza celestial, por assim dizer, é mais divina, pois quem se chega a Deus se faz por um mesmo espírito com Ele (I Cor 6,17), são necessárias estas coisas: Antes que nada, trabalha com todas tuas forças em negar-te a ti mesmo, segundo o preceito do Salvador (Mt 16,24). E isto entendo-o assim: que mortifiques e submeta a sua vontade e a contradigas em tudo, abraçando com benignidade a vontade dos demais, sempre que seja lícita e honesta.

Por norma geral, em qualquer coisa temporal, pela que se serva às necessidades corporais, não sigas nunca tua própria vontade, quando vires que é contrária à do outro, ainda que pareça exagerada segundo o juízo da razão. Deves, pois, sofrer com gosto qualquer incômodo para conservar a tranquilidade interior, que se altera por semelhantes contradições, quando o homem, por apega-se a seu juízo e querendo cumprir sua vontade, disputa com os demais com palavras e pensamentos.

E não só nas coisas temporais, senão também nas espirituais ou ordenadas ao espiritual, cumpre melhor a vontade do outro que a tua (enquanto seja boa), ainda que a tua pareça mais perfeita, porque, disputando com os demais, terás maior detrimento na diminuição da humildade, da tranquilidade e da paz, ante o proveito que pode provir-te em qualquer exercício da virtude, se segues tua vontade em contradição com a do outro.

Porém isto há de entendê-lo acerca daqueles que te são familiares e companheiros nos espirituais exercícios e que desejam a perfeição da virtude, mas não daqueles que chamam bem ao mal e mau ao bem (Is 5,20) e que procuram julgar e esquadrinhar as palavras e obras dos demais, antes que corrigir seus defeitos. Não digo, pois, que deves aceitar o juízo desses em coisas espirituais. Porém nas temporais deves cumprir e por em prática sempre a vontade dos demais, sejam os que forem, antes que a tua.

Agora bem, se naquele que, segundo Deus, deseja fazer, seja para teu proveito, ou para a honra de Deus ou utilidade do próximo, vês resistência, ou outra coisa que o impeça totalmente, sejam superiores, iguais ou inferiores, não te entretenhas em discussões, senão retira-te dentro de ti e, recolhido em teu Deus, diga-lhe: Senhor padeço violência, responda por mim (Is 38,14). Não te entristeças por ele, porque nada pode que não seja finalmente para teu bem e mais conveniente para os demais. Digo-te mais, que ainda que não o vejas no presente, verás ao fim que aquilo que pensavas que era algo com o que te colocavam impedimento, tem sido para ti uma ajuda para alcançar teu propósito. Ainda que poderia dar-te exemplos recolhidos do jardim da Sagrada Escritura, como o de José e muitos outros, não quero proceder contra o que prometi. Por tanto, acredite no experto, que é assim.

“Também, se no que desejas fazer, segundo Deus, veja-te impedido por permissão divina, seja por enfermidade ou por qualquer outra contingência, não te entristeças por isso, senão suporta tudo com tranquilidade de espírito, encomendando-se por inteiro Àquele que sabe melhor que tu o que te convém e o que te eleva continuamente até Ele, contanto que te entregues a Ele sem reservas, ainda que talvez tu não o vejas. A isto, pois, seja encaminhado todo seu esforço, a ser dono de si mediante a paz e tranquilidade do coração, e que nenhum sucesso te aflija, a não ser o pecado próprio ou alheio, ou aquilo que induz ao pecado” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c. 20 ).

Por tanto, não te entristeça qualquer acontecimento fortuito, nem te irrite o estímulo de indignação contra o defeito do outro, senão tenha afeto de misericórdia e compaixão para com todos, pensando sempre que tu farias pior se Cristo Jesus não te conservasse com sua graça.

Mortificação do amor-próprio

Prepara-te, ademais, para sofrer, pelo nome de Cristo, todos os opróbrios, todas as coisas ásperas e adversidades. Todo desejo ou pensamento que te surgir, qualquer apetite de grandeza, sob qualquer pretexto, mortifica-o logo no seu começo, como a cabeça do dragão infernal, como o cautério que é o báculo da Cruz, trazendo à tua memória a humildade e a duríssima Paixão de Cristo, o qual, fugindo de quem O queriam fazer rei (Jo 6,15), abraçou voluntariamente a Cruz, menosprezando toda ignomínia (Hb 12,2). Ouça com horror todo louvor humano, como se fosse um mortífero veneno e goza do desprezo, considera-te deveras e de coração como quem merece ser desprezado por todos.

“Contempla continuamente teus defeitos e pecados, agravando-os o quanto possas. Os defeitos dos demais, extirpa-os com a espada, como se não os visse e, se os ver, procura diminui-los e desculpá-los, compadecendo-te e ajudando a quem os tem, no que possas. Aparta teus olhos de tua mente e os de teu corpo da conduta dos demais, a fim de que possas ver-te a ti mesmo à luz do rosto de Deus. Examina-te continuamente a ti mesmo e julga-te sempre sem dissimulação. Em todas tuas obras, em todas tuas palavras, em todos teus pensamentos, em toda leitura, repreenda-te a ti mesmo e busca encontrar sempre em ti matéria de compunção, pensando que o bem que fazes não está perfeitamente feito, nem com o ferver que deveria fazê-lo; melhor, manchado com muitas negligências, de maneira que, com razão, todas tuas obras boas devem ser comparadas com um pano imundo (Is 64,5)” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c. 16).

Repreenda-te, pois, continuamente a ti mesmo. E não permitas passar por alto em ti, sem severa correção, não só as negligências em palavras e obras, senão também nos mesmos pensamentos, e não digo só os maus, senão também os inúteis, repreendendo-te gravemente a toda hora na presença de teu Deus, clamando pelos pecados cometidos e considerando-te diante de Deus o mais vil e miserável por causa de teus pecados que qualquer outro pecador, por qualquer outro pecado, e digno de ser castigado e excluído dos gozos celestiais, se Deus fizesse contigo segundo sua justiça e não segundo sua misericórdia, havendo-te regalado com tantas graças, sobre muitos outros, às quais tu tens correspondido com ingratidão.

“Considera-te também diligentemente e medita com muita frequência com vivo sentimento de temor, que toda aptidão para o bem e toda graça, assim como toda solicitude para adquirir as virtudes, não as tem por ti mesmo senão que te deu Cristo, somente por misericórdia e, se quisesse, as poderia dar a qualquer apóstata, deixando-te a ti abandonado lambuzado na lama e no lago da miséria (Sl 39,3). Pensa, ainda, e procura convencer-te, persuadindo-se, que não há nenhum apóstata, ou qualquer pecador, que não houvesse servido melhor a seu Deus que tu, e que não houvesse reconhecido melhor os benefícios de Deus que tu, se houvesse recebido as graças que tu tens recebido, só por gratuita bondade divina e não por teus próprios méritos. Pelo qual, podes julgar-te, sem engano, como o mais vil e menor de todos os homens e temer com fundamento que, por tua ingratidão, Cristo te lance fora de sua presença” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c. 16 ).

Entretanto, não te digo que por isso terá de pensar que estás fora da graça de Deus, nem que esteja em pecado mortal, ainda que outros pecadores tenham inumeráveis pecados mortais. Isso está oculto para nós, não tanto porque o juízo humano é falho senão pela repentina contrição e a prévia infusão da graça divina.

Quando, humilhando-se a si mesmo, comparas-te com os demais pecadores, não convém que digas, em especial, os seus pecados em detalhe, senão de forma geral, comparando seus pecados com tua ingratidão. Na verdade, se queres considerar seus pecados em especial, “podes transformá-los por semelhança nos teus, censurando em tua consciência: Aquele é homicida, e eu, miserável, quantas vezes matei minha alma! Aquele é fornicador e adúltero, e eu todo o dia estou fornicando e adulterando, afastando meus olhos de Deus e entregando-me às sugestões diabólicas!
E assim nos demais” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c. 16).

Porém, se notas que o diabo quer te induzir por tais repressões ao desespero, então deixa tais repressões e abre-te à esperança, considerando a bondade e clemência de teu Deus, que com tantos benefícios te proveu, sem duvidar de que quer aperfeiçoar em ti a obra já começada (Fl 1,6). De ordinário não há que ter este desespero no homem espiritual, que experimentou certo conhecimento de Deus. Por tanto, há de cuidar e vigiar com todo interesse esta censura. Porque poderia suceder, e sucede muitas vezes, no principiante esta situação, especialmente naquele ao que Deus livrou de muitos males nos quais estava envolvido.

A alma, purificada, une-se a Deus pela contemplação

“De tudo isto que tratei, iniciará em ti aquela virtude que é mãe, origem e guarda das virtudes, a saber, a humildade, que abre os olhos interiores para ver a Deus, purgando o coração humano de todo pensamento supérfluo. Pois enquanto o homem se adentra em sua pequenez, rebaixando-se a si mesmo, repreendendo-se, detestando-se, considerando seu nada, menosprezando- se intensamente e outras coisas semelhantes, pensando que tudo isto é verdade, enquanto pensa e se ocupa nestas coisas como em empresas próprias, todo outro pensamento se desvanece como inútil.

Assim, à medida que expulsa de si mesmo tudo o que havia ouvido, o que havia visto e feito temporalmente, abandonando ao esquecimento, começa a voltar em si e se robustece de maneira admirável, e começa a aproximar-se da justiça original e da pureza celestial. E assim, quando volta para si, alarga o olho da contemplação e monta em si mesmo a escada pela qual sobe para contemplar o espírito angélico e o divino. Dessa contemplação o ânimo se inflama com os bens celestiais e percebe como distantes e como um nada todo o que é temporal.

Por aqui inicie arder na alma aquela perfeita caridade que, como fogo, consome todos os resíduos dos vícios. Assim a caridade ocupa toda a alma, porque já não há lugar por onde entre a vaidade. E tudo o que pensa, o que fala ou o que faz, tudo provém do ditado da caridade” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c. 16).

Então já podes pregar com segurança e sem respeito aos demais, sem perigo de vanglória. Porque, como disse, não pode entrar nenhuma espécie de vaidade onde a caridade ocupou totalmente. Acaso pode ocupar-se já de comodidades temporais quem as olha como esterco? (Fl 3,8). Poderia deslizar-se em seu ânimo o apetite de louvor, quando se vê a si mesmo diante de Deus como lixo muito vil, miserável e abominável, propenso a todo pecado, a não ser que o mesmo Senhor, com sua benignidade, estenda-lhe sua mão de criador para conservá-lo? Como poderia orgulhar-se de qualquer obra boa, quem vê mais claro que a luz que não de bom pode fazer sem que continuamente, de hora em hora, a força divina, em certo modo, o está empurrando e apressando?

“Como poderá atribuir-se coisa alguma, como se proviesse de si mesmo, quem comprovou, não digo cem senão mil vezes, sua impotência para todas as obras, grandes e pequenas; e quem tantas vezes comprovou que não pôde quando quis, e que – por assim dizer – quando não quis e nem preparou, nem pensava nisso, movido repentinamente por Deus, foi conduzido com fervor admirável a fazer aquelas obras que antes, com todo seu esforço, não podia fazer? A verdade, se Deus permite que tal impotência domine no homem por tanto tempo, é para que o homem aprenda a humilhar-se e nunca se vanglorie, senão que atribua a Deus todo bem, não só com os lábios, como de rotina, senão do fundo de seu coração” (Lodulfo de Saxonia, Vita Christi, I, c. 16)

Como quem, doutrinado por sua própria experiência, vê mais claro que a luz, que não só não pode fazer uma obra boa, nem sequer dizer “Senhor Jesus”, se não é pelo Espírito Santo (Jn 15,5), das entranhas da alma, confesse a Deus, dizendo: Senhor, tens feito em nós todas nossas obras (Is 26,12), proclame com o Salmista: Não a nós, Senhor, não a nós, senão a teu nome toda a glória (Sl 113B,1).

Por tanto, não haverá o que temer para a tal vanglória, quando a verdadeira glória de Deus e o cuidado das almas ocupam totalmente o coração.

Síntese

Até aqui tratei sumariamente e pus brevemente aquilo que é necessário para o homem no que tange à perfeição de sua vida, se quer, sem nenhum perigo de sua parte, ser útil procurando a salvação das almas. Isto poderia bastar para o varão ilustrado e de alto entendimento, ou que tivesse amplo exercício nas obras espirituais, porque de tudo o que expus brevemente, como princípios da vida perfeita, poderiam tirar todos os demais exercícios de atos mais perfeitos. Pois guardando exatamente as três coisas que disse, a saber, a pobreza voluntária, o silêncio, e o exercício interior da mente, o homem julgaria facilmente tudo o que tem que fazer a respeito de todos os demais atos externos. Entretanto, como nem todos podem compreender com facilidade o que lhes disse brevemente, insistiremos algo mais detalhadamente acerca dos atos particulares das virtudes.

Do diretor espiritual

Há que saber que o homem que tem um instrutor por cujo conselho te dirige e cuja obediência siga em todos os seus atos, pequenos e grandes, poderá chegar mais facilmente e em tempo mais breve à perfeição, que se quisesse aperfeiçoar-se a si mesmo, ainda que tenha um entendimento muito agudo e tenha livros nos quais se trata da estrutura de todas as virtudes. Mais ainda, digo que Cristo nunca outorgará sua graça, sem a qual nada podemos (Jn 5,15), se não tem a alguém que lhe possa instruir e dirigir, e o menospreze, ou não procura abraçar a orientação do outro, crendo que se basta a si mesmo, e que por si mesmo pode investigar e encontrar perfeitamente tudo o que lhe é útil para a salvação.

Este caminho da obediência é caminho régio que leva aos homens sem tropeçar ao cume da escada na qual o Senhor está apoiado (Gn 28,12-13). É o caminho que seguiram todos os santos padres do deserto e, em geral, todos quantos alcançaram a perfeição, em pouco tempo, sempre por este caminho, a não ser que Deus instruísse a alguns por si mesmo, por um privilégio de graça singular, quando lhes faltava ou não encontravam quem os instruísse de fora. Porque então a piedade divina supre por si mesmo o que não se pode encontrar fora, quando se recorre a Deus com coração humilde e fervoroso.

Mais, em efeito, neste tempo – miseráveis de nós – não se encontra quase ninguém que instrua aos demais na vida de perfeição. E mais, se alguém quer entregar-se a Deus, encontrará a muito que o afastem, e quase ninguém que lhe ajude. Pelo que é conveniente que o homem recorra a Deus de todo coração e lhe peça com insistência de orações e com humildade de coração ser instruído por Ele, para que lhe receba benignamente como a um órfão sem pai, pois Deus não quer que ninguém pereça senão que todos cheguem ao conhecimento da verdade (I Tm 2,4).

Portanto, a ti dirijo minha palavra, que com grande afeto de coração desejas encontrar a Deus e aspiras à perfeição, com o fim de ser útil às almas de todos. A ti dirijo minha palavra, que te aproximas de Deus com coração simples e sem duplicidade e quer penetrar no íntimo das virtudes, e que pelo caminho da humildade desejas chegar à glória da majestade.

Da obediência na observância da regra

Postos os fundamentos primários, a saber, a pobreza e o silêncio, apronte-se o atleta de Cristo para seguir em tudo e por tudo, no possível e de maneira inquebrantável, o caminho e a norma da obediência. Isto é, a Regra, as Constituições e Ordenações, as Rubricas dos Ordinários e de todos os outros livros, em todo tempo e lugar, dentro e fora do convento: no refeitório, no dormitório, no coro; nas inclinações e prostações, levantando-se, estande de pé ou sentado, e todas as ordens dos superiores observando-as até o menor detalhe, pensando sempre nas palavras de Cris: Quem a vós ouve, a mim ouve; e quem a vós despreza, a mim despreza (Lc 10,16).

Depois trabalhe em ter sujeito o corpo totalmente ao serviço de Cristo Jesus para que todos os atos e movimentos corporais estejam compostos com toda honestidade de costumes, segundo as regras da disciplina. Porque não poderás afastar nunca ao ânimo das coisas desordenadas, se de antemão não tenhas trabalhado sujeitando teu corpo à disciplina, apartando-o não só de qualquer ato senão de qualquer movimento inconveniente e desordenado.

Modo de regular o corpo na comida e bebida

Portanto, com o objetivo de regular o corpo, primeiro há que insistir sobre a gula. Porque se não alcanças vitória sobre ela, em vão trabalharás para adquirir outras virtudes. Hás de observar, pois, a ordem seguinte.

Antes de tudo, não procures para ti nada especial, senão contenta-te com a comida que se apresenta aos irmãos em comunidade (Constitutiones primaevae O.P. I, 6; Venturini de Bergamo, Tractatus et epistolae spirituales, 5, p. 95). Aos seculares que queiram enviar-te presentes, não os aceite de modo algum, se são para ti. Se querem enviá-los ao convento, que os enviem. Não aceites, de nenhuma maneira, os convites dos frades para ir ao refeitório fora do horário das refeições, senão procure continuamente ao refeitório, observando todos os jejuns da Ordem. Isto entendo sempre assim, entretanto Cristo te conserve a saúde. Porque, se estás enfermo, então permita que te tratem segundo pede a enfermidade, não procurando nada absolutamente para si, senão recebendo tudo o que te servirem, com ação de graças.

A fim de evitar qualquer excesso na comida e na bebida, deves examinar diligentissimamente tua natureza para conhecer com quanta comida e bebida podes sustentar-te, e assim possas julgar entre o supérfluo e o necessário.

Tenha como norma geral que, ao menos, comas suficiente pão, o que pede a natureza, especialmente quando jejuas. Não creias nunca ao diabo que te aconselha que tenhas abstinência de pão. Nisto poderás experimentar o que requer a natureza, ou o que é supérfluo: se no tempo que se come duas vezes ao dia te encontras pesado e sentes certo ardor no estômago, de forma que não possas orar, escrever ou ler. De maneira geral isto sucede por haver-se excedido. E o mesmo, se sintas, depois das matinas, ou depois do jantar. Ou depois das Completas, se sentes a mesma pesadez, nos dias de jejum.

Portanto, coma bastante pão, porém de tal sorte que depois da comida estejas disposto para ler, escrever ou orar. Porém se a essas horas não estás tão disposto como nas outras horas, entretanto não sentes a pesadez que te disse, não é sinal de excesso.

Pensa, pois, no que é necessário para tua natureza, segundo o método que te indiquei, ou segundo outro, segundo te ensinará o Altíssimo, ao que se o deves pedir com simplicidade. Observa, com muita diligência, esta norma continuamente e vigie sempre que comas na mesa, e se alguma vez te excedas em algo por negligência, não deixes passar sem digna penitência.

Da bebida

Enquanto a bebida, não sei expor-te outra regra senão que, pouco a pouco te refreies bebendo menos de dia em dia, porém de forma que não padeças sede excessiva de dia ou de noite. Especialmente, quando comes sopa, podes facilmente passar com menos bebida, ainda que sempre seja necessária para a digestão da comida. Não bebas nunca fora da hora da comida, a não ser pela noite nos dias em que jejuas, e então muito temperado, ou pela fadiga do caminho, ou por qualquer outro cansaço. Beba o vinho tão aguado que lhe falte a força, e se for um vinho forte, acrescente a metade de água, ou mais, e assim, mais ou menos, segundo o que Deus te inspire (Constitutiones primaevae O.P. I, 6; G. de Saint-Thierry, Epistola ad fratres de Monte Dei (PL 180, 329)).

Da postura interior e exterior na mesa

Tocada a campainha, lavadas as mãos com toda diligência, sentado no claustro, entrarás no refeitório, quando soar o sinal. Não te reserves em bendizer ao Senhor com todas tuas forças, com modéstia na voz e no corpo. Guardando a ordem que toca, colocar-te-ás à mesa, pensando dentro de ti com coração temeroso que deves comer os pecados do povo (Os 4,8). Prepara também teu coração para a inteligência da leitura que se faz na mesa, se não há leitura, para alguma meditação espiritual, “a fim de que não esteja totalmente mergulhado no comer, senão que, tendo o corpo sua refeição, em nenhuma maneira fique defraudado o espírito” (Constitutiones primaevae O.P. I, 6; G .de Saint-Thierry, Epistola ad fratres de Monte Dei (PL 180, 329).

Posto à mesa, adapta com decência os vestidos, dobrando a capa sobre os joelhos. Estabelece contigo o pacto de não olhar de modo algum aos que estão comendo, senão olhar o que tens adiante. Ao princípio, quando te sentares, não estique a mão para cortar o pão, senão recolha-te um pouco dentro de ti mesmo, até que digas ao menos um Pai Nosso e Ave Maria, pela alma de um defunto do purgatório que mais o necessita.

Tenha como norma geral fazer com certa modéstia todo ato ou movimento do corpo. Se tens diante de ti pão, duro, branco ou negro, ou de outra classe, coma aquele que tens mais perto, e, preferencialmente, aquele que menos te inclina à sensualidade. Nunca peças algo na mesa, senão espera que o peçam os outros por ti. E se não o fizerem, tem paciência (Eclo 2,4 ; Mt 18,26).

Não tenhas os cotovelos sobre a mesa, senão só as mãos. Não tenhas as pernas abertas, nem ponhas um pé sobre o outro.

Não comas duas vezes ou outras coisas, senão aquilo que ordinariamente tem todos os demais. Qualquer manjar que alguém te dê, ainda que seja do Prior, não o comas, senão que, se podes bondosamente, escondê-lo entre os resíduos ou no prato. Adverte aqui que é costume grato a Deus desejar sempre no prato algo de sopa para Cristo-pobre. E também alguns fragmentos de pão, não as cascas. As cascas comê-las-ás, e o bom pão partido deixarás para Cristo. Não te preocupes demasiado se por ele alguns murmuram, contanto que o prelado não te mande o contrário. Geralmente, de tudo o que comeres deixe alguma parcela para Cristo-pobre, e também dos lanches menores, não dos piores, porque há quem dá a Cristo o pior, como se acostuma a dar aos porcos.

Se com um prato podes comer bastante pão, acrescenta no segundo algo de pão e deixa-o para Cristo. Se o Senhor te inspira, podes fazer algumas admiráveis abstinências, agradáveis a Deus e ignoradas pelos homens.

Se a comida está insípida por falta de sal, ou por qualquer outro motivo, não lhe acrescente sal nem outro condimento, pensando em Cristo, que quis provar do fel e do vinagre (Mt 27,34 ; Sl 68,22), senão resiste à sensualidade. Igualmente, podes deixar com dissimulação quaisquer outros molhos, que para nada servem senão para excitar a gula. Sempre que, ao fim da comida, sirvam-te algum lanche agradável, deixa-o por Deus. Como o queijo, frutas ou algo parecido, ou licor ou vinho envelhecido, ou outras coisas, que não são necessárias para o sustento do corpo humano. E mais, frequentemente são nocivas, “enquanto se pensa que aproveita o que deleita” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c. 63). Se deixares estas coisas por Cristo, não duvido que o mesmo Cristo te preparará uma doce comida de consolo espiritual, inclusive no outro manjar corporal com o qual te contentas por Cristo.

E para que melhor e mais facilmente possas abster-se do que quiseres, “quando ides à mesa considera em teu coração que, por teus pecados, deves jejuar a pão e água” (Frase literal da Regra de Santo Agostinho (Regra V), seguida na Ordem dos Pregadores). Que tua comida seja só pão, e os pratos que te servem não os considere como comida, senão que sejam para poder acompanhar melhor o pão. Pensa que se tens isto bem gravado no coração, parecerá para ti um grande banquete ter algo mais para comer. Procura não fazer muitas sopas no prato; que seja suficiente poder molhar o pão. E quando não tenhas sopa, coma um pão, ou meio, ou pouco mais, segundo o que tens para comer, e assim satisfarás a natureza, ainda que não tiveres outra coisa.

Sobre outras muitas particularidade, que não poderia detalhar-te, instruir-te-á Cristo se recorreres a Ele e pores nEle toda a esperança. Por que quem poderá enumerar os cominhos inumeráveis que te mostrará o Senhor?

Esteja também atento para não ser dos últimos que acabam de comer. E mais, termina logo, guardando a devida postura, para que possas atentar mais à leitura.

E quando te levantares da mesa, dá graças ao Altíssimo como todo o coração, pois Ele te deu seus bens e que te deu força suficiente para que não prevalecesse em ti a sensualidade. Sem refrear sua voz, segundo possas, dá graças ao Doador de todos os bens (Benedictio ante collationem, Constitutiones primaevae O.P. I, 7).

Oh, caríssimo! Pensa quão inumeráveis são os pobres que teriam com máxima delícia ter somente o pão que te deu o Senhor, com a outra comida. Deves pensar assim, pois é a verdade, que é Cristo quem o deu para ti. E mais, que Ele mesmo te serviu na mesa. Olha, pois, com quanta postura, com quanta reverência, maturidade e temor deves estar na mesa, de onde vês presente a teu Deus que em própria pessoa te serve. Oh, quão ditoso serás, se te concedesse do alto contemplar isto com os olhos da alma! Verias também uma grande multidão de santos que correm com Cristo pelo refeitório.

Modo de preservar na sobriedade e na abstinência

“Para que possas preservar-se constantemente neste estilo de sobriedade e abstinência, viva sempre com temor e reconhece que tudo vem de Deus, pedindo-lhe a perseverança” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c. 63).

“E se não queres cair, não julgues a ninguém nem te deixes levar contra ninguém com espírito de indignação. Se vês que outros não guardam a ordem devida na comida, compadece-te de coração e ora insistentemente por eles, escusando-os, quanto possas em teu coração, nem tu nem eles nada podes senão porque Cristo estende sua mão e nos dá não por nossos méritos senão pelo beneplácito de sua vontade. Se pensas assim, estarás seguro” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c. 63) (A mesma ideia se encontra em Venturini de Bergamo, Tractatus et epistolae spirituales, 9, p. 118).

Porque qual é a causa de que muitos começam em um determinado tempo a praticar muitas coisas nas abstinências e em outras coisas, e não perseveram por causa da fadiga do corpo ou da tibieza do espírito? Certamente, não é outra que o orgulho e a presunção, porque enquanto presumem de si mesmo, indignam-se contra os demais, julgando-os em seu coração. Por isso o Senhor lhe retirou seu dom e então o bem se esfria no espírito ou, pelo vício da indiscrição, fazem mais do que convém.

E assim caem na enfermidade, e ao fim, quando volta o restabelecimento corporal, excedem também os limites e se tornam mais gulosos que aqueles os quais antes julgavam, como eu mesmo sei de alguns:

“Porque, geralmente ocorre que, quando um julga a outro em algo, Deus, ao fim, permite que caia no mesmo defeito, ou em outro maior. Por tanto, serve a Deus com temor (Sl 2,11) e se alguma vez sentes complacência ao recordar alguns benefícios que te dá o Altíssimo, toma sobre si o chicote da reprovação e da própria repreensão, não seja que o Senhor se irrite contigo e pereça no caminho da justiça (Sl 2,12). Se fazes assim, permanecerás firme (Col 1,23)” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c.) (Pode-se comprovar facilmente que São Vicente vai introduzindo incisos tendo em conta o destinatário de seu Tratado).

Até aqui te indiquei o modo agradável ao Altíssimo para o domínio da gula, ao qual poucos chegam por excederem-se em mais ou menos no comer, ou por não guardar as devidas circunstâncias.

Ordem do sonho e nas vigílias, no estudo e na oração

Depois disto, esforça-te em guardar a medida prudente no sonho e nas vigílias, na qual é também muito difícil encontrar equilíbrio. Em onde há que notar que há duas coisas que ameaçam especial perigo para o corpo e, por conseguinte, para a alma, se excedes os limites da discrição, a saber: na excessiva abstinência e na vigília desordenada. No exercício de outras virtudes não há tanto perigo no excesso. Por isso, o diabo usa, em definitivo, esta astúcia, pois quando vê a um homem fervoroso no espírito (Rm 12,11), mete-lhe a sugestão de que faça grandes abstinências e vigílias, para que por isso faça-lhe chegar a tanta fraqueza e debilidade de corpo, que se enferme e se debilite, de forma que não consiga fazer nada. E mais, como disse acima, que depois tem que comer e dormir mais que os outros. Então, este, hora em diante, jamais se atreverá a praticar o exercício das vigílias e abstinências, reconhecendo que por estas práticas se adoeceu, enquanto o diabo sugere-lhe e diz-lhe:

“Não faças tal coisa. Não sabes que por isto adoeceste?”

E a verdade é que não se enfermou por causa das vigílias e abstinências, senão por não haver guardado a forma da discrição.

Aqui se vê que o homem simples não entende os sofismas diabólicos, mediante os que, por um lado ou por outro trata de enganar. E assim, só tão boa cor, diz-lhe:

“Tu cometeste tantos pecados; quando poderás satisfazê-los?”

Ou, se não cometeu grandes pecados, diz-lhe:

“Oh, quantas coisas padeceram os mártires e os eremitas”

E o homem simples crê que, como isto tem aparência de coisa boa, não pode discernir se vem de Deus (e, no entanto, é do diabo), permitindo-o Deus, sobretudo quando este homem não recorre imediatamente ao Senhor com grande humildade e temor e com insistente oração. Porque então Deus te iluminará e dirigirá, quando não encontre a um homem que lhe dirija. Pois ao homem que se assenta sobre a santa obediência e rege-se continuamente com sua instrução, está defendo de tais enganos, ainda que o padre espiritual se equivocasse em algo. Pois Deus, pela humildade da obediência dispõe que tudo se encaminhe a seu próprio bem, como poderia demonstrar-se por muitas autoridades e exemplos.

De maneira que, sobre o sonho e as vigílias pode observar-se esta norma. No tempo de verão, depois da comida, havendo soado a campainha assinalando o tempo de silêncio, prepare-se para descansar. Porque aquela hora é pouco apropriada para qualquer exercício espiritual, e pelo que poderá velar algo mais na noite.

Por regra geral, deves observar esta norma quando vais dormir que sempre, ou medites salmos ou algum ponto espiritual que te mergulhe no sono e que possa retornar durante o sonho à imaginação.

De ordinário, nas primeiras horas da noite não veles muito, pois por esta vigília noturna depois se entorpece a celebração e vigília da hora da matinas que, sem dúvida, é a hora mais apta entre todas as horas do dia para a oração, devoção, meditação, estudo e para qualquer exercício espiritual. Aliás, velar a primeira hora da noite impede a atenção no ofício das matinas, pois quem vela demasiado a esta hora, de maneira geral, depois ficará sonolento, pesado e sem devoção. E mais, as vezes se vê obrigado a deixar de assistir ao ofício das matinas.

Portanto, eleja umas breves orações ou alguma pequena leitura ou meditação, com as que te entretenhas antes de dormir pela noite. Entre outras meditações, se a ele te leva tua devoção, podes dirigir tua mente ao que aconteceu na Paixão do Senhor naquela hora. E o mesmo podes fazer nas demais horas, segundo o método de são Bernardo, ou segundo o Senhor te inspire (São Vicente recorre aqui à tradição cisterciense relacionada com o tema da Paixão e da imitação de Cristo, vinculada com são Boaventura e outros autores).

Entretanto, a devoção não é uniforme para todos, senão em um mais forte que em outro. A alguns, em sua simplicidade, basta-lhes morar nos buracos da pedra (Ct 2,14).

Do estudo

Nada, por mais agudo entendimento que tenha, deve omitir aquilo que lhe possa mover a devoção. E mais, tudo o que lê e estuda deve projetá-lo em Cristo, dialogando com Ele e pedindo- lhe a inteligência.

Muitas vezes, enquanto está estudando, deve afastar, durante um certo tempo, os olhos do livro e, fechando-os, esconder-se nas Chagas de Cristo, e de novo voltar ao livro. E também frequentemente deve levantar-se da mesa e, na cela, dobrados os joelhos, dirigir a Deus alguma breve e fervorosa oração. Ou também sair da cela e passear pela igreja, claustro, ou pelo capítulo, deixando-se levar pelo impulso do Espírito. E, as vezes com oração expressada, ou calada, implorar o divino auxílio com gemidos e suspiros do coração fervente, presenteando ao Altíssimo seus bons propósitos e desejo, reclamando para ele o auxílio dos santos.

Este exercício as vezes se faz sem salmos e sem nenhuma outra oração vocal, ainda que as vezes nasceu deles, ou de algum versículo de um salmo ou de uma passagem da Sagrada Escritura, ou da vida de algum santo, ou também pela inspiração íntima de Deus, encontrado pelo próprio desejo ou pensamento.

Passado este fervor do espírito, que ordinariamente dura pouco, podes trazer à memória o que antes estudava na cela, e então te dará uma mais clara inteligência. Feito isso, volte outra vez ao estudo ou à lição, e de novo à oração e uma inteligência mais clara no estudo.

Este fervor na devoção, depois do estudo da lição, ainda que indiferentemente chegue em qualquer hora, segundo se digna outorgá-lo, como apraza àquele que suavemente dispõe todas as coisas (Sb 8,1), geralmente vem mais forte depois das matinas. Por tanto, as primeiras horas da noite vela pouco para que, depois das matinas, possas ocupar todo o tempo no estudo e na oração.

Na cela, nas Matinas e demais Horas

Portanto, durante a noite, quando ouvir o relógio ou qualquer outro sinal, sacudida imediatamente toda preguiça, salta da cama, como se ali houvesse pegando fogo. E dobrados os joelhos, faça com fervor alguma oração, ao menos uma Ave Maria, ou outra, pela qual se inflame teu espírito. Deves ter em conta que, para que facilmente e sem dificuldades melhor (e com certa alegria) se levantes, importa muito que durmas sobre um colchão duro. Isto deve observar geralmente o servo de Deus: fugir de toda suavidade e regalo. Porém de tal maneira que não excedas os limites da discrição. Tenha, portanto, um colchão de palha, e quanto mais apertado e duro, mais agradável te há de ser. Sobre ele é suficiente ter uma manta (São Vicente emprega a palavra flacciatam, que é uma latinização da palavra valenciana “flassada) ou cobertor. Para proteger-te do frio, uma ou duas mantas, segundo o tempo, ou segundo reclame tua necessidade. Para a cabeça tenha um saco cheio de palha e evita a molície da almofada, assim como os outros regalos acostumados, como são os sudários para o rosto e pescoço ou cintura, a não ser que, talvez pela noite, no tempo do verão, cause-lhe muito suor. Pois a natureza não necessita de tais coisas, senão que são maus costumes que se introduziram. Tens de dormir vestido, como vestes durante o dia, tirando os sapatos e soltando o cinto. Entretanto, no verão, em tempo de grande calor, podes tirar a capa e dormir só com o escapulário. Se dormes assim não será difícil levantar-se, senão que levantarás pronto e com alegria.

Enquanto se reza o ofício da Bem-Aventurada Virgem, estando à porta de tua cela, não apoiado senão firme sobre os teus pés, reza o ofício “com toda atenção, com voz clara e com alegria, comportando-se como se A visse diante de ti, com teus olhos corporais” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c. 6). Acabado o ofício da Virgem e atendidas as necessidades do corpo, irás à igreja, ou ao claustro, segundo onde encontres maior devoção. Onde há de notar que o servo de Deus, indo ou vindo da cela, ou em qualquer outro lugar, não deve andar ocioso no coração, senão que deve ruminar salmos ou algo espiritual. Entretanto, pode entrar no coro antes do começo do ofício e meditar algo espiritual para poder cantar depois com os demais mais atento e devotamente.

Dado o sinal para as matinas e feitas as vênias ou inclinações, enquanto salmodias, esteja de pé sem se apoiar, senão que de coração e de corpo esteja virilmente diante de teu Deus, cantando seus louvores com toda alegria, “pensando que, sem dúvida, os santos anjos estão presente, diante dos quais, enquanto cantas para Deus” (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c. 6), deves reverenciá-los continuamente, como a quem veem o rosto de Deus no céu (Mt. 18,10), o qual, todavia, tu não podes ver, a não ser como em um espelho e de maneira obscura (1 Cor. 13,12).

Nunca, sendo possível, refreie sua voz, porém sempre regendo-se com discrição. Nunca omitas nem um jota, tanto dos salmos como dos versos e leituras, assim como das sílabas ou palavras. Se não podes cantar com a mesma voz que os demais, fá-lo com voz mais baixa. Se podes, reza a salmodia e canta pelo livro, enquanto mantenhas o pensamento nos salmos e outras orações e com isso obterás grande consolo. Convém que estejas advertido para que em nenhum ato exterior, quer dizer, em qualquer gesto do corpo ou no tom da voz, apareça algo de leviandade, pois especialmente nesse momento tens de guardar a gravidade e maturidade devidas. Porque muitas vezes a alegria espiritual se converte em certa leviandade, se os atos externos não se moderam com o freio da discrição. Ponha todo teu empenho em cantar com o coração e com a mente (Cor. 14,15). É trabalhoso para o homem, principalmente para o principiante, não fortalecido em Deus, preservar- se das distrações durante a salmodia.

No coro há de ter sempre teu lugar e, de ordinário, ocupa sempre o mesmo setor, a não ser que chegue outro ao qual deves cedê-lo. Se preveja algum erro no coro, procura supri-lo por ti ou por outro. Nisto há de notar que a Deus lhe agrada que prepares as rubricas no dia anterior, assim como tudo o que há que dizer. Há muitos que discutem por uma coisa pequena, pelo que seria menos mal errar que discutir. Agora bem, se com uma palavra pudesse corrigir o erro, então deves fazê-lo, especialmente se é dos maiores ali presentes. Porém se vês que te agitas pela impaciência, é melhor que procures dominar o movimento de teu ânimo. Se alguém lê ou canta mal, ou se conduz torpemente, não murmures nem lhe corrijas, porque tal correção é uma espécie de jactância (vaidade). O mesmo na leitura, por mais que alguém leia mal ou vergonhosamente, não faças nenhum gesto, porque isto é sinal de uma mente inchada com o vento do orgulho. Quando há muitos que correm repentinamente para suprir alguma falha, não te intrometas. Se ninguém consegui-lo suprir, procura fazê-lo tu com toda modéstia. Se podes, antecipa-te a remediar o defeito antes de que ele aconteça. Guarda-te de ler duas lições seguidas, ou dois responsórios, a não ser que faltem muitos, em especial, onde há muitos freis. Não te metas facilmente, se és jovem, a dizer o que corresponde aos maiores.

Não andes vagando com os olhos de cá para lá, nem mires a ninguém o que faz ou como se comporta, antes bem, tenha os olhos cravados em terra, ou levantados ao alto, ou fechados, ou fixos no livro. Quando rezas o ofício divino, enquanto estás sentado ou de pé, não tenhas as mãos debaixo do queixo, senão debaixo da capa ou do escapulário, quando não se usa a capa. Não tenhas um pé sobre o outro, nem as pernas abertas, senão comporta-te com toda modéstia, porque estás na presença de teu Deus. Cuida de não ter os dedos no nariz. Porque há alguns que estão ocupados nisto e em outras misérias, não sem estímulo do diabo, distraídos do ofício divino e mostrando não pouca indevoção.

Muitos outros casos particulares sucedem, que não poderei detalhar-te. Porém, se tens humildade e uma caridade íntegra, em tudo te doutrinará a unção do Espírito (1 Jn 2,27).

Tu que isto lê, tenha em conta que, ainda que eu tenha colocado aqui muitos casos, podem variar pela circunstância, e por isso não hás de condenar, quando advertires que deves fazer-se de outra forma. Como, por exemplo, falar em coro quando aparece o erro, pois lhe pertence emendá-lo ao mais antigo. Contudo, ordinariamente é verdade que ao servo de Deus não lhe está bem contestar (2 Tm 2,14). Pois é um mal menor tolerar pacientemente o erro que alimentar as discussões, muito mais no coro, onde tais disputas são escandalosas e turbam a tranquilidade e a atenção da mente. O mesmo, quando digo que no coro sempre e continuamente leia ou cante.

Porque haverá vezes que possa surgir tal devoção na mente, que o canto poderia estorvá-la, e então seria melhor recitar o ofício em voz baixa, principalmente onde há outros que sejam suficientes para o canto.

E assim, se desprezadas todas as coisas e te acercares a Ele com simplicidade de coração, ensinar-te-á o Altíssimo muitas outras coisas. Contudo, nada deve crer facilmente em si mesmo para fazer o contrário, a não ser que com amplo exercício de virtudes, haja alcançado o espírito de discrição.

Do modo de pregar

Nas pregações e exortações use uma linguagem simples e, quanto possa, um estilo familiar para assinalar os fatos particulares insistindo com exemplos, para que, qualquer pecador que tenha aquele pecado se sinta aludido, como se pregasse só para ele. Porém de tal maneira que as palavras procedem não de um coração soberbo ou indignado, senão melhor de entranhas de caridade e de piedade paterna, como de um pai que sinta dor em ver pecar seus filhos, ou que estão em uma grave enfermidade, ou caídos em um poço profundo, e se esforça em tirá-los e os ajuda a libertar-se, como uma mãe; ou como quem se alegra de seu aproveitamento e de da glória que lhes espera no paraíso. Este modo de pregar será proveitoso aos ouvintes, enquanto que falar em geral sobre as virtudes e os vícios, move pouco aos que escutam.

Assim mesmo, nas confissões, encorajes aos pusilânimes, atemorizes aos endurecidos, mostra sempre entranhas de caridade, para que o pecador sinta sempre que tuas palavras provêm da pura caridade. Portanto, às palavras pungentes precedam sempre palavras cheias de doçura e de caridade.

Tu, pois, quem quer que sejas, que desejas ser útil às almas de teus próximos, antes de tudo, recorre a Deus de todo o coração e suplica-lhe sempre em tuas orações que se digne infundir em ti aquela caridade, compêndio de todas as virtudes, pela qual possas levar a cabo o que desejas.

Alguns remédios contra as tentações que provêm por sugestões do demônio

(A partir daqui se expõem uma série de interrogações para ver a fonte inspiradora de São Vicente: Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c. 41; Venturino de Bergamo, De remediis contra tentationes spirituales, Ed. 1904, Parte segunda, pp. 136-145; Pedro Olivi, Spirituali e Beghini in Provenza, Roma 1959, pp. 282-287).

Em honra a Nosso Senhor Jesus Cristo, dir-lhe-ei alguns remédios contra algumas tentações espirituais que neste tempo abundam na terra, para provar e combater a soberba. As quais, ainda que não vão expressamente contra algum dos principais artigos da fé, no entanto, quem bem as olha, conhecerá que levam perigo para destruir os principais artigos da fé que preparam a cátedra e a sede ao Anticristo. Não quero enumerar estas tentações para não pôr ocasião e matéria de escândalo ou de tropeço aos pequenos ou imperfeitos, porém te mostrarei, por outra parte, como e por que vêm tais tentações.

Primeiro, chegam por sugestão e ilusão do diabo, que engana ao homem na conduta que deve seguir para com Deus e para com o que é de Deus.

Segundo, pela corrupta doutrina de alguns e pelo modo de viver daqueles que já caíram nessas tentações.

Por isso quero ensinar-te a conduta que deves observar para com Deus e para as coisas de Deus, se queres ser imune a tais tentações. E depois, como deves guiar-se ante os demais, enquanto a sua doutrina e enquanto ao modo de viver.

O primeiro remédio contra as tentações espirituais, deste tempo que procura o diabo nos corações de alguns, é que aqueles que querem entregar-se a Deus não desejem na oração e contemplação, ou em outras obras de perfeição, nem visões, revelações e sentimentos que estão sobre a natureza e sobre o proceder ordinário dos que amam a Deus e lhe tem com verdadeiro amor. Porque este desejo não pode dar-se sem uma raiz e fundamento de soberba e presunção, ou com intenção de alguma vã curiosidade sobre os segredos de Deus, ou sem debilidade da fé. Por este defeito a justiça de Deus abandona a alma que tem este desejo e permite que chegue a tal ilusão e tentação do diabo por falsas visões e revelações e por falsas seduções, por cujo artifício semeia a maior parte das tentações espirituais deste tempo e as faz arraigar nos corações daqueles que são núncios do Anticristo, segundo poderás ver no que segue.

Porque deves saber que as verdadeiras revelações e sentimentos espirituais dos segredos de Deus não chegam pelos desejos ditos acima, nem por nenhuma conjuração, ou por esforços que faça a alma, senão que vêm somente por pura bondade de Deus à alma que está cheia de grande humildade, de grande temor e reverência de Deus. Contudo, o varão de Deus não deve exercitar-se na profunda humildade e no temor de Deus para isto, para ter visões, revelações e os sentimentos anteditos, pois cairia no mesmo defeito em que se cai pelo referido desejo.

O segundo remédio é que não consintas em tua alma, na oração ou contemplação, nenhum consolo, por pequeno que seja, que te pareça fundar-se na presunção ou estimação de ti mesmo que depois te levaria à ambição da própria honra ou da própria reputação, donde nasceria em tua mente a ideia de que és digno de glória e louvor desta vida, ou do paraíso. Porque tens de saber que a alma que se sente em tal consolo incorre em maiores e piores males. Pois o Senhor, em seu justo juízo, permite depois ao diabo aumentar tal consolo e se apressar em imprimir naquela alma falsíssimos e perigosíssimos sentimentos e outras ilusões, pensando e crendo que tais sentimentos são verdadeiros. Ai, ai, Deus meu! Quantas pessoas têm sido enganadas deste modo! Tenha por certo que a maior parte dos sequestros, ou raivas, dos núncios do Anticristo vêm por este caminho. Por isso, tenha cuidado de não aceitar em tua oração e contemplação consolo algum, a não se aquele que vem do perfeito conhecimento e sentimento de si, assim como a grandeza e sublimidade de Deus, que fazem nascer em ti uma alta reverência e um grande desejo da honra de Deus e de sua glória. Nisto há de fundar-se o verdadeiro consolo.

O terceiro remédio é que todo sentimento, por alto que seja, e toda visão, por muito secreta e sagrada que te pareça, qualquer que seja, no momento em que leve teu coração a uma opinião ou dúvida contra algum artigo da fé, ou contra os bons costumes, e mais, contra a humildade e honestidade, rechaça-o com horror, porque, sem dúvida, vem da parte do demônio. E ainda quando apareça qualquer visão sem esta luz e sentimento, pelo qual está seguro que vem de Deus e pelo qual te certificas em teu coração que aquela tal visão é grata a Deus, não te prendas a essa visão.

O quarto remédio é que, nem por grande devoção, nem pela santidade de vida, nem por claro entendimento, nem por qualquer outra suficiência que vejas em alguma pessoa, ou em algumas pessoas, não sigas seus desejos nem seus exemplos do momento em que conheces clara e muito razoavelmente que seus conselhos não são segundo Deus e segundo a verdadeira discrição, mostrada pela vida de Jesus Cristo e dos santos, e pela Sagrada Escritura, ensinada e pregada pelas sentenças dos santos. E não temas pecar por elo de soberba e presunção, desprezando os conselhos destes, pois o fazes por zelo e amor da verdade.

O quinto remédio é que fujas e evites o trato e companhia daqueles e daquelas que semeiam e difundem tais tentações, e que evites as pessoas que as aceitam e louvam. E não escutes suas palavras e conversações, nem queiras ver sua conduta, porque o demônio te mostrará e apresentará grande sinal de perfeição em muitas de suas palavras e conduta, que, se o aceitas, virás a cair nos perigos, ruínas e precipícios de seus erros.

Alguns remédios contra aqueles que semeiam tais tentações com sua doutrina

Depois disto, dir-lhe-ei alguns remédios que deves procurar por si mesmo acerca de algumas pessoas que semeiam tais tentações, assim, com sua vida, como com sua doutrina.

O primeiro que hás de atender para com semelhantes pessoas é não ter grande estima de suas visões e sentimentos, nem de seus sequestros. E mais, se te dizem algo contra a fé ou contra a Sagrada Escritura, ou contra os bons costumes, aborrece suas visões e sentimentos como loucos desvios, e seus sequestros como raivas. Porém, se dizem o que é conforme a fé ou a Sagrada Escritura, ou que é conforme ao que dizem os santos, ou segundo os bons costumes, não os desprezes, porque talvez desprezará o que é de Deus (1 Ts 5,20). Entretanto, não confies totalmente, porque muitas vezes, e mais nas tentações espirituais, a falsidade se reveste ou se esconde debaixo da aparência da verdade, e a malícia debaixo da aparência de bem, para que o diabo possa semear melhor e muitas vezes a suspeita mortífera. Por isso, creio que agrada mais a Deus que deixes correr as visões, sentimentos e sequestros que, segundo o dito, têm aparência de verdade e de bondade, no que possam valer, a não ser que se trate de algumas pessoas que por razão de santidade e discrição e de provada humildade, fique constatado que não possam ser enganadas pelas ilusões e astúcias do demônio. E, ainda que seja piedoso aceitar as visões e sentimentos de tais pessoas, entretanto, é mais seguro não crer neles por razão das mesmas, senão porque são conformes com a fé católica, ou com a Sagrada Escritura, bons costumes e com os ditos e doutrina dos santos.

O segundo remédio é que, se por revelação ou sentimento, ou por outro caminho, teu coração é movido a realizar alguma obra notável que não costumas fazer, sobre a que não tens certeza de que agradará a Deus, e mais, duvidas razoavelmente, adie pô-la em execução, até que hajas considerado bem todas as circunstâncias, especialmente as do fim, e saibas se agrada a Deus. Entretanto, não julgues por teu critério, senão, se é possível, por algum testemunho da Sagrada Escritura, ou por algum exemplo imitável dos santos padres. E digo exemplo imitável, porque, segundo são Gregório, alguns santos fizeram certas obras que não devemos imitar, por mais que neles foram boas, senão admirá-las e reverenciá-las. Se por si mesmo podes chegar a esclarecer se o teu agrada a Deus, pede conselho a pessoas provadas em virtude e ciência, que possam aconselhar- te sobre a verdade.

O terceiro remédio é que, se te achas livres de tais tentações, de maneira que nunca as tivesse, ou, se tendo-as, tivesse ficado livre delas, eleva a Deus teu coração e teu entendimento reconhecendo humildemente a graça que Deus te fez, dando-lhe graças de coração muitas vezes, e mais, sem cessar. E procura que isso que tens, por pura graça e bondade de Deus, não o atribuas à tua virtude, sabedoria, ou mérito ou a teus costumes, nem tampouco ao acaso ou fortuna, porque, segundo dizem os santos, esta é a causa pela qual Deus retira o benefício de sua graça e a tira do homem, permitindo que caia em tentações e ilusões diabólicas.

O quarto remédio é que, quando passes em teu coração uma tentação espiritual que te deixa na dúvida, não empreendas por tua própria vontade algo notável que antes era desacostumado para ti, senão que, refreando teu coração e tua vontade, espera humildemente, com temo e reverência de Deus, até que Ele clarifique teu coração. Porque, tenha por certo que, se estando nessa dúvida, começas por tua vontade algo notável, desacostumado para ti, não poderás chegar a bom fim. Refiro-me só a começar coisas graves e desacostumadas, sobre as que recai a dúvida antedita.

O quinto remédio é que, por causa das ditas tentações, se as tens, não deixes nenhuma obra boa das que fazias quando não estavas envolto nas mesmas, especialmente não deves deixar de orar, nem de confessar, nem de comungar, nem de jejuar, nem as obras de piedade e de humildade, ainda que em tudo isso não encontre consolo.

O sexto remédio é que, se tens essas tentações, levanta teu coração e teu entendimento a Deus, pedindo-lhe humildemente o que é mais honroso para Ele e mais saudável para tua alma na tentação, submetendo tua vontade à vontade divina. De tal maneira que, se a Ele lhe apraza que tu permaneças em semelhantes tentações, que te agrada também, contanto que não lhe ofenda.

Razões pelas quais se move o coração à maior perfeição

(Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, II, c.41; Venturino de Bergamo, II, pp. 131-134; Pedro Olivi, Spirituali e Beghini in Provenza, pp. 278-281).

Porque me agrada muito que tenhas começado o bem para a honra de Deus, e porque desejo não só que perseveres senão que continuamente ascendas a maiores obras de virtude, ou ao menos que as desejes veemente, escrevo-te algumas razões pelas quais poderás excitar e mover teu coração às maiores perfeições de toda virtude, que nem começaste nem podes guardar por tuas próprias forças.

A primeira razão é que se consideras quão digno é Deus de ser amado e honrado, por sua bondade e sabedoria e por suas outras perfeições, que se acham nEle sem número e sem término, verás que o que te parece muito e grande para sua honro e sua bondade, é mínimo e quase nada a respeito do que deverias ser em comparação com sua dignidade. Ponho primeiro esta razão, porque em todas nossas obras o principal que temos de procurar é a honra, a reverência e o amor de Deus, porque em si mesmo é digno de ser amado por toda criatura.

A segunda razão é que, se pensas quantos menosprezos, vitupérios, necessidades, dores e a paixão amargurosíssima que sofreu o Filho de Deus por teu amor, para que lhe ames e honres, compreenderás que é pouco o que tens feito para amar-lhe e honrar-lhe, segundo o que devias ter feito. Esta razão é mais perfeita e elevada que as que seguem. Por isso a ponho em segundo lugar.

A terceira razão é que, se pensas na inocência e perfeição que deverias ter, segundo o mandamento divino, pela qual terias que estar livre de todo vício e de toda culpa e na plenitude de toda virtude, e de acordo com a qual deves amar a Deus com todo teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças (Lc 25-28), verás claramente tua debilidade e a distância que te encontras a respeito da inocência e perfeição sobreditas.

A quarta razão é que, se consideras a multidão e a liberalidade dos benefícios divinos e das graças corporais e espirituais que a ti e a outros, ou as que só a ti em particular te concedeu, sentirás que o que fazes ou podes fazer por Deus é nada para compensar estas graças e benefícios divinos, especialmente se consideras a liberalidade e bondade divinas.

A quinta razão é que, se olhas a altura e nobreza do prêmio da glória prometida e preparada para aqueles que fazem as obras de virtude em honra de Deus, pois lhes dará uma glória tanto maior quanto mais virtuosas e maiores sejam as obras, conhecerás, com certeza, que teu mérito é nada em comparação de tanta glória, e desejarás fazer obras mais virtuosas que as que antes fizeste.

A sexta razão é que, se te fixas na formosura e esplendor, ou generosidade que têm em si as virtudes, assim como a dignidade que recebe a alma pelas mesmas, e se olhas, por outro lado, a vileza e torpeza que têm em si os vícios e pecados, e a vileza que pelos mesmos recebe a alma, esforçar-te-ás, se és sábio, por adquirir mais virtudes e fugir mais e mais dos vícios e pecados.

A sétima razão é que, se contemplas a sublimidade e perfeição da vida dos santos padres e suas muitas e perfeitas virtudes, conhecerás a imperfeição e debilidade de tua vida e de tuas obras.

A oitava razão é que, se conheces a grandeza dos pecados e a multidão de ofensas que cometeste contra Deus, conhecerás que todas as obras que fazes, por mais boas que sejam, são nada para satisfazer, por via de justiça, as ofensas feitas contra Deus.

A nona é que, se examinas em conjunto quão perigosas são as tentações da carne, do mundo e do diabo, trabalharás por alcançar uma maior firmeza e altura em toda virtude, mais que nunca o fizeras, para poder preservar com maior seguridade contra estas tentações.

A décima é que, se pensas no rigoroso juízo final de Deus, e com quanto aparato de boas obras e de satisfações das ofensas feitas a Deus deverias chegar a este juízo, verás que é muito pouco o que tens feito por boas obras e penitência, em comparação com o que deverias ter feito.

A undécima razão é que, se pensares na brevidade de tua vida e na proximidade de tua morte duvidosa, depois da qual não terás espaço para fazer obras meritórias nem penitência, conhecerás que com maior afeto e esforço deverias fazer mais obras boas e mais penitência que as que fazes.

A duodécima razão é que, se consideras de que maneira começas a vida da perfeição, em qualquer grau, porém sem esforço e desejo de subir a maior perfeição e vida mais elevada, verás que isto não é possível senão por um fundamento de presunção e soberba no que começaste. Nem tampouco sem que inclua uma grande tibieza e negligência. Pela presença destes dois males, não se pode proceder sem grande perigo de viver em outros vícios espirituais, como poderia demonstrar-te, ainda que seria amplo escrevê-lo literalmente. Não duvido, que se queres estar livre e imune desses males, por mais que hajas começado com ânsias de uma maior perfeição, deves-te esforçar todavia mais em chegar a uma vida mais elevada e perfeita. São Bernardo, comentando o Salmo 90, “Qui habitat”, falando daqueles que são fervorosos ao princípio, porém que depois, crendo que são algo, entibiam-se, disse: “Oh, se soubesse quão pouco é o que tens e quão logo o perdes se quem te deu não o conserva!” (Bernardo de Claraval, Comm. in psalm. “Qui habitat”, I (Sl 183,1878)).

A décima terceira razão é que, se pensas nos insondáveis juízos de Deus sobre alguns que perseveraram muito tempo em grande santidade e muita perfeição, aos que Deus abandonou por alguns vícios ocultos que criam não ter, não duvido que por mais que haja começado uma vida elevada, cada dia elevarás teus afetos e intenções, corrigindo, com mais cuidado que antes, todos os vícios, acercando-te a uma mais plena e perfeita santidade, temendo que talvez haja em ti algum pecado oculto pelo qual mereces ser abandonado.

A décima quarta razão é que, se pensas nas penas dos condenados no inferno, que estão preparadas para todos os pecadores, creio que te será ligeira toda penitência, humildade, pobreza e todo trabalho que nesta vida possas padecer por Deus, com intenção de escapar de tais penas; e que te esforçarás continuamente para manter uma vida de perfeição mais elevada, temendo o perigo de chagar às penas sobreditas.

Eficácia destas razões

Tratei das razões anteriores brevemente e sem explicá-las, para que aprendas a pensar coisas profundas sobre poucas palavras, e assim cada uma das razões te dará matéria para elevada e ampla contemplação. Entretanto, tens de saber que, se queres aproveitar com as referidas razões, deves considerá-las não no entendimento, senão que é necessário mover com certo afeto tua vontade até o que ditam as apresentadas razões. E, para melhor entendê-las, resumir-te-ei brevemente a recordação das mesmas, mostrando-te como têm eficácia para o aproveitamento da alma se não vão acompanhadas de uma afeição e sentimento espiritual.

A primeira razão não tem força senão na alma que tem um grande espírito, que sente e contempla a nobreza, perfeição e dignidade de Deus e se esforça em amá-lo e honrá-lo sobre todas as coisas, segundo Ele é digno.

A segunda razão não tem eficácia senão na alma que mediante uma cordial devoção sente no espírito a caridade e bondade do Filho de Deus, mostradas em sua própria Paixão, aceitada por nós, e assim a alma deseja com todas as forças compensar a Deus, pela caridade e bondade manifestadas na Paixão.

A terceira razão não aproveita senão a alma que sente a altura da perfeição que Deus requer e manda que haja na criatura, a qual, com profunda razão e com grande vontade, deseja cumprir a vontade e mandato de Deus, caminhando até a perfeição.

A quarta razão só tem lugar na alma que, no entendimento e no afeto, considera a grandeza e nobreza dos benefícios de Deus e de sua graça, e se esforça por tributar a Deus um serviço devido, conforme aos benefícios recebidos.

A quinta razão tem lugar e valor só na alma que estima e tem fervente amor da glória prometida no paraíso, e que tem firme fé e esperança de chegar a esta glória pelas obras boas das virtudes, de maneira que com as distintas obras se esforça por chegar a essa glória.

A sexta razão não tem eficácia senão na alma que tem horror e abomina completamente todos os vícios e pecados, e tem complacência e amor pelas virtudes e pela graça de Deus, e isto com grande excesso e altura.

A sétima razão só tem força na alma que tem em grande estima as vidas dos santos, com desejo de imitá-los. Refiro-me especialmente aos mais perfeitos, como são, principalmente, a Virgem Maria, e depois os Apóstolos, São João Batista e São João Evangelista.

A oitava razão não aproveita senão a alma que agrava contra si as ofensas que fez contra Deus e que tem grande vontade de fazer ante Deus justiça e satisfação de todos seus pecados mediante as obras boas de virtude.

A nona razão não tem lugar senão somente na alma que sente sua própria debilidade e a gravidade e perigo das tentações, pelo que se esforça em fugir de toda ocasião de cair na tentação e chegar assim à seguridade da graça de Deus.

A décima razão não tem lugar senão na alma que reconhece seus pecados e tem temor cordial à sentença do juízo final, que se pronunciará sobre os pecadores que não fizeram penitência.

A undécima razão não tem valor senão na alma que tem temor à morte e que está muito disposta a fazer obras meritórias.

A duodécima razão aproveita só a alma que sente e entende que começada a vida de perfeição sem esforço e desejo de chegar ao mais alto, não pode manter-se sem que se mesclem nela os acostumados vícios e sem perigo de grandes males. Portanto, há de querer fugir desses vícios e perigos.

A décima terceira razão não tem eficácia senão na alma que cuida, acima de tudo, da sua salvação e que teme ficar separada da graça de Deus.

A décima quarta razão tem força só na alma que teme as penas dos condenados, sentindo que é digna de chegar a elas pelas ofensas cometidas contra Deus, e quer e se esforça por evitá-las pela satisfação das penitências.

Adverte que o fim e conclusão de qualquer das razões deverá fixar-se em duas coisas:

  • Primeira, no sentimento da própria imperfeição e do próprio nada.
  • Segunda, no desejo e esforço por chegar a uma vida mais perfeita.

Porém de tal sorte que o sentimento da própria imperfeição e de nosso nada não exista sem o desejo e esforço de maior perfeição e de uma vida mais elevada, e vice-versa.

Conselhos para escapar dos laços do diabo

Quem quer escapar dos laços e tentações finais do anticristo ou do demônio, deve abrigar dos sentimentos em si mesmo:

Primeiro, que sinta de si mesmo como de um corpo morto, cheio de vermes e fedorentos, como um cadáver ao que não se dignam ver nem olhar, e mais, tapa-se o nariz pelo péssimo odor e cheiro, e apartam o rosto para não ver tal e tanta abominação (Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c.16). É o que nos convém fazer a ti e a mim, caríssimo, porém mais a mim, porque toda minha vida é hedionda, sou todo hediondo, todo meu corpo, toda minha alma, tudo o que está dentro de mim está cheio de corrupção e podridão dos pecados e maldades fedidíssimos e abominabilíssimos que tenho, e, o que é pior, cada dia sinto que este fedor se renova mais recente e mais angustiante.

A alma fiel deve sentir tal fedor de si mesma, com grande vergonha diante de Deus, como diante dAquele que vê e sabe todas as coisas, como se estivesse diante de seu rigoroso juízo, doendo-se totalmente da ofensa feita a Deus e da perdida de graça na alma, a que tinha por ser redimida pelo preciosíssimo Sangue de Cristo e lavada pela água do batismo. E assim como sente e crê para si e para Deus que és hediondo, assim também sinta e creia o mesmo diante dos anjos e almas santas, e diante de todos os homens que vivem no mundo. Para todos eles és abominável e repugnante: todos eles não só não querem ver nem escutar suas obras e palavras, senão que se tapam os narizes e voltam o rosto para não vê-lo e o jogam de lado como um fétido cadáver e assim está desterrado deles, separado e arrojado como um leproso, e mais, até que volte em si.

Se alguém fizer justiça de si mesmo e sentir de seu corpo o que é justo, e deve crer que é assim, deveriam tirar-lhe os olhos, romper-lhe o nariz, cortar-lhe as mãos, as orelhas e a boca e todos os outros sentidos corporais e membros, pois como todos eles ofendeu a Deus criador.

Desta forma, deseje ser desprezado e ultrajado e sofrer com paciência todos os vitupérios, vergonhas, difamações, blasfêmias e adversidades com grande gozo e alegria.

Em segundo lugar, convém que desconfie totalmente de si mesmo, de todos seus bens e de toda sua vida, e que te convertas totalmente e te reclines nos braços de Jesus Cristo, paupérrimo, vilíssimo, improperado, desprezado e morto por ti, até que tu estejas morto em todos teus sentimentos humanos e que Jesus Cristo crucificado viva em teu coração e em tua alma, e todo transformado e transfigurado sintas cordialmente em ti, de maneira que nunca vejas e nem sintas, nem ouças, senão ao mesmo Jesus cravado na Cruz, morto e suspenso por ti, a exemplo da Virgem Maria, morto ao mundo e vivendo pela fé (Gl 2, 20; Ludolfo de Saxonia, Vita Christi, I, c.16). E toda tua alma viva nesta fé até a ressurreição, na que o Senhor te infundirá um gozo espiritual e o dom do Espírito Santo em ti e naquelas pessoas nas quais há de renovar-se o estado dos Apóstolos e da Igreja santa de Deus. Exercita-te em santas orações ou meditações sagradas e afetos, para obter os dons das virtudes e a graça de Deus.

Sete afetos para com Deus, para si mesmo e para com o próximo

Deves exercitar-se principalmente com sete afetos diante de Deus, a saber:

  1. Amor Ardentíssimo;
  2. Sumo Temor;
  3. Honra Devida;
  4. Zelo Constantíssimo.
  5. A estes deve-se unir:
  6. Ação de Graças e Louvores;
  7. Pronta e Total Obediência;

E o sabor, tanto quanto possível, da suavidade divina.

Continuamente deves pedir a Deus estas sete coisas, dizendo:

Bom Jesus, fazei que vos ame do mais profundo de meu ser, que vos tema acima de tudo, que vos reverencie e que tenha fortíssimo zelo por tua honra, de tal maneira que, ansioso por tua glória, aborreça veementissimamente qualquer opróbrio contra ti, e mais se faça por mim ou em mim. Dai- me, Senhor, que te adore humildemente como criatura tua com toda gratidão do coração. Dai-me também que em todas as coisas te bendiga sempre, te louve e glorifique com sumo júbilo, alegrando o coração, e que, conformando-me e obedecendo-te em tudo, sacie-me sempre de tua dulcíssima e inefável suavidade, como comensal de tua mesa, com teus santos anjos e apóstolos, ainda que totalmente indigno e ingrato. Tu, que com o Pai e o Espírito Santo, etc.

A respeito a si mesmo, deve exercitar-se também com outro septiforme afeto, a saber:

Primeiro, que se confunda totalmente a si mesmo por seus defeitos e vícios.

Segundo, chore e deplore seus pecados com acerbíssima e agudíssima dor, porque ofendem e mancham sua alma.

Terceiro, com a própria humilhação e desprezo de si mesmo, quer dizer, que com todas as forças se despreze a si mesmo e deseje ser desprezado como algo vilíssimo e corrompido, com foi dito.

Quarto, que com rigor serveríssimo castiga asperamente seu corpo e apeteça ser castigado como cheio de mediocridade pelo pecado, e mais, como latrina (lugar onde se defeca) e esgoto e cumulado de toda imundície.

Quinto, com ira implacável contra todos seus vícios e contra as raízes e inclinações dos mesmos.

Sexto, com uma vigilância energética e desembaraçada sobre todos seus sentidos e atos e potências, sempre atento e vigilante para preservar no bem com esforço varonil.

Sétimo, com uma discrição de perfeita modéstia ou moderação, para que em tudo guarde exatamente a medida e o modo entre o que é excessivo e o que é menos que suficiente, isto é, que nada seja supérfluo nele, nada diminuído, nada deficiente, nem mais nem menos do que se deve ser.

A respeito do próximo deve exercitar-se também com outro septiforme afeto, a saber:

Primeiro, com uma piedosa compaixão, de forma que sinta os males e trabalhos alheios como próprios.

Segundo, com uma doce congratulação, isto é, que se alegra dos bens do próximo, como de seus próprios.

Terceiro, com uma tranquila acolhida e indulgência, isto é, tolerando pacientemente e perdoando de coração, esquecendo as moléstias e injúrias que lhe causem os demais.

Quarto, com uma benigna afabilidade, é dizer, que seja benigno para com todos e deseje todos os bens e os viva para todos, mostrando-se assim em gestos e palavras.

Quinto, com reverência humilde, de maneira que prefira a todos antes que a si mesmo, a todos reverencie e a todos se sujeite de coração, como a seus senhores.

Sexto, com unânime concórdia, isto é, que em quanto dependa de ti, e enquanto possa segundo Deus, sinta o mesmo com todos, de forma que se sinta em todos e que todos estejam nele, e o bom querer de todos o considere como seu, e vice-versa.

Sétimo, mediante uma cristiforme oblação de si mesmo por todos, isto é, que à imitação de Jesus Cristo esteja preparado solicitamente a entregar sua vida pela salvação de todos e orar dia e noite e trabalhar para que todos sejam inviscerados em Cristo e Cristo neles.

Entretanto, não creia por isso que não há de precaver e fugir de todos os vícios dos homens, pois hás de saber que a companhia dos maus ou imperfeitos armazenará algum perigo de afasrtar-se ou que lhe impeça da perfeição, ou o fervor das mencionadas virtudes, deves afastar-se deles como de serpentes e dragões. Não há carvão tão aceso que não se esfrie e apague com a água. Pelo contrário, dificilmente haverá carvão tão frio que na pilha de carvões acesos não se acenda. De outra sorte, onde não há perigo semelhante, devem, com a maior simplicidade, não ver os defeitos dos demais, ou, se os ver, julgá-los com compaixão e suportá-los como teus.

Para regular bem tua conduta a respeito do temporal e do eterno, advirta-se que hás de considerar as coisas temporais sob quatro aspectos:

Primeiro, que, como estrangeiro e peregrino (Sl 38,13), sintas todas as coisas como estranhas e alheias, até o ponto que tua roupa seja tão estranha ao teu sentido, como se estivesse na Espanha, ou na Índia.

Segundo, que no uso das coisas, temas a abundância como veneno, ou como um mar que tudo o submerge em suas águas.

Terceiro, que no uso das coisas sintas toda a escassez e pobreza, porque esta é a escada pela qual se sobe às riquezas celestiais e eternas.

Quarto, que fugindo da companhia, conluio e pompa dos ricos e poderosos, ainda que não por desprezo, te glories da companhia dos pobres e te alegres da recordação, trato e conversação com eles, pois são a expressa imagem de Cristo, e assim, como se fossem reis, os acompanhes com sumo agrado e reverência.

Quinze perfeições necessárias para o que serve a Deus na vida espiritual

Quinze são as perfeições necessárias para a pessoa que serve a Deus na vida espiritual.

A primeira, a clara e perfeita notícia de seus defeitos e fraquezas.

A segunda, uma ira grande e ardente contra as más inclinações e contra os desejos e paixões que repugnam à razão.

A terceira, um grande temor pelas ofensas feitas até agora contra Deus, porque não está seguro se há feito bastante satisfação, nem de haver feito as pazes com Deus.

A quarta, um grande temor e tremor de que, por sua fragilidade, podes cair de novo em semelhantes ou maiores pecados.

A quinta, uma rigorosa disciplina e áspera correção para o governo de seus sentidos corporais e para submeter todo seu corpo ao serviço de Jesus Cristo.

A sexta, fortaleza e grande paciência nas tentações e adversidades.

A sétima, evitar virilmente, como a demônio infernal, a toda pessoa ou qualquer criatura que lhe leve, ou que lhe ofereça ocasião, não só para o pecado, senão para qualquer imperfeição da vida espiritual.

A oitava, levar em si a cruz de Cristo, que tem quatro braços: primeiro, a mortificação dos vícios; segundo, a renúncia aos bens temporais; terceiro, a renúncia aos afetos carnais dos parentes; quarto, o desprezo de si mesmo, a abominação e aniquilamento de si mesmo.

A nona, a doce e contínua recordação dos benefícios divinos que até agora recebeste do Senhor Jesus Cristo.

A décima, permanecer dia e noite em oração.

A undécima, gostar e sentir continuamente as doçuras divinas (Sal. 33,9).

A duodécima, um grande e fervente desejo de exaltar nossa fé, quer dizer, que Jesus Cristo seja temido, amado e conhecido por todos.

A décima terceira, ter misericórdia e piedade com seu próximo em todas suas necessidades, como gostaria de tê-la com ele.

A décima quarta, dar graças continuamente a Deus com todo o coração, e glorificar e louvar em tudo a Jesus Cristo.

A décima quinta, que, depois de fazer tudo isto, senta e diga: Senhor, Deus meu, Jesus Cristo, nada sou, nada posso, nada valho e sirvo-te muito mal, e em tudo sou um servo inútil (Lc 17,10).

Cinco ternários em que tem que exercitar-se

Três são as bases ou partes principais da evangélica e apostólica pobreza:

  • a renúncia a todo direito próprio,
  • a moderação nas coisas temporais, e
  • a prática da pobreza nestes dois afetos.

Três são as partes da abstinência, a saber:

  • debilitar o amor carnal e a solicitude do que serve a seu sustento,
  • não buscar a abundância ou suficiência na delícia de alimentos,
  • usar com sobriedade do que se oferece.

Três coisas em particular devemos fugir e temer (Cf. Venturini de Bergamo, Tractatus et epistolae spirituales, 9, pp. 119-120):

  • a distração externa dos negócios,
  • promoção e exaltação interior,
  • e a desordenada e imoderada afeição das coisas temporais e das amizades carnais, ou para consigo mesmo, ou para os amigos, ou até para sua Ordem.

Três coisas em particular, nas quais devemos exercitarmos e abraçar:

  • primeira, o desejo de ser menosprezado, abatido e vilipendiado até o extremo;
  • segunda, uma íntima compaixão por Cristo crucificado;
  • terceira, o sofrimento das perseguições e do martírio pela propagação do culto e do nome de Cristo, assim como da vida evangélica.

Estas três coisas deveria pedir com abundante oração depois das horas do dia, com gemidos e ardentíssimos suspiros.

Três coisas que, em particular, devemos meditar assiduamente:

  • primeira, Cristo crucificado, encarnado, etc.
  • segunda, o estado dos Apóstolos e dos freis antepassados de nossa Ordem, com desejo de conformar-se a eles.
  • terceira, o estado futuro dos varões evangélicos. Isto deves meditá-lo dia e noite, a saber, o estado dos paupérrimos e simplíssimos, mansos, humildes e rejeitados, unidos entre si com caridade ardentíssima, que nada pensam nem falam nem gostam senão só a Jesus Cristo, e este, crucificado (1 Cor 2,2). Que não se preocupam com este mundo, esquecidos de si mesmo, contemplando a soberana glória de Deus e dos bem-aventurados, suspirando excessivamente por ela e esperando e desejando sempre a morte por amor dela, dizendo, como São Paulo: desejo morrer e estar com Cristo (Fl 1,23), cheios do alto e maravilhosamente invadidos dos inestimáveis tesouros das riquezas celestiais sobre os rios doces e melífluos das suavidades e alegrias divinas.

Por conseguinte, deves imaginá-los como cantando com júbilo um canto angélico, tocando as cítaras de seu coração. Esta imaginação te levará, mais dos que se possa pensar, a desejar com impaciência a vinda daqueles tempos. Levar-te-ás também a uma espécie de luz admirável, na qual, dissipadas todas as nuvens da dúvida e da ignorância, verás limpissimamente e discernirás com todo detalhe todos os defeitos destes tempos e a mística ordem das ordens eclesiásticas que apareceram e aparecerão desde o princípio, desde Jesus Cristo, até o fim do mundo e até a glória do sumo Deus e de Cristo Jesus.

Leve sempre a Jesus Cristo em teu coração para que Ele te leve a essa glória. Amém.

APÊNDICE

(Alguns manuscritos do século XV acrescentam este Apêndice, que vem a ser como uma síntese do Tratado, entre eles os de Bamberg, Munich e Frankfurt)

Se queres alcançar plenamente o que intentas, duas coisas te são necessárias:

  • primeira, que te apartes de todas as coisas transitórias e terrenas, e não faças nenhum caso delas, como se não existissem;
  • segunda, que te entregues de tal maneira a Deus, que nada digas nem faças senão o que creres firmemente que lhe agrada.

O primeiro o conseguirás deste modo: Despreza-te a ti mesmo de todas as maneiras em que possas, crendo que és nada e que todos os homens são bons e melhores que tu, e que agradam mais a Deus. Tudo o que ouças ou observas nas pessoas religiosas e famosas, olha-o sempre como feito ou dito com boa intenção, ainda que pareça o contrário. Porque frequentemente falham as suspeitas humanas.

A ninguém desgostes. Nunca fales de ti mesmo algo que comporte louvor, por mais amigo que seja aquele com quem falas. E mais, trabalha mais em ocultar as virtudes próprias que os vícios. De nada falas mal, jamais, ainda que sejam coisas verdadeiras ou manifestas, a não ser na confissão, e isto quando não possas manifestar de outra maneira teu pecado. Escuta com gosto quando alguém é louvado, mais que quando é insultado.

Quando falares, tuas palavras sejam poucas, retas, verdadeiras, poderosas, e sejam também sobre Deus. Se um secular fala contigo e propõe coisas vãs, quanto antes possas, corta a conversa e transporta-te às coisas de Deus. Tudo o que te aconteça, ou a outro unido a ti, não se preocupe. Se é coisa próspera, não te alegres; se é adversidade, não te entristeças, senão, considera-o um nada, e louva a Deus.

Ponha, na medida do possível, toda solicitude para buscar diligentemente o que é útil. Fuja das palavras enquanto possas, porque é melhor calar do que falar. Depois das Completas não fales até que a Missa do dia seguinte haja terminado, a não ser que se apresente uma razão maior. Se vires algo que não te agrade, olha se está em ti e corta-o. Mas, se vires ou ouvires algo que te agrada, olha se está em ti e mantenha-o, e se não o tens, toma-o e assim todas as coisas estarão para ti como em um espelho.

De nada murmures com outro, a não ser que creias que seja proveitoso, por mais grave que seja o que pensas. Nunca afirmes algo de modo pertinaz, nem tampouco o negues assim, senão que tuas afirmações, negações e dúvidas, estejam condimentadas com sal. Abstenha sempre das gargalhadas. As risadas sejam raras. E a poucos prestes conversa, senão brevemente em todas tuas palavras. Comporta-te de forma que em tuas palavras de dissipem as dúvidas.

O segundo, o alcançarás deste modo: aplica-te à oração com grande devoção e reza-a como tarefa nas horas devidas: e o que levares à oração, medita-o em teu coração dia e noite. O que leres seja para alimentar a oração.

Medita diligentemente e imagina o estado daqueles em cuja recordação tens rezado.

Tenha estas coisas como próprias em tua memória, a saber, o que fostes, o que é, o que serás. Que fostes, uma espinha fétida. Que és, um monte de esterco. Que serás, comida e manjar de vermes. Imagina também as penas dos que estão no inferno, penas que nunca acabarão, e que por tão pouco deleite padecem tantos males. Por outro lado, imagina a glória dos que estão no Paraíso, que nunca acabará, e quão logo e brevemente se adquire. E, o mesmo, quanta dor e pranto terão os que por coisas tão pequenas perderam tão grande glória.

Quando tiveres algo que te desgoste, ou temas tê-lo, pensa que se estivesse no inferno, aquele e tudo o que não quis ter, o terias, e desta maneira o suportarás tudo diligentemente pelo amor de Cristo. E quando tem, ou desejas ter algo que te agrada, pensa que se estivesse no paraíso o terias, com tudo o que quisesse ter.

Quando é a festa de algum santo, pensa quantas coisas suportou por Deus, ainda que brevemente, e que coisas alcançou, que são eternas. Pensa também que passaram os tormentos dos bons e os gozos dos maus. Estes, por suas indevidas delícias e gozos, têm a pena eterna. E os bons, com estes tormentos, alcançaram a glória eterna.

Sempre que te vença a preguiça, toma este escrito e imagina-te com diligência tudo isto, e pensa no tempo que perdes fazendo assim, de forma que os que estão no inferno dariam todo o mundo se o tivessem para si. Se tens algumas dores, pensa que os que estão no paraíso carecem delas. E, o mesmo, se tens algum consolo, pensa que os do inferno carecem absolutamente deles. Quando irdes deitar-se, examina-te, o que pensaste, o que disseste, o que fizeste durante o dia e como usaste o tempo útil que destes para adquirir a vida eterna, o dissipaste, e, se o utilizaste bem, louva a Deus. Se o utilizaste mal e negligentemente, chora. E ao dia seguinte não retardes a confissão. E se fizeste algo, ou disseste, do que te pese a consciência, não comas antes de confessar-se.

Como final, ponho que imagines duas dificuldades: uma, cheia de todos os tormentos, a saber, o inferno. A outra, cheia de todo consolo, como é o paraíso.

É necessário que corras até uma das duas. Olha bem quem te pode levar ao mal ou quem te pode impedir o bem. Penso que não o encontrarás.

Estou seguro que se guardas as coisas que te disse, o Espírito te ensinará tudo e habitará em ti e te educará para que seja cumprido tudo.

Portanto, observa bem estas coisas e não omitas nada. Leia duas vezes por semana, na quarta e no sábado. E onde encontre algo que tenha cumprido, louva a Deus, que é piedoso e misericordioso pelos séculos dos séculos. Amém.