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Sermão acerca dos Demônios

Sermão acerca dos Demônios (1653)

SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET

1.º Ponto. — O que é conhecido como ornamento às naturezas inteligentes converte-se-lhes em suplício.

Operação oculta da mão de Deus.

2.º Ponto. — Inveja: espécie de orgulho, mas que se dirige aos seus fins por ínvios caminhos, porque é um orgulho covarde e tímido. O orgulho manifesta-se naturalmente, porque aparenta generosidade.

Ciúme dos anjos. Faraó. Ezequiel, 32. Expedientes ocultos de que se serve o espírito maligno.

Tertuliano. Comparação da serpente: Tertuliano (Adv. Valent).

Independência do diabo. São João Crisóstomo. Exemplos.

3.º Ponto. — Os nossos vícios são mais para temer do que o diabo. Exemplo de Saul. Inveja.

Ductus est Jesu a Spiritu in disertum, ut tentaretur a diabolo
Jesus, foi levado em Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo (Mc 4, 1)

Quando os anjos, que foram outrora filhos e servos, e que agora são inimigos, foram expulsos do céu, bem comum de todas as naturezas inteligentes, para viverem na independência e assinalarem a sua própria grandeza, operou-se no céu uma grande convulsão, em virtude da qual eles perderam repentinamente a justiça em que Deus os havia criado. E logo depois, substituindo o luxo pela sua natural preeminência, servindo-se de maliciosos artifícios em vez de recorrerem a uma sabedoria celeste, preferindo o espírito de divisão a uma verdadeira e firme caridade, começaram esses anjos a encher-se duma grande soberba e a afundar-se no erro e na inveja, e vendo-se justamente reduzidos ao extremo da miséria, em virtude de terem caído no pecado, cobiçam agora, apesar da sua elevada condição, a humildade em que nós, pobres mortais, vivemos neste mundo. Convulsão foi essa verdadeiramente espantosa, originada por esses espíritos maléficos que nos odeiam, e que, bem compreendida, há de concorrer para a nossa salvação, ensinando-nos a ser tementes a Deus, pelo exemplo da ruína desses anjos maus, e a precavermo-nos contra eles, por meio do temor das suas astúcias. Eis o assunto que me proponho desenvolver neste discurso, que, sendo de tamanha importância e constituindo uma empresa tão salutar, não poderá certamente deixar de ter o auxílio do céu. O Espírito Santo descerá pois sobre nós, irmãos, e Maria auxiliar-nos-á com as suas preces; e visto que se trata de combater os demônios, não faltará um anjo que da melhor mente interceda por nós para implorar o socorro da Virgem: Ave-Maria.

É propósito seguro do Filho de Deus conservar os seus fiéis sempre em movimento, sempre ocupados, vigilantes e cheios de vida, sem nunca se entibiarem nem se darem a ociosidade. E como de todas as ocupações humanas a da guerra é que é a mais ativa, por isso Ele nos diz, na sua Escritura, que «a nossa vida é uma verdadeira luta» (Jó 7, 1), e se vivemos sempre a lutar, devemos andar constantemente precavidos:

Sobrii estote et vigilate – «Sede sóbrios e vigiai» (1Pd 5, 8)

O evangelho deste dia prova-nos a evidência esta verdade. Nele vemos Jesus ser levado ao deserto para ser tentado pelo diabo; isto é, vemos o nosso capitão descer ao campo de batalha para pelejar com os nossos inimigos invisíveis. Ductus [est Jesus a Spiritu in desertum, ut tentaretur a diabolo].

Não imagineis, porém, irmãos, que devamos ficar como simples espectadores desse combate admirável; pois temos, pelo contrário, de tomar nele uma parte muito importante. E se o Filho de Deus permite hoje ao demônio que o tente, é para nos mostrar com esse exemplo as perfídias de que todos os dias somos vítimas. E sendo assim, cristãos, combatamos sem tréguas, façamos o que se faz na guerra; mas antes de entrarmos na refrega, avancemos com o Salvador para reconhecermos esses inimigos que tão resolutamente marcham contra nós. Se cuidadosamente os observarmos no Evangelho deste dia, facilmente notaremos a soberba e a audácia do seu poder, que lhes permite tentar o Filho do próprio Deus, diligenciando fazê-lo ajoelhar aos pés.

Poderá haver audácia mais violenta? (Var.: maior insolência?). E não será indício duma força terrível o subitâneo rapto de Cristo do deserto para o pináculo do templo, se bem que Ele assim o permitisse para ensinamento dos seus fiéis? É indubitável que se eles são fortes e empreendedores, não são menos astuciosos e perversos.

O ódio inveterado que eles nos dedicam obriga-os a recorrerem a astúcias igualmente sutis e maliciosas. É assim que tentam a Jesus Cristo com a gula após um jejum de quarenta dias, dirigindo-lhe estas palavra: Dic ut lapides isti panes fiant – «Dizei a estas pedras que se convertam em pães»; e que procuram transportá-lo a vanglória, após um ato de paciência heroica. Que plano tão arrojado, e que astúcia tão bem imaginada.

Tudo isto, cristãos, nos deve meter medo, visto que temos de nos defender, a um tempo, da violência e da surpresa, da força e dos ardis. E, contudo, o mesmo Evangelho que nos representa esses inimigos com tão temível aparato, também nos mostra que é extremamente fácil vencê-los, pois, que basta uma simples palavra para lhes destruirmos todas as forças e lhes anularmos todas as astúcias. Eis, em poucas palavras, irmãos, o que o Evangelho nos diz acerca do estado dos nossos inimigos e do seu exército. Se lhes reparardes no passo audacioso, e no porte altivo e presumido, haveis de ver em primeiro lugar a força e o poder desses inimigos se lhes observardes o andar de mais perto, facilmente lhes reconhecereis os ardis e os subterfúgios; finalmente se aprofundardes o vosso exame, vereis que apesar da fisionomia soberba e do aparato formidável, já neles se vê o destroço e a derrota, a perturbação e o pavor e então, no momento em que se acham trêmulos e espavoridos pelo desbarato, é facílimo pô-los em debandada.

É isto o que intento fazer-vos compreender, começando já por explicar a força e o poder dos inimigos.

PRIMEIRO PONTO

Para vos fazer compreender qual a força dos inimigos que temos de combater, é absolutamente indispensável falar-vos da perfeição da sua natureza.

Mas como este discurso seria infinito, se eu, por espírito de curiosidade, me fosse a referir a tudo o que não diz a teologia, apenas vos direi, para vosso ensinamento, que é tal a nobreza da personalidade desses inimigos que os teólogos mal podem compreender a maneira como o pecado se pode introduzir numa perfeição tão eminente. Que uns simples mortais como nós, abismados numa ignorância profunda, oprimidos pela matéria que nos avilta, agitados por tantas ambições brutais, abandonem tantas vezes o estreito caminho da lei de Deus, embora este procedimento seja uma extrema insolência, não é isso uma coisa impossível de se acreditar; mas que essas inteligências divinamente iluminadas, cujos conhecimentos são tão elevados e tão ordenados os impulsos, inteligências que Deus criara com tanto primor e numa condição tão propícia, que eram dignas de alcançar a beatitude, se tivessem um momento de perseverança, que elas, apesar de tudo, se tenham afastado de Deus, embora tivessem a firme certeza de que a sua soberana felicidade só nEle podia residir, é que é verdadeiramente terrível e surpreendente.

O próprio profeta se admira disto, dizendo: Quomodo cecidisti de caelo Lucifer? (Is 14, 12). Ó Lúcifer, astro resplandecente, que brilhavas no céu com tamanho resplendor, como foi que caíste assim dum modo tão repentino? Qual foi a causa da tua queda? Quem te abriu as portas ao pecado, se o erro não podia existir em tão vasto saber, nem a surpresa numa luz tão intensa, nem a perturbação numa tão perfeita tranquilidade e num tal desprendimento da matéria? E contudo, irmãos, esse astro caiu, e arrastou consigo a quarta parte das estrelas.

Como foi que isso aconteceu? Não tenhamos ai curiosidade de penetrar num tão grande segredo, e reconheçamos apenas que na verdade uma criatura pouco valor tem.

Sim, o único motivo que eu vejo pelo qual os anjos puderam pecar, foi por serem criaturas; e a razão deste motivo é Santo Agostinho quem no-la explica (1). A criatura foi feita pela mão de Deus. Ora, é impossível admitir-se que ela seja essencialmente boa, só porque o seu princípio é a própria bondade.

Além disso, a criatura é tirada do nada; e então não é de admirar se ela contem em si qualquer coisa dessa origem baixa e obscura, nem tão pouco se, havendo saído do nada, nele recair tão facilmente por meio do pecado, que de novo o absorve, separando-o da origem da sua entidade. Deste modo, meus senhores, basta sabermos que os anjos eram criaturas para concluirmos que não eram impecáveis.

Esta honra só pertence a Deus. É certo que são seus semelhantes, mas não em tudo. E diz Tertuliano que, embora vejamos «que uma imagem bem feita representa todos os contornos do original, não pode, contudo exprimir o seu vigor por falta de movimento; e por isso, por maior que seja a semelhança das perfeições infinitas de Deus nos anjos e nas naturezas espirituais, não podem eles nunca exprimir o seu caráter dominante, que é a facilidade de não pecar» – Imago, cum omnes lineas exprimat veritatis, vi tamen ipsa caret, non habens motum; ita et anima, imago Spiritus, solam vim ejus exprimere non valuit, id est non peccandi felicitatem.

A consequência de serem tirados do nada foi embevecimento dos primeiros anjos na contemplação da sua beleza; a extrema sedução pelas delícias da sua liberdade, de que quiseram dar uma prova funesta; e o esquecimento da mão liberal que os enchera de graças, devido a alucinação da sua própria grandeza. Dominados pelo orgulho de seu poder, não quiseram mais submeter-se a Deus; e, como abandonaram miseravelmente essa primeira bondade, que não era menos o apoio da sua felicidade do que o princípio da sua existência, não é de admirar que tudo se subvertesse e tão espantosamente se convulsionasse, visto que Deus assim o permitiu.

Tremamos, tremamos, irmãos, ao vermos, tanto esse trágico exemplo da fraqueza do ser criado, como o exemplo da justiça divina. Mas, desgraçados de nós! Por mais conselhos que nos deem todos os dias caímos no pecado, em conjunturas cada vez mais funestas e mais perigosas; nós cuidamos tão pouco da nossa vigilância como se fossemos impecáveis; e julgamos possível a fácil conservação, no meio de tantas tentações, do que em plena tranquilidade perderam criaturas tão perfeitas. Será por loucura? Será por sedução? Será porque ignoramos os infortúnios que ocasiona o pecado?

Mas lembremo-nos de que esses espíritos, que vimos tão esclarecidos, sofreram uma transformação tão extraordinária devido a um único crime, pois que, de anjos de luz, se converteram de repente em anjos de trevas; de filhos submissos que eram, tornaram-se inimigos irreconciliáveis; eram ministros imortais das vontades divinas, e ficaram por fim reduzidos a tão extrema miséria, que o seu mister desde então, mister aviltante e ignóbil, ficou sendo enganar os homens. Que vingança! Que transformação!

Foi o pecado que operou tudo isto, e nós não tememos o pecado! Já é sermos verdadeiramente cegos! Mas voltemos ao nosso assunto, e precisemos a força dos nossos inimigos pelo lado da perfeição da sua natureza.

É o grande apostolo São Paulo quem a isso nos induz com estas sublimes palavras: «Tornai as armas de Deus, diz ele, porque não tendes de lutar contrai carne e o sangue», nem contra força alguma visível: Non est nobis collactatio adversus carnem et sanguinem, se adversus principatus et potestates, adversus mundi rectores, contra spiritudlia nequitiae in caelestibus (Ef 6, 12); «senão contra os principados, contra as malícias espirituais» – spiritualia nequitiae. Porque exagera ele em termos tão violentos a natureza espiritual desses inimigos?

É porque nos corpos, além da parte ativa, também a parte passiva, a que nós chamamos matéria. Ora, se compararmos as ações das causas naturais com as dos anjos, veremos que aquelas nos parecem frouxas, e inertes, pelo tato da matéria enfraquecer a virtude que elas tem. Pelo contrário, esses inimigos invisíveis, que se opõem a nossa felicidade, não são de carne nem de sangue, segundo diz São Paulo. Tudo neles é volátil, tudo neles é espírito, que o mesmo que dizer que tudo neles é força e tudo vigor. São da natureza daqueles de quem está escrito «que sustentam o mundo» (Jó 11, 13). E daqui devemos concluir que o seu poder é muito para recear.

Mas talvez julgueis que a sua ruína os desarmou e que, pelo fato de caírem de tão alto, não puderam conservar todas as suas forças. Desenganai-vos, cristãos, que tudo neles existe integralmente, exceto a justiça e a santidade, e conseguintemente a beatitude. E a sólida razão disto está nos princípios de Santo Agostinho, que diz que a suprema felicidade dos espíritos não reside numa natureza proeminente nem num sublime raciocínio, nem na força, nem no vigor; mas consiste apenas na união com o Supremo Deus, por meio dum amor casto e duradouro. Quando pois dEle se afastam, não imagineis que seja necessário Deus alterar-lhes a natureza para lhes punir o desvario; o que faz, para se vingar deles, é unicamente, como diz Santo Agostinho, abandoná-los a sua própria razão: Quia superbia sibi placuerunt, Die justitia sibi donarentur (2). Deste modo, esses anjos rebeldes, ensoberbecidos com a glória da sua natureza, e com a vastidão dos seus conhecimentos, a ponto de quererem nivelar-se com Deus, nem por isso perderam os seus dons naturais. Esses ser-lhes-ão conservados; apenas haverá a diferença de se lhes converter em suplício o que lhes servia de ornamento, em virtude duma operação oculta da mão de Deus, que se serve das suas criaturas conforme lhe apraz, ora para o gozo duma soberana felicidade, ora para o exercício da sua justa e impiedosa vingança.

Por consequência, meus senhores, não devemos crer que pelo fato de terem caído, se lhes tenham esgotado as forças porque toda a Escritura lhes chama fortes. «Os fortes atacaram-me, diz Davi» – Irruerunt in me fortes (Sl 58, 4); e, por estas palavras, entende Santo Agostinho que elas se referem aos demônios (3). Jesus Cristo chama a Satanás «o homem forte e armado» – fortis armatus (Lc 11, 21). Não só dispõe da sua força, isto é, da sua natureza e das suas faculdades, mas também possui as armas, que são as invenções e o saber: fortis armatus. Noutra parte chama-lhe «o príncipe do mundo» – princeps hujus mundi (Jo 12, 31); e São Paulo, «governador do mundos» – rectores mundi (Ef 6, 12). E diz-nos Tertuliano que os demônios adornaram os seus ídolos com togas semelhantes as que envergavam os magistrados e que levavam adiante de si os fasces e outras insígnias de autoridade pública, na qualidade de «verdadeiros magistrados e príncipes naturais do século» – Daemones magistratus sunt saeculi (4); porque Satanás não é apenas o príncipe, o magistrado e o governador do século mas, para não deixar dúvida alguma do seu temível poder, diz-nos São Paulo que «também é o deus desse século» – deus hujus saeculi (2Cor 4, 4). E realmente, parece um deus sobre a terra, porque pretende imitar o onipotente. Não tem, como Ele, o poder de formar novas criaturas que se opusessem ao seu Criador; mas, no dizer de Tertuliano (5), tem como produto da sua ambição, a força necessária para corromper as criaturas de Deus e para as fazer insurgir o mais possível contra o Autor da criação.

Excessivamente orgulhoso com os seus triunfos, deseja ter finalmente honras divinas; e então, exige sacrifícios, recebe votos, manda erigir templos, como um vassalo rebelde que, por desprezo ou por insolência afeta a mesma grandeza do seu soberano: Ut Dei Domini placita cum contumelia affectans (6).

Tal é o poder do nosso inimigo; mas o que torna esse poder mais terrível é a maneira violenta como ele conjuga as suas forças no propósito de nos arruinar. Todos os espíritos angélicos, como muito bem diz Santo Tomás (7), são persistentes nas suas empresas. Enquanto nós vemos parcialmente os objetos e refletimos com madureza para afinal tomarmos resoluções imprecisas, os anjos, pelo contrário, no dizer de Santo Tomás, veem com largueza e nitidez o objeto que lhes prende a atenção, ponderam todas as circunstâncias que o rodeiam, e finalmente tomam uma resolução fixa, determinada e inabalável. Mas se eles tem qualquer pensamento enérgico, a que apliquem toda a sua inteligência, é por certo o de nos perder.

«É um inimigo que nunca dorme, nem deixa nunca de fazer atuar a sua malícia» – Pervicacissimus hostis ille nunquam malitiae suae otium facit

Embora triunfásseis dele, não conseguiríeis dominar-lhe a audácia, porque lhe excitaríeis a indignação. Tunc plurimum accenditur, dum extinguitur (8).

«Quando a sua cólera parece estar completamente extinta, é então que ela se ateia mais violentamente»

Esse orgulhoso, que pretendeu igualar-se a Deus, poderá acaso imaginar que uma criatura impotente seja capaz de lhe resistir? Apesar de viver eternamente em cárceres tenebrosos, não deixa contudo de empregar meios inúteis, mas obstinados, para embaraçar o mais que pode os desígnios de Deus. Ora, se ele para com Deus emprega meios de resistência, apesar de conhecer a inutilidade dos seus esforços, o que não empreenderá contra nós, cuja fraqueza tantas vezes experimentou?

Por isso vos aconselho caríssimos irmãos, a que estejais sempre de sobreaviso e sempre em defesa. Se ficardes vitoriosos, assim mesmo ainda deveis recear dele, porque é então que envida os seus maiores esforços e se serve dos seus expedientes mais temíveis. Quereis vê-lo claramente na historia do nosso Evangelho? Vede como ele tenta por três vezes o Filho de Deus. Apesar de ser três vezes repelido vergonhosamente, não perde ainda assim o ânimo, «e apenas se ausenta Dele por algum tempo», como diz a Escritura – Recessit ab illo usque ad tempus (Lc 4, 13). Não se considerando vencido, nem perdendo a esperança de triunfar, aguarda uma hora mais conveniente, uma ocasião mais oportuna. Que havemos de dizer a isto cristãos? Se uma resistência tão vigorosa não consegue diminuir-lhe o furor, quando poderemos esperar que ele nos dê tréguas? E se a guerra é contínua, se um inimigo tão poderoso nos persegue constantemente acompanhado de todos os seus anjos, que inúmeros cuidados e vigílias e previdência e inquietações não deve ter a todos os momentos a vida cristã? E, contudo adormecemos?… E então não me admiro de vivermos tiranizados por esse espírito maligno, nem de cairmos nas suas ciladas e de sermos vítimas dos seus ardis e dos seus embustes.

SEGUNDO PONTO

Como o inimigo a que nos estamos referindo é tão poderoso e tão soberbo, talvez imagineis, senhores, que ele vos tente a força de armas, e que de nada valham os ardis para tamanho poder e tamanha audácia. Efetivamente, observa Santo Tomás (9), que o gênio do mal só comete empresas arrojadas, porque deseja aparentar coragem, é inimigo da surpresa e das argúcias, e habituou-se unicamente a estabelecer planos formais e decisivos. Inútil seria, portanto, admitir que Satanás gostasse de subterfúgios, «se ele é o príncipe de todos os soberbos», como lhe chama a Escritura Sagrada: Ipse est rex super universos filios saperbiae (Jó 41, 25), e se a mesma Escritura nos diz que, além de soberbo, é invejoso: Invidia diaboli (Sb 2, 24) e, portanto, embusteiro e maligno. Ora, embora seja verdade a inveja ser urna espécie de orgulho, toda a gente sabe, porém, que é um orgulho covarde e tímido, que se oculta, que não se manifesta, que, envergonhando-se de si próprio (Ap 12, 12), só realiza os seus fins por meio de intrigas secretas; e é por isso que Satanás, cujo coração é corroído eternamente por uma negra inveja, vomitando lavas de fel sobre nós, é compelido a recorrer a fraude, ao embuste e a maliciosos artifícios. Isso porém, pouco lhe importa, contanto que nos arraste à perdição.

Mas donde lhe provém essa inveja que o torna mais ascoroso e mais perverso? Isto levaria muito a explicar-vos, e vós já estais com certeza suficientemente elucidados; pois não há ninguém que não saiba que esse insolente, que ousara atentar contra o trono do seu Criador, caiu fulminado do céu a terra, no meio duma grande raiva e dum grande desespero. Habens iram magnam. Conhecendo-se irremediavelmente perdido, e não sabendo em quem se vingar, dirige o seu ódio envenenado contra Deus, contra os anjos, contra os homens, contra todos as criaturas e contra si próprio.

E depois dessa queda fatal, esse espírito perverso, hediondamente jubiloso por ter cúmplices, companheiros da sua miséria, projeta com os seus anjos arruinarem tudo, e envolverem, se possível fosse, todo o mundo no seu crime. Daí provém esse ódio e essa inveja que o faz bolsar sobre nós lavas de amargo e negro fel.

Quereis vê-lo agora, cristãos, quereis ver esse espírito soberbo representado em Ezequiel com o nome de Faraó, rei do Egito? Que horroroso espetáculo! Em volta dele só se veem cadáveres de pessoas que foram cruelmente assassinadas. «Aqui jaz Assur, diz o profeta, com toda a sua gente; ali foi morto Elam e todos os que o seguiam; além, Mosoch e Thubal, reis de Idumeia e do Norte, com os seus príncipes e os seus capitães, e todos os mais que os acompanhavam; multidão imensa, povo inumerável», todos em volta dele se acham caídos por terra, nadando em sangue. «Faraó, no meio de toda aquela gente, consola-se com ver a carnificina e a ruína pavorosa do seu povo morto a ponta da espada. Faraó com todo o seu exército» é como Satanás com todos os seus cúmplices: Vidit eos Pharao, et consolatus est super (universa) multitudine sua quae interfecta est gladio: Pharao, et omnis exercitus ejus (Ez 32, 22-31).

À vista deste espetáculo, dirão os espíritos das trevas:

«Afinal não somos nós os únicos; temos mais companheiros. Ó justiça divinal quiseste suplicio? Aí os tens. Sacia a tua vingança nesse sangue, nessa carnificina. Esses homens que Deus quis igualar a nós estão também sujeitos aos mesmos tormentos, e isso grandemente nos apraz. Mais vale morrer do que vê-los glorificados ao nosso lado! Ai dos covardes que, como nós, hão de sofrer horrivelmente! Se é preferível morrer, que morram eles conosco.

Um dia teremos de ser julgados pelos mortais; mas já que Deus assim o quer, paciência. (Ah! Que raiva para os soberbos)! Mas antes disso, continuam, quantos não hão de morrer as nossas mãos, deixando lugares vagos para outros! E quantos criminosos não poderiam sentar-se no meio dos juízes!»

Em seguida, dirigindo-se aos santos anjos prosseguem:

Tendes juízes ao vosso lado? Também nós não estamos sós, pois achamo-nos cercados de inúmeros povos e nações. Vangloriai-vos com o vosso pequeno número de eleitos, que a custo arrancastes das nossas mãos; mas reconhecei ao menos que a nossa multidão acinge a maior vitória.

Que vos parece, irmãos, o longo arrazoado desses blasfemadores? Vede a raiva e a inveja que os assoberbam, e vede como triunfam da morte dos homens. É no que eles empregam todos os seus esforços, «é no que consiste toda a sua obra» – Operatio eorum est omnis eversio.

Porque o não conseguem eles também vingar-se de Deus? Porque não permite o seu infinito poder. Dominados por uma raiva impotente, vomitam todo o seu fel sobre o homem, que é a sua imagem, e, destruindo essa imagem por completo, afagam no espírito invejoso uma falsa ideia de vingança.

É a negra inveja, irmãos, causadora de fraudes e de embustes, que faz com que satanás se revolte contra nós, por meios secretos e impenetráveis. Ele não brilha como o relâmpago, nem ribomba como o trovão; assemelha-se a um vapor pestilento que atravessa as ares, devido a um contágio insensível e imperceptível aos nossos sentidos. É um gênio que inocula veneno no coração; ou, para me servir duma comparação que melhor o caracteriza, é um gênio que desliza como a serpente vil e ascorosa, falaz e perversa.

Assim lhe chama a Escritura (Ap 12, 9); e Tertuliano descreve-nos admiravelmente essa serpente do seguinte modo: Abscondat se itaque serpens, totamque prudentiam suam in latebrarum ambagibus torqueat – «Oculta-se o mais que pode, servindo-se de mil subterfúgios para esconder a sua maliciosa prudência» (10), isto usando de secretos conselhos e de astúcias profundamente estudadas.

Tertuliano continua assim:

«Foge a serpente para abismos profundos, temendo a luz; e escondendo a cauda, quando mostra a cabeça; nunca a move duma vez só; rasteja tortuosamente esse animal inimigo do dia, inimigo da luz» – Alte habitet, in caeca detrudatur, per anfractus seriem suam evolvat, tortuose procedat nec semel totus, lucifuga bestia (11)

Estas palavras, senhores, representam-nos Satanás em toda a sua hediondez. É ele que nunca se move duma vez só; que apresenta uma fisionomia atraente, mais que oculta o resto do corpo onde guarda; a perfídia; que rasteja quando ainda vem longe; mas que morde traiçoeiramente assim que se tem aproximado. «Acautelai-vos, caríssimos irmãos», exclama o grande apóstolo São Paulo, «tomai conta, não sejais enganados (por) Satanás; pois nós não ignoramos os seus ardis» – Ut non circumveniamur a Satana, non erim ignoramus cogitationes ejus (2Cor 2, 11). Sim, nós não ignoramos os seus ardis; sabemos que a sua malícia é engenhosa; que o seu espírito inventivo, requintado por uma longa prática e excitado por um ódio inveterado, só atua por artifícios muito sutis e por maquinações imprevistas. E quem poderia explicar-vos, irmãos, a grande penetração do espírito de Satanás, e os engenhos maliciosos de que essa serpente se serve?

Se vos surpreende o espírito num estado de agitação, procura reforçar essa agitação cada vez mais com o fim de vos perder.

Se no coração se vos acendeu qualquer pequena centelha de amor, ele começa a atear essa centelha energicamente até a converter em chama. E assim vos vai conduzindo do ódio a raiva, do amor ao transporte, e do transporte a loucura. Estais longe do crime, gozando as delícias sagradas duma pura consciência? Não o imagineis tão material que vos convide logo a imprudência. É o que diz São João Crisóstomo: Multa utitur versutia, perseverantia, attemperatione ad hominum perniciem, et a minimis statim congreditur. Multo, multo utitur condescensu ut nos ad mala praecipitet (12). Satanás usa para conosco duma grande, «condescendência»; e essa condescendência consiste em humilhar-se, mas duma maneira diferente da que Deus se humilha.

O que ele, faria, se pudesse, era transmitir-vos, antes de mais nada, a mesma malícia que ele possui; porque «esse velho adultero só deseja corromper a integridade das almas inocentes» (13), conduzindo-as, logo que nascem, á maior das infâmias.

Mas como, para isso, vos não considera excessivamente audazes, vê-se obrigado a recorrer a meios mais suaves, e então humilha-se, como diz São João Crisóstomo, domando-se a vossa fraqueza e usando de condescendência para convosco. — Ah! Basta-me um olhar, pensará ele então, ou, quando muito, uma palavra cortês e um inocente afago, para conseguir tudo o que desejo. — Acautelai-vos, pois, irmãos, que a serpente vai se aproximando, e, se a deixardes, com certeza vos morderá. Se sentirdes uma chama percorrermos as veias e espalhar-se por todo o corpo, tratai logo de a abafar, de a extinguir, porque é sinal de que Satanás vos quer perder.

Amante de torpezas provoca adultérios, perverte mulheres, mata-lhes os maridos, se elas os têm, chamando para cúmplices dos seus crimes a fraude e a perfídia.

Davi, o desventurado Davi, cuja história não há ninguém que ignore, foi ele que o perdeu. A Judas inspirou-lhe o plano de vender o seu Mestre traiçoeiramente; mas, como o crime era horrível, operou gradualmente: fez com que ele o roubasse primeiro, e depois o vendesse.

Aproveitando-se do espírito avarento de Judas, seduziu-o com o dinheiro para também o perder. E assim o levou da avareza ao latrocínio, do latrocínio a traição, da traição à força e da força ao desespero.

Estai, portanto, alerta, irmãos; não vos deixeis seduzir por Satanás, porque agora, como já estais convenientemente elucidados, não ignorais os seus ardis: Non enim ignoramus cogitationes ejus (2 Cor 2, 11), e por isso fácil vos será vencê-lo, como passo a demonstrar-vos em poucas palavras, concluindo logo depois o meu discurso.

TERCEIRO PONTO

A este respeito, parece que estou em contradição e que vou destruir nesta parte o que estabeleci nas duas primeiras, quando digo que o nosso inimigo é fraco e fácil de vencer, tendo a princípio provado quanto ele era forte e terrível em todos os seus planos e empresas. Como hei de conciliar estas duas asserções, cristãos?

Muito facilmente. É dizendo-vos apenas que esse inimigo é forte contra os covardes e os tímidos, mas que é muito fraco e impotente para com os que têm animo inquebrantável. E efetivamente, na própria Escritura Sagrada, vemos que ele se acha representado ora como um gênio, forte, ora como um espírito fraco, ora verdadeiramente orgulhoso, ora supinamente covarde.

É que nunca jamais houve um animal mais monstruoso e mais rigorosamente hediondo.

Ruge como o leão quando se arremessa contra nós, ou silva como a serpente que anda de rastos e que pretende atacar-nos; e contudo, nada mais fácil do que evitar que ele se aproxime. É terrível quando «se acerca de vós para vos devorar» – Circuit quaerens quem devoret (1Pd 5, 8); «mas basta, que empregueis meios de resistência para o suplantardes» – Resistite diabolo, et fugiet a vobis (Tg 4, 7). Ouvi a maneira como ele fala ao Salvador, e apreciai um reparo de São Basílio de Selêucia:

Quid mihi et tibi est, Jesu, Fili Dei Altissimi – «Que existe entre ti e mim, Jesus, Filho de Deus»? (Lc 8, 28)

Que maneira tão insolente de um servo se dirigir ao seu senhor, diz São Basílio! (14).

Mas não há de sustentar por muito tempo a mesma sobranceria.

«Por quem és, não me atormentes, continua ele» – Obsecro te, ne me torqueas. Venisti ante tempus torquere nos (Mt 8, 29)

E então, treme, ao ser azorragado impiedosamente pela onipotência divina. Ah! Se eu tivesse tempo bastante para passar em revista todas as coisas que no-lo fazem parecer terrível, fácil me seria provar-vos a fraqueza manifesta do gênio do mal.

É certo que possui todas as suas forças para dela se servir em todas as suas empresas funestas; mas Aquele que lhas deu para seu suplício, conforme dissemos, pôs-lhe um freio nos dentes, soltando-o o suficiente para provar a paciência dos seus servos, ou para se vingar dos seus inimigos. É considerável o seu poder e vastíssimo o seu império; mas diz-nos Santo Agostinho que esse privilégio é para ele uma verdadeira tortura: Paena enim ejus est ut in potestate habeat eos qui Die praecepta contemnunt (15).

E com efeito, se constitui uma soberana miséria o ser inimigo de Deus, mais miserável será o que foi chefe de todos os inimigos. Essa grandeza, esse luxo que Satanás ostenta olimpicamente, a sua inteligência que altamente o ensoberbece, as qualidades extraordinárias que possui e que o enaltecem, tudo isso o torna miserável, porque, assim mesmo, ainda nós lhe parecemos dignos de inveja. E, se bem que nos reconheça impotentes, exaspera-se, irrita-se, se não emprega a astúcia e a fraude para nos vencer. Ora, assim tão bem elucidados acerca do modo de ser de Satanás, facílimo nos é evitá-lo, «contanto, que trilhemos o caminho da verdade, como verdadeiros filhos da luz» – Ut filii lucis ambulate? (Ef 5, 8).

Se quiserdes agora, senhores meus, conhecer a sua fraqueza, não já por meio do raciocínio, mas com o auxilio duma experiência indubitável, escutai o que diz Tertuliano na sua admirável Apologética, e ficareis admirados duma proposição audaciosa que ele apresenta. Censura ele os gentios por adorarem divindades que são verdadeiros espíritos maléficos, e para lhes fazer compreender está verdade recorre a uma experiência formal que facilmente os convence.

Edatur (hic) aliquis sub tribunalibus vestris quem daemone agi constet (16): Ó juízes, que nos atormentais tão desumanamente, é a vós que me dirijo. Levai-me aos vossos tribunais, porque não quero falar num lugar oculto, mas diante de toda a gente. «Levai para lá um homem que se reconheça estar, evidentemente possesso», e de maneira que esse estado seja sabido de todos: quem daemone agi constet.

Depois chamai qualquer fiel, não digo um fiel determinado, mas o primeiro que aparecer, «com a condição expressa de ser cristão» – jussus a quolibet christiano. Se na presença desse cristão o possesso não falar, nem vos declarar quem é, os embustes de que é capaz, se não tiver o arrojo de mentir a um «cristão», christiano mentiri non audentes (escutai agora estas palavras, senhores), «ali mesmo, no tribunal, sem mais delongas, sem correr outro processo, matai esse cristão que não soube manter, para o efeito, uma promessa tão extraordinária» – ibidem illius christiani procacissimi sanguinem fundite.

É isto o que diz Tertuliano; e grande prazer será o dos fiéis ao ouvirem uma tal proposição, apresentada tão eminentemente e com tal energia por um homem tão grave e tão insuspeito, perfilhada por toda a Igreja, cuja pureza ele sustentou sempre com tamanho brilho! Como poderá esse espírito embusteiro, esse pai da mentira, esquecer-se de quem é, e ter o arrojo de mentir a um cristão? Cristiano mentiri non audentes! Na presença dum cristão esse homem audacioso curvará a cerviz; compelido pela voz dum fiel, perderá a sua impudência; e os cristãos tem tanta certeza de o obrigarem a falar como lhes convier, que arriscarão a própria vida, em presença dos seus próprios juízes.

Quem não zombaria então desse inimigo impotente, que esconde tanta fraqueza em tão altivo aspeto? Não há, pois, motivo para o temer, irmãos; porque Jesus, que é o nosso capitão deu-lhe o desbarato, e ele já não pode lutar conosco, se nós não nos rendermos a ele covardemente.

A quem nós devemos temer é a nós próprios; são os nossos vícios e as nossas paixões mais perigosas do que os próprios demônios. Escutai este belo exemplo da escritura: Saul é atacado pelo espírito maligno. Davi procurava expulsá-lo ao som da lira, ou melhor, por meio da sagrada melodia dos louvores a Deus, que ele perpetuamente entoava com sublimidade. Estranha coisa foi o que então sucedeu, senhores! Enquanto o demônio se ia retirando, Saul mais se enfurecia, procurando atravessar Davi com a lança, o que prova que existe qualquer coisa em nós que é pior do que o próprio demônio, que nos tenta de mais perto e que nos conduz a um combate mais perigoso.

Diz São Thiago (1, 14) que «a cobiça é que nos tenta e nos seduz». Mas moderemo-la por meio do jejum, castiguemo-la por meio do jejum, disciplinemo-la unicamente por meio do jejum.

Ó jejum, que és o terror dos demônios, que és o alimento da alma, que lhe dás o gozo dos prazeres celestiais, que desarmas o diabo e que debilitas as paixões vis; tu és a medicina salutar contra os excessos das nossas ambições; e ai dos que te desprezam ou que te observam, murmurando contra uma perseguição tão necessária! Expulsemos os sentimentos perversos, irmãos; jejuemos espiritual e corporalmente.

Assim como privamos muitas vezes o corpo do seu alimento habitual, privemos também a alma das vaidades em que todos os dias nos saciamos, afastemo-nos das conversações e dos divertimentos mundanos, moderemos os nossos risos e as nossas diversões, e, em seu lugar, escutemos com toda a atenção o Evangelho que, de todos os lados, explana nos púlpitos. São os trechos desse Evangelho que atemorizam os demônios… Santifiquemos depois o jejum por meio do jejum.

A oração mais pura é a que provem dum corpo atenuado e duma alma fatigada dos prazeres sensuais (17).

Acabemos com os bailes, com as danças, com as leviandades. Dediquemo-nos antes a prazeres mais puros e mais positivos. Aceitemos o prazer infinito (18) que Deus nos concede nesta Quaresma; mas lembremo-nos de que esse prazer, essa paz celestial, não deve ser acolhida com uma alegria dissoluta, senão com uma alegria digna dela, que brandamente se insinue em nossos corações.

Quem é que não vê nesta obra a mão de Deus? Eu não me admiro da nossa grande rainha (19) ter trabalhado energicamente a favor da paz, porque essa paz que foi uma ação verdadeiramente divinal, só Deus lha podia inspirar, só Deus lhe podia incutir essa terna piedade que a excita, e esse espírito pacifico que a anima.

Já há muito tempo que sabemos o cuidado que (ela) sempre tem tido de imitar Deus, cujo distintivo se lhe acha estampado no rosto, bem como as ideias de paz que sempre a tem acalentado e fortalecido. O que admira é o nosso jovem monarca (20), sempre augusto, estacar no meio das suas vitórias e perder todo o seu denodo, para deixar aumentar excessivamente o amor dedicado aos seus vassalos; preferiu semear benefícios a colher conquistas; achar mais glória nos prazeres da paz do que no soberbo luxo dos triunfos; e comprazer-se mais em ser o pai dos seus povos do que em ser o vitorioso dos seus inimigos.

Quem, senão Deus, lhe inspirou todos estes sentimentos? E quem não abençoará esse grande rei, e a mão sábia e industriosa que tanto o protege?… Falemos sem receio. Eu sei que os Pregadores devem guardar a máxima reserva no tocante a elogios; mas o silêncio, nesta conjuntura, não seria reserva, mas uma certa inveja do bem público, que há de ser completo para ser perfeito.

Regozijai-vos, pois, povos deste reino! E se algum vestígio funesto da malignidade passada existir ainda, caia hoje duma vez perante estes altares. Glorificai vibrantemente esse sábio ministro (21) que, negociando-nos a paz, soube provar quanto se interessa pelo bem do Estado e pela tranquilidade dos povos. Eu não mendigo favores, e Deus me livre, tão pouco de negociar no púlpito.

Sou francês e cristão, e como tal reconheço a felicidade pública. E aqui agora, perante Deus, descarrego a minha consciência quanto a essa paz bem-aventurada, que tanto representa a tranquilidade da Igreja como do Estado.

Mas não quero fatigar por mais tempo a vossa paciência, irmãos. Concluam agora os vossos votos o resto. Por nós é que deve começar o regozijo. Ao profeta Natan, ao grande sacerdote Sadoc, aos pregadores e ao sacrificador do Altíssimo é que competem soltar aclamações a frente do povo e bradar:

Vivat rex Salomon – «Viva o rei, viva Salomão, o pacifico!» (1Rs 1, 39)

Viva esse grande monarca, ó Deus; e para o recompensar dessa bondade que lhe fez preferir a glória da paz a das conquistas, oxalá que Ele goze por muito tempo e com felicidade a paz que nos deu; que não veja nunca perturbações, no seu Estado nem dissenções na sua casa a que o respeito e o amor se deem as mãos e o acompanhem sempre; que a fidelidade dos seus povos seja firme e inabalável, e finalmente, para assegurar por muito tempo a paz na terra, oxalá que ele faça reinar a justiça e as leis e Jesus Cristo, a quem eu peço que nos dê a todos o seu reino, a quem pertence toda honra e toda a glória, e que, na companhia do Pai e do Espírito Santo, vive e reina agora e por todos os séculos dos séculos.

Referências:

(1) No livro XIV, De Civit. Dei, cap. XIII

(2) De Civit. Dei, lib. XIV, cap. XV

(3) In Ps. LVIII. Enarr., I, n. 6

(4) De idolo., n. 18

(5) De idolo., n. 4

(6) Tertul., ad Uxor., n. 8

(7) Part. I. Quaest. LVIII, art. 3

(8) Tertul., De Poenit., n. 7

(9) Part. 2, Quaest. LV, art. 8

(10) Tertul., Apolog., n. 22

(11) Advers. Valent., n. 3

(12) Hom. LXXXVII, in Mt.

(13) S. Agost. in Ps. XXXIX, n. I

(14) S. Basil Seleuc., Orat., XXIII

(15) De Genes. Cont., Munich., lib. II, n. 26

(16) Apol., n. 23

(17) «Deste modo, conseguiremos aterrorizar o diabo, e veremos a raiva desse velho inimigo consumida em inúteis esforços. E em vez de sucumbirmos às arremetidas de todos esses espíritos transviados, iremos ocupar no céu os lugares vagos pela sua deserção. É esta a felicidade que eu vos desejo, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amém.»

O autor tencionara a princípio concluir o seu discurso com estas palavras; mas depois substitui-as pela parte que segue, para se referir à paz dos Pirineus, que foi concluída a 7 de novembro de 1659, entre a França e a Espanha, pelo cardeal Mazarino e D. Luiz de Haro, plenipotenciários daquelas duas potências. Essa paz teve, como uma das principais condições, o casamento do Rei com a Infanta Maria Thereza. (Edic. de Déforis)

(18) A paz assinada nos Pirineus a 7 de novembro de 1659, e promulgada em Paris no sábado do dia 14 de fevereiro de 1660.

(19) A rainha mãe, Anna d’Áustria.

(20) Luiz XIV, então de vinte e dois anos de idade.

(21) O cardeal Mazarino, tão odiado no tempo da Fronda, cuja entrada na França foi mal recebida, e ao qual era justo perdoar muitos erros, em atenção à habilidade com que ele negociara os tratados de Westphalia (1648) e dos Pirineus (1659).

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(BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermões de Bossuet, Volume II. Tradução de Manuel de Mello. Casa Editora de Antonio Figueirinhas 1909 – Porto, 1909, Tomo II, p. 231-256)