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“Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito”

Capítulo 31: "Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito"

Explica-se literalmente a sétima palavra

Chegamos à última palavra de Cristo, que Ele, a morrer na cruz, proferiu, bradando: Meu Pai, etc. Explicaremos por sua ordem cada uma das expressões.

Meu Pai, disse Ele; e com razão assim Lhe chama, porque foi seu Filho obediente até à morte, e por isto digníssimo de ser atendido.

Nas tuas mãos. Na linguagem da Escritura chamam-se mãos de Deus a inteligência e a vontade, ou a sabedoria e, o poder, ou, o que vem a dar no mesmo o entendimento que tudo sabe, e a vontade, que tudo pode, pois com estas duas como mãos faz Deus tudo, nem precisa de instrumentos, porque, como diz São Leão (1), à vontade em Deus é potência, e por isso o querer em Deus é ação. Fez tudo quanto quis no Céu e na Terra (Sl 134).

Entrego, como, ponho em depósito, para me ser lealmente restituído a seu tempo.

O meu espírito. Questiona-se muito a respeito desta expressão, pois o vocábulo espírito costuma empregar-se para significar a alma, que é a forma substancial do corpo, e também para significar a mesma vida, pois o sinal de vida, é a respiração: quem respira, vive; quem não respira, está morto. Se por espírito entendermos neste lugar a alma de Cristo, deve ter-se a cautela de não se julgar, que em algum perigo se vira aquela alma ao sair do seu corpo, assim como os dos homens moribundos, às quais são encomendadas com muitas orações e devoção, porque vão apresentar-se ao tribunal do Juiz, para receberem glória ou pena, segundo as suas boas ou más obras. Desta encomendação não precisou a alma de Cristo, não só porque era bem-aventurada desde o princípio da sua criação, mas também, porque estava reunida ao Filho de Deus em pessoa, e podia-se dizer alma de Deus; e além disto, finalmente, porque, saía do corpo, vencedora e triunfante, aterrando os demônios todos, e sem receio nenhum deles. Assim, se nesta passagem espírito se tomar por alma, aquelas expressões do Senhor: Encomendo o meu espírito, significarão que a alma de Cristo, que tinha estado no corpo, como num tabernáculo, havia de estar nas mãos de seu Pai, como em depósito, até voltar outra vez ao seu corpo segundo aquilo do livro da Sapiência:

“As almas dos justos estão nas mãos de Deus” (Sb 3)

É, porém, sem dúvida mais crível, que neste lugar se entenda pelo vocábulo espírito a vida corporal, sendo este o sentido:

«Eu te entrego agora o espírito da vida; e por isso cesso de respirar e viver: entrego-te, porém, este espírito, esta vida, meu Pai, para que brevemente a restituas ao meu corpo, pois para ti nada morre, antes tudo vive para Ti, que chamando o que não existe, lhe dá à existência e chamando o que não vive, lhe da à vida»

Que é este o verdadeiro sentido desta passagem, pode corrigir-se do Salmo trigésimo, do qual o Senhor tirou esta oração, tal é, pois a do Santo Davi:

«Livrar-me-ás deste laço, que me armaram, porque, tu és o meu protetor. Nas tuas mãos, Senhor entrego o meu espírito» (Sl 30)

Onde o profeta designa clarissimamente a vida pela palavra espírito, pois roga a Deus, que a conserve e não permita que seus inimigos o matem. Além disto, corrige-se deste mesmo lugar do Evangelho, porque o Evangelista diz:

“E depois do Senhor dizer: Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito; expirou”

E o expirar é deixar de respirar, e respirar propriedade dos viventes, não se podendo referir à alma, forma substancial, mas sim ao ar que respiramos enquanto vivemos, e deixamos de respirar, quando não temos vida. Colige-se finalmente isto mesmo daquelas palavras do Apóstolo:

“O qual nos dias da sua mortalidade, oferecendo com um grande brado e com lágrimas, preces, rogos ao que podia salvar da morte, foi atendido pela sua reverência” (Hb 5)

Alguns expõem esta passagem relativamente à oração que o Senhor fez no Horto, dizendo:

“Meu Pai se é possível, transfere de mim este cálice” (Mc 4)

Porém no Horto o Senhor não orou, bradando, nem foi atendido, nem o quis ser como se pretendesse livrar-se da morte, pois pediu que Ele fosse transferido o cálice da paixão, para mostrar o desejo natural de não morrer, e que era verdadeiro homem, cuja natureza tem horror à morte, porém acrescentou:

“Não se faça a minha vontade, mas sim a tua”

Não podendo em vista disto ser a oração no Horto à oração a que se refere o Apóstolo na sua Epístola aos Hebreus. Querem outros, que a oração mencionada por São Paulo, seja a que o Senhor fez na Cruz pelos que os crucificaram:

“Meu Pai perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”

Mas nesta oração nem o Senhor bradou nem pediu ser livre da morte; circunstâncias de que claramente fala o Apóstolo na supradita Epístola. Na Cruz pediu pelos algozes, para lhe ser perdoado aquele pecado, o mais grave, e maior, que podia cometer. Não podem, portanto aquelas palavras do Apóstolo deixar de se entenderem da última oração do Senhor na Cruz, quando disse:

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”

Oração que fez bradando, como diz São Lucas:

“E Jesus bradando, disse” (Lc 23)

No que evidentemente são concordes São Paulo e São Lucas. Demais disto a oração do Senhor foi, para ser livre da morte, segundo São Paulo; o que se não pode entender de modo que se julgue que pediu, para não morrer na Cruz, pois, se isto pedisse, não seria atendido, e o Apóstolo certifica que o foi (Hb 5); pediu para não ser absorvido pela morte, mas para só saber o que era morrer, e voltar outra vez à vida. É o que significam aquelas palavras:

“Dirigiu rogos aquele que salvá-lo da morte”

O Senhor não podia ignorar que havia de forçosamente morrer, e principalmente estando já tão próximo à morte, porém desejava ser livre dela no sentido de não estar muito tempo morto, assim a sua oração exprime o desejo de brevemente ressuscitar; e nisto foi ouvido, porque ao terceiro dia ressuscitou gloriosissimamente. Esta aplicação do testemunho de São Paulo bem claramente convence de que a palavra espírito se toma por vida e não por alma na palavra do Senhor:

“Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”

Pois o Senhor não estava com cuidado a respeito da Sua alma, a qual Ele sabia que estava livre de perigo, por ser bem-aventuradíssima e ter já, logo na sua criação, gozado da vista de Deus face a face, tinham, porém a respeito do seu corpo, que Ele via que estava a ser pela morte privado da vida, e por isso rogava para que Ele não ficasse muito tempo morto o que, como já dissemos, conseguiu como podia desejar.


Referências:

(1) Serm. de Nativit.

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(BELARMINO, Cardeal São Roberto. As Sete Palavras de Cristo na Cruz. Antiga Livraria Chadron, Porto, 1886, p. 252-258)