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Sermão sobre a Impenitência Final

Sermão sobre a Impenitência Final

SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET

Exordio. — A vida e a morte são menos dissemelhantes do que se diz e pensa.

Proposição e divisão. 

1°. O homem mundano, insensível à miséria dos pobres e estranho ao pensamento da salvação, morre aterrorizado e cercado de dores cruéis;

2.° Cai nas mãos de Deus sem ter o espírito preparado;

3°. Vai à presença do Juiz sem ter quem o defenda.

1.º Ponto. — O habito de não nos contentarmos com o que é lícito conduz em breve a afouteza de perseguirmos o que é verdadeiramente ilícito. E para depois modificar tão profundas inclinações, seria preciso um milagre.

2.º Ponto. — As ambições, as inquietações e as curiosidades absorvem e tiranizam o homem mundano e o cortesão até ao último momento da vida.

3.º Ponto. — O homem desmedidamente egoísta não ama o próximo; é cúpido, avaro, sente-se dominado pela embriaguez das paixões satisfeitas, até ao dia em que seja entregue ao tribunal divino por aqueles de quem ele se não compadeceu.

Peroração. — Sejamos caritativos, principalmente numa época em que é mais horrível a miséria dos pobres.

Mortuus est autem et dives
O rico também morreu (Lc 16, 22)

Deixemos Jesus Cristo no Tabor, no meio dos esplendores da Sua glória, e examinemos outro objeto menos agradável, é certo, mas que nos estimula mais fortemente a penitência. É o rico moribundo, e morrendo conforme viveu, escravo das suas paixões, vítima do pecado e sujeito ao sofrimento.

Tendo planejado fazer durante esta semana a narração da triste aventura desse miserável, concebera a princípio a ideia de oferecer como que dois quadros dos quais um representasse a sua vida tempestuosa, e outro o seu fatal desenlace; mas lembrando-me de que os pecadores, sempre inclinados ao que lhes pode evitar a conversão, no caso de eu dividir o meu discurso se convencessem de que poderiam facilmente destacar o que, por desfortuna, anda muito relacionado, e lembrando-me ainda de que a esperança falta de corrigirem na morte o que faltasse na vida, lhes prolongasse a impenitência por mais tempo, por isso me resolvi a fazer-lhes ver neste único discurso a maneira como insensivelmente se pode cair duma vida licenciosa para uma morte desesperada.

E assim, contemplando esses pecadores com os mesmos olhos tudo o que fazem e o que obtém o sítio onde estão e onde se debatem, podem desviar-se do caminho por que enveredaram, com receio de caírem no abismo onde esse caminho conduz. Antes, porém, ó divino Espírito, tornai eficaz este meu discurso, porque sem vós todos os meus pensamentos deixam de ser enérgicos, todas as minhas palavras deixam de ter ação, e, para alcançar o que desejo, bom é que implore a intercessão da Virgem Santíssima, rezando-lhe fervorosamente uma Ave-Maria.

Acreditar que entre a vida e a morte haja uma disparidade tão grande como no-la representam os pintores e os poetas nas suas enfatuadas descrições, é coisa em que não devemos confiar demais e que nem nos deve surpreender. É necessário pintá-las com as mesmas tintas, descrevê-las com os mesmos traços. Por isso os homens se enganam quando, achando penosa a conversão durante a vida, imaginam que a morte há de aplanar tais dificuldades e que lhes será mais fácil essa conversão, quando a natureza atingir a sua evolução última e irremediável. Deveriam antes compreender que a morte não tem um ser distinto que a separe da vida, porque é propriamente uma vida que chega ao seu termo.

Ora, quem é que ignora, cristãos, que no final da peça, aparecem em cena os mesmos personagens que anteriormente apareceram, do mesmo modo que procedem sempre da mesma origem as águas duma torrente, quando se reúnem? É, pois, este jogo, esta relação, que é necessário hoje compreendermos; e, para mais distintamente se perceber a maneira como acaba na morte o que se passa durante a vida, esbocemos aqui rapidamente a vida dum homem mundano.

O homem mundano dedica todos os seus cuidados aos prazeres e aos negócios da vida. Pelo apego dos prazeres, não pertence a Deus; e pela ânsia dos negócios, não pertence a si mesmo. Estas duas coisas juntas tornam-no indiferente pelos males alheios. Assim o nosso mau rico, homem material e folgazão, e, se quiserdes, intendente em negócios e intriguista, fascinado pelos prazeres e atarefado pelos muitos serviços, nunca, ao passar, parava à porta do pobre Lazaro, para o ver morto de fome e cercado de miséria.

É esta a vida dum homem mundano. E quem sabe se todos os que me escutam poderão entrar em breve nalguma parte da parábola. Mas vejamos o fim desta aventura. A morte que lentamente avançava, chega sem ser esperada, inopinadamente. Esse mundano insaciável, indiferente e impiedoso, sabe que chegou enfim a sua última hora; e então, acorda sobressaltado, como quem desperta duma modorra profunda, e começa a arrepender-se de se ter afeiçoado tanto ao mundo, que é obrigado a deixar finalmente. Deseja quebrar logo os laços que a ele o prendiam, mas conhece, se é que alguma coisa conhece, que é impossível, pelo menos de repente, fazer um rompimento tão brusco. Lavado em lágrimas, pede tempo para completar tão grande obra, mas vê que todo o tempo lhe foge. Ah! Numa ocasião tão urgente, em que todas as graças são poucas, implora ele um fervoroso auxílio; mas como ele próprio nunca teve dó de ninguém, por isso fica surdo tudo que o rodeia no dia do seu martírio.

E assim, em virtude dos prazeres e das ocupações que se entregou com grande zelo, em virtude da dureza de coração que o caracteriza, chega esse infeliz, em primeiro lugar, ao maior desamparo sem um único socorro; em segundo lugar, ao mais penoso trabalho sem descanso; e finalmente a mais extrema miséria sem um auxílio. Ó Senhor Deus onipotente, tornai eficazes as minhas palavras, a fim de gravar nos corações dos que me ouvem tão importantes verdades!

Comecemos por dissertar sobre o apego ao mundo.

PRIMEIRO PONTO

A opulência, a ventura, a vida indolente e cheia de voluptuosidades, comparam-se muitas vezes na Sagrada Escritura a rios impetuosos, que correm sem parar, e se despenham sem poderem sustentar o seu próprio peso. Mas se a felicidade mundana se compara a um rio na sua inconstância, assemelha-se-lhe também na força, porque, ao despenhar-se, impele-nos, e quando deriva, arrasta-nos: Attendis quia labitur, cave quia trahit, diz Santo Agostinho (1).

Vou hoje, meus senhores, figurar-vos esse poderoso ímã, e mostrar-vos claramente os laços ocultos em que o vosso coração está preso. Mas, para compreenderdes todos os graus dessa deplorável servidão em que nos lançam os bens terrenos, vede o que em nós produz o apego dum coração que os utiliza, e o apego dum coração que a eles se entrega. Oh! Que cadeias e que escravidão! Mas digamos as coisas por sua ordem.

É um erro da parte, das almas simples e ignorantes, que não foram bafejadas pela sorte, suporem que a posse dos bens terrenos liberta melhor a alma. Imaginam, por exemplo, que a avareza deixaria logo de existir, e que ninguém seria já afeiçoado as riquezas, se ao menos tivesse o necessário para viver. Ah! Dizemos nós, então é que o coração, escravizado pela necessidade, tomaria completa liberdade, passando a um estado tranquilo e feliz.

Confessemos a verdade perante Deus. Todos os dias afagamos este pensamento, mas certamente nos iludimos, porque é deveras crasso o nosso erro. Realmente, é uma loucura imaginar que as riquezas curam a avareza, como se fossem uma água que pudesse saciar a sede duma vez.

Nós sabemos, por experiência, que o rico, que tudo possui em abundância, não se irrita menos com os prejuízos que sofre do que o pobre a quem tudo falta. Ora isto não é de admirar, porque devemos compreender que não é só em relação a tudo quanto possuímos que dedicamos um afeto geral; também dedicamos um afeto particular a cada parcela da nossa riqueza, o que nos prova que a alma não deixa por isso de lhe ter menos apego, e que não é o prejuízo menos sensível na abundância do que na miséria. É como os cabelos, que produzem sempre a mesma dor, quer se arranquem duma cabeça calva, quer duma formosa cabeça toda coberta deles. A dor é sempre a mesma, porque cada cabelo, com a sua raiz, é sempre arrancado com a mesma violência. Ora, estando cada pequena parcela do bem que possuímos presa no fundo do coração pela sua raiz particular, claramente se conclui que a riqueza não é menos escravizada do que a indigência; pejo contrário, vive mais cativa, mais encarcerada, tem mais laços que a prendem, e um peso maior que a oprime. E assim, se afeiçoa o homem mundano, com imenso amor, a sua própria riqueza.

Mas na sua abundância, como em tudo, ficaria pobre, se não soubesse servir-se da felicidade com que nasceu. Vejamos, portanto, o que ele faz; mas para procedermos sempre com método, ponhamos de parte os que se dedicam a dominar pelos excessos, e consideremos por um momento os outros, que se julgam moderados, quando afinal se entregam de todo as coisas lícitas.

O mau rico da parábola deve fazer tremer esses até as entranhas. Quem não tem ouvido dizer sempre que o Filho de Deus não fala dos adultérios, dos latrocínios, nem das violências do mau rico? A sua vida folgada e licenciosa constitui só por si uma parte tão considerável do seu crime que pode dizer-se que é o único desmando que registra o nosso Evangelho.

«É um homem, diz São Gregório, que se expôs a ser condenado pelas coisas lícitas, porque a elas se dedicou inteiramente, e porque delas fez um uso imoderado»

Isto prova à saciedade, cristãos, que nem sempre o objeto proibido constitui crimes condenatórios, mas sim muitas vezes o apego que se tem a esse objeto: Divitem ultrix gehenna suscepit, non quia aliquid illicitum gessit, sed quia immoderato usa totum se licitis tradidit (2). Coisa estranha é esta, meu Deus, que até faz com que exclamemos com o Salvador:

«Ah! Como é apertado o caminho que nos conduz á vida eterna!» (Mt 7, 14)

Seremos, pois, tão infelizes que até no uso do que é lícito tenhamos de ver qualquer coisa que seja defeso? — Sem dúvida alguma, cristãos. Todo aquele que tem os olhos abertos para entender a força deste oráculo pronunciado pelo Filho de Deus: «Ninguém pode, servir a dois senhores» (Mt 6, 24), poderia facilmente compreender que seja qual for o bem a que o coração me incline, quer ele seja lícito, quer ilícito, deixa de pertencer a Deus, se a ele se dedicar inteiramente; do mesmo modo que pode haver inclinações condenáveis para coisas que, por sua natureza, sejam inocentes. Sendo assim, cristãos (e quem pode duvidar de que assim não seja após a confirmação da Verdade?), como me apavora a condição dos grandes e dos ricos do mundo! E como eu receio o mal que lhes possa acontecer pelos crimes graves e ocultos que estreitamente se confundem, e que apenas se acham dependentes dum secreto impulso do coração e dum afeto quase insensível! Mas nem todos compreendem estas palavras, e, portanto, passemos adiante, cristãos. Já que esta verdade é incompreensível para os mundanos, esforcemo-nos por lhes mostrar o estado deplorável a que chega a sua alma, devido a uma queda maior.

Tendo os mundanos tão pouco cuidado em se moderar nas coisas que são permitidas, é impossível que depois se não lancem temerariamente atrás das que são manifestamente ilícitas, visto a organização do nosso espírito ser de maneira a não poder conter-se facilmente dentro dos limites marcados. Isto todos o sabem por experiência, e foi também por experiência que Jó o conheceu, quando disse: Pepigi faedus cum oculis meis (Jó 31, 1): Eu fiz um pacto com meus olhos «de não pensar em nenhuma beleza mortal». Vede como ele regula a vista para deter o pensamento. Reprime olhares que poderiam ser inocentes, para deter pensamentos que aparentemente seriam criminosos. O que talvez não seja claramente proibido pela lei de Deus, considera-o , ele por meio dum contrato feito de propósito com os olhos.

E porque? Porque sabe que, quem se entregou às coisas lícitas, sente todo o coração invadido por uma alegria mundana; e a alma, comprazendo-se em tudo o que lhe é permitido, começa, a irritar-se, se abusa do que lhe é lícito. Estranha condição a nossa! Vede agora, cristãos, se uma liberdade que caminha até as portas do vício não irá mais tarde até aos limites da licença, ultrapassando depois esses limites com um único passo, com certeza que, correndo vertiginosamente pelo vasto campo das coisas permitidas, não poderá passar um só momento, acontecendo-lhe necessariamente o que de si disse o grande São Paulino:

«Eu vou além do meu dever, se não tiver o cuidado de me moderar dentro do que me é licito» – Quod non expediebat admisi, dum non tempero quod licebat (Epist. III, ad Sever., n. 3)

E depois, cristãos, se Deus não operar milagre, a licenciosidade dos afortunados não conhecerá limites. Prodiit quasi ex adipe iniquitas eorum (Sl 72, 7):

«Na materialidade e na abundancia em que vivem, diz o Espírito Santo, criam um fundo de iniquidade que jamais se extingue»

Daí provem os pecados dominantes que, não satisfeitos com serem tolerados ou mesmo perdoados, desejam também ser aplaudidos. E então há quem ostente o desprezo por todas as leis, insultando publicamente a honra do gênero humano. Ah! Se eu pudesse agora abrir-vos o coração dum Nabucodonosor ou dum Baltasar, ou de qualquer outro desses reis soberbos que se acham representados na História Sagrada, havíeis de ver apavorados o que pode, num coração que olvidou a Deus, o horrível pensamento de não termos coisa alguma que nos constranja. Havíeis de ver então como a cobiça vai todos os dias aumentando e sobrelevando-se a si mesmo; como se originam vícios desconhecidos, monstros de avareza, requintes de voluptuosidade e extremos de orgulho inqualificáveis.

Mas o que é mais para admirar é que no meio de todos estes excessos, há muitas vezes quem, vivendo uma licença desmedida, cuide ser virtuoso porque enumera, dentre as virtudes que possui, todos os vícios de que quer ficar isento; e assim julga beneficiar a Deus e a justiça divina o não a irritar completamente. A impunidade torna o homem temerário; faz com que Ele não pense no juízo final, nem sequer na morte, até que um dia ela virá inesperadamente por termo à série de crimes, para dar começo à dos suplícios.

É verdadeiramente extravagante imaginar que, sem a intervenção dum milagre, se possam num dado momento quebrar laços tão fortes, alterar inclinações tão inveteradas, destruir, enfim, com um só golpe todo o trabalho de muitos anos. E certo que, enquanto a enfermidade evita temporariamente os mais violentos assaltos da cobiça, é fácil a qualquer pessoa armar num fingido penitente, pelo receio que lhe possa causar a mesma enfermidade.

O coração tem impulsos artificiosos que nascem e desaparecem muito de repente; mas os seus verdadeiros impulsos não é assim que se produzem. O espírito dum homem que se regenera não adquire um depuramento instantâneo, nem as suas afecções viciosas, tão intimamente inveteradas, desaparecem por meio dum único esforço. A própria morte não tem poder nem graça extraordinária para operar de repente uma transformação tão milagrosa. Talvez imagineis que a morte tudo nos rouba, e que, por esse motivo, nós resolvemos facilmente a privar-nos do que temos de perder. Desenganai-vos, cristãos; devemos antes recear um efeito contrário, porque é próprio do coração humano forcejar heroicamente por conservar o bem que pretendem tirar-lhe.

Vede esse rei de Amalec, terno e voluptuoso, que, sentindo a morte próxima, clama, banhado em lágrimas:

Siccine separat amara mors?
«Então é assim que a morte cruel arrebata as coisas?»

Naquele momento pensava ele na glória e nos prazeres; e, em presença da morte, que lhe rouba tudo o que ele possuí, todas as suas paixões abaladas se irritam e despertam violentamente.

Deste modo, a privação brusca do objeto possuído aumenta, não só mais tenebrosamente o amor por esse objeto, mas também mais entranhada, mais intimamente. E o pesar amargo que se sente de ser privado de tudo, se pudesse explicar-se, em vez de refutar, confirmaria, por meio dum ato final, tudo o que se passou durante a vida. É isto, meus senhores, que faz com que eu receie que as belas conversões dos moribundos não passem de palavras, ou de exterioridades, ou de pensamentos excitados, e não fiquem indelevelmente gravadas na consciência. — Mas, poderão alegar-me, esses moribundos fazem atos maravilhosos de abnegação – Sim, mas podem ser violentados: podem ser inspirados pelo próprio amor que tenham aquilo que possuem. – Mas é que eles detestam todos os seus pecados, poderão retorquir-me. – É certo, mas porque talvez sejam condenados a retratar-se antes de sofrerem o último suplício. – Mas porque fazeis tão maus juízos? Poderão volver-me ainda. – Porque, havendo começado tarde demais a obra da sua completa abnegação, faltou-lhes o tempo para concluírem tão grande tarefa.

SEGUNDO PONTO

Todos os dias ouço dizer aos homens mundanos que não tem um momento de descanso, que todas as horas passam rapidamente, que todos os dias acabam muito depressa; e neste movimento eterno, a grande obra da salvação, que é sempre a que fica de reserva, só é lembrada inteiramente a hora da morte, com tudo o que ela tem de mais espinhoso.

Duas causas vejo eu que evitam a realização dessa obra: a primeira, é a nossa ambição, a segunda, os nossos cuidados.

A ambição estimula-nos e preocupa-nos até ao último dia; os cuidados, porém, isto é, a impaciência, motivada por um temperamento enérgico e turbulento, lança-se numa tal sede de ocupações que a morte, quando chega, ainda nos acha entregues a uma infinidade de coisas supérfluas.

É baseado nestes princípios, ó homens mundanos, que eu vou dizer-vos qual será o vosso destino. Seja qual for a missão que desempenheis, ou a posição que vos garantam, nunca deixareis de ser ambiciosos.

Quando, chegados ao fim da vossa carreira, imaginais que não tereis de percorrer mais nenhuma; outra carreira se vos abre inopinadamente, e maior é o vosso desejo de a encetar. A razão é esta: é que o vosso temperamento subsiste o mesmo, e a facilidade na conquista vai sempre aumentando.

O que custa é começar; mas à medida que ides avançando, mais fácil se vos torna esse avanço. E se, corrêsseis com tanta rapidez, quando tivésseis de galgar precipícios, é fora de dúvida que não suspenderíeis repentinamente a vossa marcha, se désseis com um sítio plano.

Deste modo, todos os dons da sorte serão para vós um estimulo para vos acrisolardes de todo a uma ambição infinita.

Ainda mais: Quando deixar de haver quem vos dê, não deixareis vós de pedir. O mundo, pobre em efeitos, é sempre grandioso em promessas. Semelhante a um manancial de bens, que depressa se esgota, também ele ficaria completamente estéril, se não soubesse distribuir esperanças.

Há lá pessoa que mais facilmente alcance do que aquela que espera, porque a si própria ajuda a iludir-se? O dia menor dissipa-lhe todas as trevas e consola-a de todos os enfados.

E ainda mesmo que não lhe restasse uma única esperança, bastaria o longo hábito de esperar sempre, hábito adquirido na corte, para sempre se viver na expectativa e se conservar o título de pretendente, sem o qual pareceria impossível viver.

E assim vamos arrastando continuamente essa longa cadeia de esperanças, e com essas esperanças, uma vida cheia de espinhos, e por entre essa vida espinhosa, quantos pecados! Quantas injustiças! Quantas ilusões! E quantas iniquidades a mistura!

Vae, qui trahitis iniquitatem in funiculis vanitatis! «Ai de vós, diz o profeta, que arrastais tantas iniquidades pelas cordas da vaidade!» (Is 5, 18)

Significa isto, a meu ver, que praticais muitas coisas, iníquas no mar infinito das vossas esperanças falazes.

Que direi agora, senhores, desse temperamento irrequieto, amigo de saber novidades, inimigo do ócio, e impaciente com as horas do repouso? Porque é que ele nos agita constantemente, fatigando-nos e estimulando-nos em tudo com um afã incessante? Responde-nos a isto uma máxima muito verdadeira, mas mal aplicada: diz-nos a própria natureza que a vida consiste no movimento.

Mas os mundanos, sempre dissolutos, não conhecem a eficácia desse movimento sereno e interior que é o objeto da alma.

Parece-lhes a eles que se não desenvolvem, se se não agitarem, nem se movem, se não fizerem barulho; e então, imprimem à vida esse movimento acelerado e tumultuoso, e entregam-se a um comercio eterno de intrigas e de visitas cerimoniosas, que lhes não deixa um só momento livre.

Às vezes, sentem-se incomodados com essa vida afanosa, e queixam-se dela; mas não os acrediteis cristãos, que eles dizem isso por zombaria, não sabem o que querem. Aquele que se queixa de trabalhar muito, não poderia suportar o repouso, se se visse livre desse trabalho. Trabalhando, parecem-lhe os dias excessivamente curtos; não trabalhando, serve-lhe o ócio de fardo penoso. Vive sujeito a outro? Mas essa sujeição apraz-lhe; e esse movimento perpétuo, que quase o escraviza, não deixa de o satisfazer, com a ideia numa liberdade vaga.

É como uma árvore, diz Santo Agostinho, que o vento parece afagar, brincando com as folhas e com os ramos, e embora esse vento a afague, agitando-a apenas e inclinando-a ora para um, ora para outro lado, inconstantemente, diríeis contudo que a árvore se regozija com a liberdade do seu movimento.

Do mesmo modo, diz o eminente bispo, embora os homens mundanos não tenham verdadeira liberdade, vendo-se quase sempre obrigados a cederem ao vento que os impele, imaginam, contudo, gozar duma certa aparência de liberdade e de paz, espalhando por todos os lados os seus desejos vagos e, indecisos: Tanquam olivae pendentes in arbore, ducentibus ventis, quasi quadam libertate aurae perfrunntur vago quodam desiderio suo (3).

É este, parece-me, meus senhores, um verdadeiro traslado da vida mundana e da vida da corte. Que fazeis, porém, ó intendente em porque vos convencestes de que estais perigosamente doente. Mas o pior é que o tempo não chega para liquidar um negócio tão intrincado como é o da vossa vida, de que tendes de dar estreita conta! Eu não vou agora aqui falar da vossa família que vos suaviza as amarguras, nem da vossa doença que vos molesta, nem do receio que vos apavora, nem das sombras que vos entenebrecem, nem das dores que vos oprimem; apenas considero a urgência que tendes em vos salvardes.

Atendei à maneira como vos batem à porta. Se a não abris depressa, não tardará que vo-la arrombem. Para que servem tantas sentenças e tantos adiamentos, se tendes de comparecer no tribunal da justiça divina? Escutai a solicitude com que Deus vós fala pela boca do seu profeta:

«Chegou o fim da tua vida; a morte vai agora arrebatar-te, e a minha cólera cairá sobre ti, eu hei de julgar-te segundo as tuas ações, e tu saberás finalmente que eu sou o Senhor, teu Deus»

Que ataque tão formidando, Deus de Justiça! Mas eis que surge novo assalto:

«Chegou o fim da tua vida. A justiça, que tu julgavas dormindo, acordou para te fulminar; já bate á tua porta»

Ecce Venit «O dia da vingança aproxima-se»

Todos os terrores te pareciam vãos, e todas as ameaças ineficazes; e «agora, diz o Senhor, a maldição vai cair sobre ti, sobre a tua cabeça farei pesar todos os teus crimes, e tu saberás que sou eu o Deus de Justiça» – Venit tempus prope et dies occisionis… Nunc de propinquo effundam iram meam super te…, et imponam tibi omnia scelera tua… Et scietis quia ego sum Dominus percutiens (Ez 7, 7-9).

São estas, meus senhores, as palavras com que Deus nos empraza a comparecer no seu tribunal. O dia, porém, em que devemos comparecer é este: Ecce dies, ecce venit: egressa est contritio (Ez 7, 10).

O anjo que preside a morte afasta-se dum instante para o outro, para tornar mais longo o tempo da penitência; mas finalmente desce uma ordem do céu, que diz: Fac conclusionem (Ez 7, 23): Acabai depressa, que está aberta; a audiência, e o Juiz está já sentado na sua tribuna.

Vinde advogar a vossa causa, ó réu. Pouco tempo tendes, porém, para vos preparardes! E quantos inúteis clamores haveis de soltar! Quantos suspiros amargos haveis de despedir do vosso peito, passados tantos anos perdidos em vão! E tudo para quê? Para não vos restar, já uma única parcela de tempo, pois ides entrar na mansão dá eternidade. Eu vejo-vos assombrado e atônito, na presença do vosso Juiz, fitando com insistência os vossos acusadores. E quem são eles? São os pobres que vão revoltar-se contra a vossa crueza inexorável.

TERCEIRO PONTO

Meus senhores: O grande apóstolo São Paulo, na segunda Epístola a Timóteo, ao referir-se a todos os egoístas e mundanos, chama-lhes «homens cruéis, insensíveis e impiedosos» – Sine affectione, immites, sine benignitate, voluptatum amatores (2 Tm 3, 3-4); e eu muitas vezes me tenho admirado duma tão extraordinária contextura.

Efetivamente, esse cego apego aos prazeres parece a primeira vista um meio para recrear o espírito, e não uma coisa cruel e nociva; mas é fácil convencermo-nos de que nesse bem aparente existe uma força maligna e perniciosa. E Santo Agostinho serve-se desta comparação para no-lo explicar: Olhai para as sarças eriçadas de espinhos, diz ele (4), que causam horror a quem as vê; tem uma raiz que é macia e que não fere; mas é precisamente essa raiz que dá esses bicos aguçados, que fazem gotejar sangue das mãos de quem lhes tocar. Tal o amor pelos prazeres. Quando ouço falar os voluptuosos no livro da Sabedoria, todas as suas palavras são um verdadeiro encanto e uma verdadeira sedução; tudo para eles são flores, banquetes, danças, divertimentos. Coronemus nos rosis (Sb 2, 8):

«Ponhamos nas nossas cabeças coroas de flores, antes que elas murchem, dizem eles»

Depois convidam toda a gente a tomar parte na sua crápula e nos seus prazeres dissolutos: Nemo nostrum exors sit luxuriae nostrae (Sb 2, 8). Tem então palavras muito ternas! Tomam um caráter prazenteiro comunicam a todos a sua alegria, colocando-os muito a vontade ! Mas vede que, se deixardes crescer essa raiz, os espinhos não tardarão a rebentar, como se depreende destas palavras, proferidas por eles:

«Oprimamos o justo e o pobre» – Opprimamus pauperem justam (Sb 2, 10)

Não perdoemos a viúva nem ao órfão.

Que mudança foi esta, senhores? Quem esperaria duma tão agradável ternura uma crueldade tão desumana? É o espírito da voluptuosidade a manifestar-se da voluptuosidade que se compraz em oprimir o justo e o pobre. O justo, porque é seu inimigo; o pobre porque deve constituir a sua preza.

Contrariam-na no seu caráter? Ela enfurece-se logo. Exauriu-se a si própria? Recorre imediatamente aos saques para de novo se prover. E assim se torna cruel e insuportável essa voluptuosidade que era tão sedutora, tão farta e tão indulgente.

Dir-me-hei certamente, senhores, que mui longe estais de chegar a tal ponto; e eu creio bem que neste auditório e na presença dum rei tão justo, não poderiam existir semelhantes desumanidades.

Mas sabei que o crime da crueldade não consiste unicamente na opressão dos fracos e dos inocentes. O mau rico prova-nos, que, além desse ardor furioso que pratica violências, há ainda a dureza que não dá ouvidos a queixas, não abre as mãos a um auxílio, nem o peito a compaixão. É essa dureza, senhores, que criai ladrões que não roubam, e assassinos que não matam. Todos os santos Padres são unanimes em afirmar que o rico do Evangelho, por ser cruel, despiu o pobre Lázaro, sem o ter vestido, e matou-o barbaramente, sem lhe ter dado de comer: Quia non pavisti, occidisti (5). E esta dureza homicida derivou da abundancia e da crápula. em que ele vivia.

Deus de justiça e de bondade! Foi para isto que destes aos grandes da terra um raio do vosso poder? Não. Vós enobreceste-los para que eles servissem de amparo aos pobres; a Vossa providência desviou todos os males de cima da cabeça deles, para que eles cuidassem dos males do próximo; proporcionastes-lhes um bem-estar e o gozo da liberdade, para que eles completassem a obra da proteção dos Vossos filhos.

Mas a magnificência que desfrutam torna-os, pelo contrário, indiferentes pelas misérias alheias; a abundância em que vivem torna-os cruéis; a felicidade de que gozam torna-os insensíveis, ainda mesmo que todos os dias lhes batesse à porta a personificação da pobreza e da miséria, lacrimosa e gemebunda.

Isto, porém, nada me admira, cristãos. Outros pobres mais importunos e mais famintos conquistaram melhor terreno, fazendo desaparecer secretamente as liberalidades que alcançaram. Sejamos mais explícitos: Há uns pobres que vivera dentro de nós e que apesar de satisfeitos, não deixam nunca de murmurar, mostrando-se sempre ávidos, sempre famintos, no meio da profusão e do excesso. Esses pobres são as nossas paixões e os nossos desejos cúpidos. De que serve, o pobre Lázaro, estares a gemer a porta da tua casa, se esses pobres estão já às portas do coração, assediando-o, em vez de se aproximarem, extorquindo, em vez de pedirem? Que audácia, meu Deus! Imaginai, cristãos, uma população furiosa, numa revolta, pedindo arrogantemente, e muito resolvida a empregar meios de extorsão, se lhe negam o que ela pede. Assim na alma do mau rico. E não é preciso ir procurá-lo na parábola, porque muitos o encontrarão na sua consciência. Na alma do mau rico, como na dos seus cruéis imitadores, em que a razão deixou de imperar e as leis deixaram de ter vigor a ambição, a avareza, a languidez e todas as outras paixões, horda amotinadora e desenfreada, atroam os ares por toda a parte com este grito sedicioso:

«Traze, traze» – Dicentes: Affer, affer (Pv 30, 15)

Traze sempre alimento à avareza, traze uma sumptuosidade mais requintada a este luxo singular e escrupuloso; traze prazeres mais esquisitos a este apetite nauseado com a abundância.

E por entre os gritos furiosos desses pobres imprudentes e insaciáveis, como podereis ouvir a voz débil dos outros pobres que tremem na vossa presença, e que, habituados a vencerem a pobreza com o trabalho e com o suor do seu rosto, preferem morrer de fome a descobrirem a sua miséria?

Morrem de fome, sim, meus senhores; morrem de fome nas cidades, nas aldeias, a porta das vossas casas ou nas proximidades, e ninguém acode a socorrê-los, quando eles vos pedem unicamente o supérfluo, umas migalhas, que vos cresçam da mesa, uns sobejos dos vossos lautos manjares. É que esses pobres que vós extraordinariamente sustentais dentro de vós esgotam tudo o que possuis.

A profusão é o de que eles necessitam. Não carecem apenas do supérfluo, querem também o excesso; e deste modo os pobres de Jesus Cristo ficarão sem uma esperança, se não aplacardes esse tumulto e essa sedição interior. E, contudo, eles poderiam viver, se lhes désseis qualquer coisa do que desperdiça a vossa prodigalidade, ou do que economiza a vossa avareza.

Mas independentemente de todas essas paixões violentas, basta a felicidade só por si para endurecer o coração humano. O bem-estar, a alegria e a abundância invadem a alma de tal modo que desvanecem todo o sentimento da miséria alheia, e, se não houver cuidado, podem extinguir de todo a compaixão. Desta forma, serão amaldiçoadas todas as pessoas felizes, e é então que o espírito do mundo mais parece opor-se ao espírito do cristianismo.

E que outra coisa é o espírito do cristianismo senão um espírito de fraternidade, um espírito de amor e de compaixão, que nos faz sentir os males dos nossos semelhantes, compartilhar dos seus interesses e de todas as suas necessidades? O espírito do mundo, pelo contrário, isto é, o espírito de grandeza, é um excesso de amor-próprio, que, não pensando nos outros, só cuida em si, parecendo-lhe que nada mais existe. Escutai como ele fala no profeta Isaías:

«Tu disseste intimamente: Eu sou, e só eu existo na terra» – Dixisti in corde tuo: Ego sum, et praeter me non est altera (Is 47, 10)

O Eu sou! Esta maneira de se exprimir dá a entender que se considera um Deus, parecendo até imitar aquele que disse:

«Eu sou quem sou» (Ex 3, 14)

Eu sou, e só Eu existo. De maneira que tudo o mais nada vale, que é o mesmo que dizer que nada mais existe. Cada um só conta consigo, e, sem se importar com o resto, procura viver desafogadamente, uma soberana tranquilidade do respeito dos flagelos que oprimem o gênero humano.

Ah! Mas Deus é justo e equitativo, e vós haveis de ter também, ó rico impiedoso, dias de necessidade e de angústia. Não imagineis que eu vos ameace com a mudança da vossa sorte, porque isso é uma coisa contingente; mas o que é certo é que pode acontecer. Num dia aprazado haveis de ser vítima duma doença funesta e, apesar de vos encontrardes no meio de inumeráveis amigos, de médicos e de servos, não haveis de ter uma só pessoa que vos acuda, e ficareis mais desamparado, mais ao abandono do que um pobre que morreu nas palhas e que não tem um lençol onde se embrulhe para descer à sepultura.

Nessa doença fatal que vos há de acometer, os amigos só servirão para vos incomodar com a sua presença; os médicos para vos atormentar; e os servos para andarem dentro de vossa casa dum lado para o outro, muito açodados, mas mostrando um zelo inútil.

Do que vós precisais é doutros amigos e doutros servos; e os únicos que seriam capazes de vos acudir são esses pobres que esmagastes com o vosso desprezo. Porque não pensastes a tempo em granjeardes esse amigos, que agora vos receberiam de braços abertos no tabernáculo eterno? Ah! Se tivésseis aliviado a sua miséria, se vos tivésseis condoído do seu desespero, se tivésseis escutado ao menos, os seus queixumes, a vossa misericórdia subiria ao céu a pedir a Deus por vós, e esses pobres, em recompensado lenitivo que désseis a amargura que os assoberbava, entornariam sobre vós, mananciais de bênçãos que vos dariam a alma um prazer infinito.

Abençoados seríeis por eles, se os vestísseis, se lhes mitigásseis as dores e lhes saciásseis a fome. Os anjos da sua guarda velariam a roda do vosso leito como amigos oficiosos; e os médicos espirituais conferenciariam noite e dia para acharem o melhor meio de vos curar com remédios eficazes. Mas vós agrediste-os com o desprezo; e o profeta Jeremias representa-os a lançarem sobre vós uma condenação impiedosa.

Assisti agora a este grande espetáculo, senhores; os santos Anjos no quarto dum mau rico moribundo. Enquanto os médicos dão o seu parecer acerca do estado da sua doença, e a família, cheia de terror, aguarda o resultado da conferência, outros médicos invisíveis discutem sobre uma doença muito mais perigosa:

Curavimus Babylonem, et non est sanata – «Esteve Babilônia em tratamento nas nossas mãos, e não se curou» (Jr 51, 9)

Também andamos empenhados no tratamento do rico cruel, ministrando-lhe emolientes, e ungindo-lhe o coração com brandas fomentações, e ele não embrandeceu, e a sua dureza não se quebrantou! Tudo foi contra a nossa expectativa; o doente piorou com os nossos remédios.

«Deixemo-lo consigo, dizem eles, voltemos para casa, donde viemos para acudir-lhe» – Derelinquamus eum, et eamus unusquisque in terram suam (Jr 51, 9)

Não lhe vedes na fronte o estigma dum réprobo? A dureza do seu coração endureceu contra ele o coração de Deus.

Os pobres denunciaram-no ao Tribunal divino, e o processo foi-lhe instaurado no céu. E embora, à hora da morte, ele seja liberal na distribuição dos bens que já não pôde guardar, o céu é insensível às suas súplicas e para ele (Var.: para ele; para a sua alma) não há misericórdia possível: Pervenit usque ad caelos judicium ejus (Jr 51, 9).

Vede, cristãos, se quereis morrer num abandono assim. E se este estado vos causa horror, escutai os brados da miséria, a fim de evitardes os clamores de censura que os pobres possam expedir contra vós. Ah! O céu ainda não perdoou os nossos crimes. Deus, quando deu a paz ao Seu povo, parecia ter aplacado a Sua justa ira; mas os nossos pecados contínuos fizeram-na atear, e Ele, dando-nos a paz, declarou-nos ao mesmo tempo a guerra.

Para punir a nossa ingratidão, enviou contra nós as doenças, a mortalidade, a miséria extrema, uma medonha intempérie, e não sei que coisa desordenada em toda a natureza, que parece ameaçar-nos com funestas consequências, se não conseguimos aplacar-lhe a divina cólera.

Nas províncias mais longínquas, e até nesta cidade no meio de tantos prazeres e de tantos excessos, há muitíssimas famílias que morrem de fome e de desespero. Isto é uma verdade evidente, pública e indestrutível. Ó dias calamitosos! Que alegria podemos ter, se por toda a parte vemos tão grandes infortúnios, desgraças tão eminentes, parecendo censurar-nos a cada passo perante Deus e perante os homens, por aquilo que perdemos com os sentidos, com a curiosidade e com o luxo? E não se procure saber até onde chega a obrigação de socorrer os pobres, porque a fome e o desespero que os domina decidem a questão.

A situação única em que devemos estar e em que temos de permanecer, e que, além disso, é unanimemente defendida por todos os teólogos, é que cada um socorra o próximo dentro dos limites das suas forças; porque, se o não fizer, será responsável pela sua morte, terá de dar contas a Deus pelo sangue que ele derramar pela alma que possa corromper, e por todos os excessos a que a violência da fome e do desespero o possam conduzir.

Que imenso prazer será o nosso em podermos dar vida ao nosso semelhante! Que unção divina e espiritual não há de invadir os nossos corações por aliviarmos a miséria do próximo, por consolarmos Jesus Cristo, que sofre por eles, por darmos, enfim, refrigério ao seu ventre esfaimado, como o diz o santo Apóstolo! Viscera sanctorum requieverunt per te, frater. Ah! Que prazer tão santo que deve de ser esse! Que prazer verdadeiramente real!

Senhor, Vossa Majestade é partidário deste prazer, porque dEle tem dado sobejas provas que hão de afirmas-se mais nitidamente noutras ocasiões. Aos vassalos compete ter esperança; aos reis cabe dar essa esperança, por meio de fatos. Eles não podem tudo o que querem? Darão, pelo menos, conta a Deus do que podem. É o que se me oferece dizer a Vossa Majestade.

O mais que tenho para dizer fica para Deus; e é apenas pedir-lhe humildemente que proporcione a um tão grande rei os meios de satisfazer com a possível brevidade o amor que ele nutre pelos seus povos, obrar de harmonia com a sua consciência, trabalhar pela conquista da sua maior glória, e estabelecer o apoio mais indispensável a sua salvação eterna.

Referências:

(1) In Ps., CXXXVI, n. 3

(2) Pastor., part. III, cap. XXI

(3) S. Agost., in Psal. CXXXVI, n. 9

(4) S. Agost., in Psal. CXXXIX, n. 4

(5) Lactam., Divin., Inst., lib. VI, cap. XI

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume II. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo II, p. 287-311)