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São João na porta Latina. São João em Patmos

Capítulo 18: São João na porta Latina. São João em Patmos

I

No entanto, João atingia a velhice, e não estava livre da grande tristeza de que são acometidos aqueles que Deus condena a viver, que veem desaparecer em roda de si todos os seus, e que ficam sós no mundo para deles dar o testemunho e a lembrança.

São Paulo, mártir em Roma, terminara ali a sua carreira, começada, havia trinta anos no caminho de Damasco, Cursum consummavi; Pedro abraçara aquele grande companheiro no caminho do suplício, e no mesmo dia teve a honra de, por sua vez, subir à cruz de seu Mestre, no alto de uma colina de onde abençoara a Cidade e o universo. Foi igualmente nos braços de uma cruz, que André havia adormecido do sono da morte, o que era digno do irmão do príncipe dos apóstolos. Depois de Tiago o Maior, depois de Tiago o Justo, Simão oferecera em Jerusalém o sacrifício de seu sangue. Tomé, presumia-se, terminara a carreira nas Índias, depois de ter levado mais longe do que todos os outros, essa fé em Jesus que mais do que os outros lhe custara alcançar. Mais perto de João, na Frígia, em Hierápolis, no seio mesmo dessa Ásia governada pelo apóstolo, Felipe tivera um martírio glorioso. Assim, pouco a pouco haviam caído todos os irmãos, e o Senhor reconstituíra quase inteiramente no céu aquela família do cenáculo da qual dizia:

“Oh! Pai, eu vos dou graças, porque de todos os que me destes, não perdi nenhum”

Só um restava ainda. Vendo a existência de João prolongar-se desse modo, os discípulos podiam crer que ele não devia morrer, e espalhou-se essa notícia entre eles, como o próprio João o declara (1). Mas, a vida era-lhe cheia de amarguras. O apóstolo parece que só tinha vivido tanto tempo para ver um imenso desastre mais inconsolável do que todos os outros: Jerusalém já não existia. Depois de desolações que enchem de pasmo a história, Vespasiano e Tito tinham armado suas tendas na mesma colina onde o discípulo vira um dia o Mestre chorar sobre a cidade culpada, que matava os profetas. A cidade estava em ruínas, o templo era um montão de cinzas; e aqueles que puderam, fugiram naqueles dias de morte e incêndio, dispersando-se pelo mundo, e João fora informado de que, dos lugares onde vivera junto de Deus e de sua Mãe, nada mais existia.

Foi um golpe profundo para seu coração. Conquanto consideremos como nossa pátria o céu, no entanto o amor da terra é um sentimento bastante elevado para tomar um lugar na alma dos santos. João lembrou-se das lágrimas que o Mestre derramara sobre os males outrora profetizados por ele, e hoje muito reais (2). Com certeza também chorou; e quanto mais avançado em idade, melhor compreendia o sentimento doloroso da palavra que o Senhor pronunciara a seu respeito:

“Não posso querer que este discípulo fique até que eu venha?” (3)

Houve um momento em que pensou que lhe era chegada a vez. Domiciano reinava. Este príncipe, chamado por Tertuliano «metade de Nero portio Neronis», era um homem medroso e feroz. Sua crueldade astuciosa, conforme a designa Suetônio, callida saevitia, alarmou-se com os progressos daquela seita invasora, que ameaçava tornar-se senhora de tudo. Com efeito, no seu reinado a fé transborda em Roma. Não é mais sobre os degraus do trono, que a religião toma assento; ameaça subir até em cima.

«Este fato é curioso, incontestável, conta um historiador. A linhagem Flávia, que terminara as guerras civis, e dera doze anos de paz ao mundo antes de ter o desgosto de lhe dar Domiciano, continha justos em seu seio. Tito Flavio Clemente, primo-irmão do Imperador, era cristão; e quando casou-se com sua prima Flávia Domitila, encontrou-a cristã ou converteu-a (4). Uma sobrinha de Domiciano, chamada também Flávia Domitila, recebera o batismo e esperava o martírio. Estes nobres cristãos estiveram algum tempo nas boas graças do imperador. Apesar da humildade cristã de Clemente passar aos olhos dos pagãos por moleza, Domiciano acabava de fazê-lo cônsul ordinário e cônsul com o imperador, o que era honra dobrada. Enfim Domiciano tinha quase adotado seus dois filhos menores, que designava como herdeiros e aos quais dera o nome de Vespasiano e Domiciano» (5)

Morresse Domiciano, que estes dois filhos de Clemente, estes discípulos do Evangelho, chegassem a subir ao trono, de que eram herdeiros, e, sessenta anos apenas depois da morte ignominiosa daquele Chrestos como o chamava Suetônio, ainda vivendo seu último apóstolo e amigo, seu culto chegaria sem abalo, regularmente, pelo fato de hereditariedade, ao império do mundo; e talvez fosse São João chamado a vir solenemente pregar e celebrar na presença dos Cesares, sobre o túmulo de São Pedro!

O inferno deve ter tremido diante de tal perigo. Domiciano o descobriu; o sangue correu. O cônsul Flávio Clemente, seu parente chegado, teve a cabeça cortada, como convencido, diz Diocassio, «de uma espécie de impiedade particular aos Judeus» (6). Flávia Domitila, sobrinha do imperador foi exilada para longe; os dois príncipes desapareceram. No dizer de Suetônio, todos os que eram ou pareciam Judeus, eram objeto de uma perseguição encarniçada. Sabe-se que por este nome, nos autores de então, quase sempre se entendiam os cristãos (7), e Suetônio mesmo deixa perceber claramente, quando diz:

«Além dos da religião judaica, havia outros que, apesar de não fazerem profissão, levavam uma vida idêntica, porém, que negavam serem filhos dessa raça»

Esta força crescente do Cristo torna-se para Domiciano um objeto de terror (Eusébio Hist. Eccl. 3, 20). Já uma vez, segundo a narrativa contemporânea de Hegesippo, tinha feito comparecer à sua presença dois pobres cristãos da Judeia, netos do apóstolo São Judas, e últimos descendentes da família de Jesus e de Maria. Interrogados pelo imperador se descendiam de Davi:

«Nada de mais verdadeiro, responderam eles.

— E que bens possuis?

— Temos os dois juntos, por metade, cerca de dois mil dinheiros, consistindo em dinheiro e uma terra de trinta e nove pietros (8) que fazemos render para viver e pagar o imposto»

E dizendo isto, estes filhos de Davi mostraram as mãos endurecidas pelo trabalho; Domiciano interrogou-os sobre o reinado do Cristo, seu divino parente. Responderam que seu reinado não era deste mundo e que Jesus só o inauguraria, no dia em que voltasse sobre a terra para julgar os vivos e os mortos. Domiciano riu se e não fez caso (9). Que aparência tinha de verdade que fosse a esta dinastia de colonos miseráveis que se pudesse aplicar a profecia dos livros Sibilinos? A seita tinha outros chefes; e sabendo que, com efeito, o último e o mais querido discípulo de Jesus ainda existia em Éfeso, Domiciano deu ordem para que São João comparecesse à sua presença.

II

A entrada de São João em Roma, no ano 92, nos confins do século apostólico de que ele era a última e augusta relíquia, é certamente um dos fatos mais importantes da história desse tempo. Era o termo daquela grandeza suprema da Igreja romana, já consolidada vinte e oito anos antes, pelo sangue glorioso de São Pedro e São Paulo, do qual João tinha primeiramente partilhado o apostolado e que ia agora, pensava ele, partilhar o túmulo.

Naquela época, principalmente, Roma estava cheia de Judeus (10). Introduzida na cidade desde perto de dois séculos, a colônia judaica se tinha espalhado em todas as regiões urbanas, onde se dividia em várias tribos, diferindo entre si pelas opiniões e costumes (11).

Mas a opressão tornava então todos os judeus iguais, tanto sob o vergalho dos epigramas de Martial ou de Stacio, como sob o jugo de Domiciano. Ali, de qualquer lado que João olhasse, via logo a imagem da escravidão de sua pátria. No centro da cidade feria-lhe a vista, o arco de triunfo de Tito, debaixo do qual ainda hoje os descendentes dos Judeus recusam passar por patriotismo. Bem perto, via acabar-se o vasto anfiteatro dos Flávios, onde seus antigos irmãos pela Lei, trabalhavam acorrentados, e onde seus irmãos pelo Evangelho deviam em breve descer para atestar e morrer.

No entanto, eram estes mesmos homens que deviam consolá-lo da ruína irremediável da pátria judaica, mostrando-lhe a jovem e grande pátria cristã mais próspera do que nunca. Ele mesmo lhes dava o estímulo de uma espécie de sobrevivência de Jesus Cristo, na última e maior testemunha de sua vida. E por ali é fácil julgar com que ardor o abraçaram estes filhos da nova Roma, transformada por ele, e de agora em diante imortal!

Tinham à frente o seu bispo Clemente, que diziam de raça senatorial. Tinha seguido Paulo; Pedro deixara-o encarregado de seu rebanho; e ninguém mais apto do que este antigo filósofo, para combater as seitas da filosofia que em pessoa praticara.

Estava ainda melhor instruído no Evangelho, e discípulo dos apóstolos, como diz São Irineu, «ouvia sem cessar repercutir aos ouvidos as palavras de seus mestres, assim como tinha sempre seus exemplos diante dos olhos» (12).

Em roda dele, como de um centro, irradiavam as maiores almas desse lugar e desse tempo. Segundo a opinião de Orígenes e de Eusébio, era primeiro Hermas, que naqueles mesmos anos acabava de redigir as Visões do Pastor, do qual uma cópia fora enviada a Clemente por ordem do Senhor Jesus; e onde estava escrito:

«Eis que está próxima uma grande tribulação. Felizes daqueles que perseverarem e que não renegarem sua própria vida. O Senhor jurou por seu Filho. Aquele que renegar seu Filho, será privado para sempre da vida eterna!» (13)

Assim o exército dos santos estava sob as armas, mutilado, mas invencível, quando apareceu seu chefe, o último veterano da tropa apostólica, que vinha animá-lo a novos combates. Eram os combates de direito contra a opressão da liberdade contra a iniquidade.

«Estes cristãos, observa uma história recente, velhos, meninos, senhoras e moças, que iam ser levados para os leões, eram as únicas criaturas que resistiam a uma tirania, diante da qual tudo se curvava. Não conspiravam; deixavam ferir estes donos do mundo, que eram também sua vergonha, pela mão dos soldados e dos libertos; ou se conspiravam, não era matando, mas morrendo, non occidendo, sed moriendo, segundo a bela expressão de Santo Hilário de Poitiers. Obedecendo às leis, tanto quanto lhes permitia a consciência, esperavam só o dia em que lhes ordenassem queimar um grão de incenso diante da imagem do imperador: então, sem ódio, sem violência, fosse o imperador bom ou mau, eles recusavam, e a dignidade humana estava salva» (14)

Foi sem dúvida, à divindade do imperador que ordenaram a João que sacrificasse. Naquele tempo, Domiciano acabava de deificar-se a si próprio; tinha mandado colocar sua estátua nos santuários mais veneráveis; e hecatombes inteiras eram imoladas nesses altares (15).

«Todo e qualquer escritor público, assim como qualquer discurso devia ser encimado por estas palavras: Assim o ordena nosso Senhor e Deus» (16)

Diante desse paralelo sacrílego entre um Domiciano e o divino Mestre, fácil é imaginar qual foi a resposta de João. O apóstolo foi condenado; e preparou-se, com o coração radiante, para uma morte que ninguém, mais do que ele, desejara.

O lugar tradicional da execução foi a Porta Latina, ou mais exatamente o espaço então livre, mas ocupado posteriormente pela porta aberta por Aurélio, na extremidade oriental de Roma, na Via Ápia, e um pouco abaixo do monumento dos Scipiões. la dar em Albano, onde Domiciano tinha sua vila imperial, e onde fizera sua morada predileta, pedindo a este belo sítio, o repouso da alma, que não é concedido aos maus.

Antigos autores dizem que o imperador em pessoa assistiu ao suplício. A morte de um homem era um espetáculo de que raramente Domiciano se privava, conta Suetônio. Depois, ele que achava prazer nas habilidosas prestidigitações de Apolônio de Tiana, quem sabe se não esperava obter deste sacerdote vindo do Oriente, algum prodígio que divertisse os seus enfados de tirano?

Conta-se que o juiz começou por cortar os cabelos compridos que João usava à moda de Nazaré. Uma cristã ali estava, que os apanhou, e ainda hoje são guardados como um tesouro e venerados na capelinha de São João in Oleo. A lei romana ordenava que os condenados à morte fossem primeiramente vergastados pelos lictores. Só depois dessa flagelação é que recebiam a pena capital. A que a sentença do juiz reservava a São João consistia em ser mergulhado numa tina com azeite fervendo (17), ou simplesmente água fervendo, como explica São Gregório de Nissa (18).

Não seria à este banho que fazia alusão o divino Mestre quando perguntara a João se ele poderia participar do batismo de suas dores? (19).

«Também como se exprime Bossuet, ele ali entrou com a mesma prontidão com que nos ardores do estio, nos lançamos num banho para refrescar o corpo»

Não morreu. Segundo o belo quadro que descreveu o grande bispo, «a caldeira ardente e fumegante tornou-se subitamente em suave orvalho». Todas as ordens do pretor, toda a cólera dos carrascos foi incapaz de fazer acender de novo a fornalha; e, como a águia, São João saiu do seio das chamas remoçado e renovado: Renovabitur ut aquilce juventus tua (20).

Passou-se isto mais ou menos no ano 92 de Jesus Cristo, no décimo primeiro ano do reinado de Domiciano, sendo o imperador cônsul pela décima sexta vez, e no dia 6 de Maio, dia em que a Igreja celebra esse suplício e essa preservação.

Foi essa preservação o mais duro martírio para São João. Escutemos ainda Bossuet:

«Todo homem a quem Jesus Cristo ama, atrai por tal modo o seu coração que ele nada deseja com tanto ardor como de ver cair o corpo como um velho pardieiro que o separa de Jesus Cristo. Ora, quem mais do que João podia ter este ardor para morrer, ele que tirara esse santo desejo das chagas de seu Mestre! Está, portanto, abrasado com a sede do martírio. Mas, ó sede inútil! Jesus prolonga-lhe a vida para tornar-lhe mais pesada a cruz. É preciso viver até uma velhice decrépita»

Mas o peso desta cruz é o peso da glória futura: gloriae pondus, conforme a bela palavra de São Paulo. Ah! Se para ganhar o céu só bastasse um dia, uma hora decisiva e um único esforço, nem que fosse um esforço sublime, todos os santos responderiam que seria comprar a felicidade muito barato. Mas em lugar de morrer num dia de triunfo, condenar-se a penar numa paciência obscura; carregar sem murmúrio o peso dos dias vulgares e do calor empoeirado; beber o cálice, não de um trago, mas lentamente, gota a gota, com todo o seu amargor; e, quando se sente consumir pelo ardor de combater, ficar fiel no posto, a arma no ombro, longe do ruído dos encontros brilhantes; envelhecer, enfim, isto é não somente viver, mas se sobreviver, e durante sessenta anos ficar sobre a cruz que o Senhor plantou para cada um de seus filhos, não na montanha, mas na vulgaridade do dever de estado: é esse o sacrifício que ele prefere. E, se há um martírio que possa ser superior ao de uma bela morte, quem duvida que não seja o martírio de uma tal vida? (21).

João foi condenado a viver. Não ficou em Roma. Domiciano não gostava de ver os sábios de tão perto, e aqueles que poupava eram relegados para as fronteiras do império. Foi assim que Epitecto e Dio-Crisóstomo foram forçados a fugir para junto dos bárbaros. João não voltou a Éfeso, levaram-no em exílio para uma das Esporadas, bem em frente à Igreja que ele fundara, como para aumentar o seu suplício pela saudade sempre renovada daquela pátria do coração, vizinha, porém, ausente.

Vamos seguir São João na ilha de Patmos.

III

Seria difícil encontrar no Arquipélago um rochedo mais triste do que a ilha na qual foi exilado São João.

Quando se ia do porto de Mileto às Margens do Peloponeso, avistava-se logo, como que saindo do seio das águas do mar da Icária, uma grande cadeia de rochedos vulcânicos, partida ao meio e ligada por um istmo estreito. Era a ilha agreste de Patmos. Antes que a tornasse imortal a estada de São João, era por tal forma ignorada, que Tucidido, Strabon, Plínio o Antigo apenas lhe pronunciam o nome.

No entanto, havia ali uma civilização antiga, cujos vestígios ainda hoje se encontram. Os Carianos, os Dórios e os Iônios tinham-se sucessivamente disputado o domínio. No centro, no lugar mais estreito da ilha, numa profunda enseada protegida pelas montanhas, pedaços de colunas do mais puro mármore branco, plantados na praia, servem para amarrar as canoas dos pescadores e as escunas dos mercadores vindos de Anatólia: era ali o porto chamado Phora ou Pthora, hoje la Scala, e onde São João desembarcou. Perto do porto, nas primeiras encostas da montanha, acham-se despojos antigos: fragmentos de louça de barro, telhas velhas esparsas nas pastagens, grandes blocos disformes, esculturas quase apagadas, adaptadas às muralhas de um recinto onde os pastores encerravam os rebanhos durante a noite.

É isto quanto resta da antiga cidade de Patmos, onde uma população de doze a treze mil homens fazia o comércio com o Oriente, com a Grécia e as ilhas. A Acrópole estava em baixo. No alto, que os Gregos chamam até hoje «a montanha do castelo», entre dois istmos estreitos, em cima de um tanque que se despeja por um pequeno canal que vai ter ao mar, belas ruínas ciclópicas, os primeiros alicerces de um antigo edifício que foi talvez um templo, torres abatidas e inúmeros fragmentos enterrados hoje sob espessas moutas de lentiscos selvagens e de alfarrobeiras anãs, indicam suficientemente o lugar da fortaleza, no centro da qual, um rochedo talhado em forma de base semicircular devia ter tido outrora um farol ou uma estátua. Junte-se ainda a estes monumentos destruídos um templo de Diana Scythica, cuja fundação deve ser atribuída a Orestes; neste templo, uma estátua, consagrada a Hecate pela filha do médico Glauco, sacerdotisa de Ártemis, e tereis uma ideia do que encontrou em Patmos o exilado de Domiciano.

Todavia, naquele tempo, ao menos, as montanhas estavam cobertas de florestas, e ainda se encontra o leito dos rios que, descendo, refrescavam os vales: hoje, uma torrente chamada Naro-Mili, deixa correr apenas no estio, um ligeiro fio d’água sobre um leito pedregoso. Algumas finas oliveiras, umas trinta amoreiras, outras tantas figueiras, raros limoeiros, pinheiros, alfarrobeiras, alguns carvalhos, e uns vinte ciprestes, substituem as antigas florestas. Menos de cento e cinquenta famílias estão estabelecidas no porto; e a ilha que os italianos designavam sob o nome de Palmo ou Palmosa, tem apenas uma única palmeira, que se ergue contra um vale chamado o Jardim do santo, assim como sua história, só tem um nome que domina todas os outros (22).

Ali foi conduzido o apóstolo para sofrer a pena do degredo. Dois autores importantes, São Victorino, bispo de Pettau da Styria, mártir sob o reinado de Diocleciano; depois São Primacio, bispo na África no século VI, afirmam que São João ali foi sujeito ao trabalho das minas (23).

Isso não o impediu de trabalhar para a salivação dos insulares. As narrativas tradicionais que falam em seu apostolado na ilha do degredo, no-lo mostram batizando, pregando, estabelecendo por toda a parte em torno de si, o império da verdade e da caridade. Vê-se ainda na ilha de Patmos o lugar onde o pontífice batizava: duas capelas bizantinas ali foram erigidas, uma em honra de São João, a outra sob a invocação de São Policarpo, seu discípulo; e perto dessas capelas está uma bacia que os habitantes ainda chamam o Batistério. Assim todos os passos do homem de Deus estão marcados nas montanhas da ilha.

Pelas narrativas conservadas na ilha de Patmos, vê-se que foi ela renovada em pouco tempo; as conversões multiplicaram-se; o rochedo viu florescer as mais belas virtudes, e ainda hoje, Patmos considera um de seus títulos de glória, o ter tido a honra de conhecer o Evangelho dos próprios lábios de São João.

Os milagres confirmavam a pregação do apóstolo; abundam nas tradições do país, redigidas nos próprios lugares, no século IV. Mas a lenda alterou demais os fatos para que uma história severa possa lhes dar apreço. Citaremos apenas um milagre a que a Igreja deu mais crédito, tendo a iconografia tornado a lembrança inseparável da representação de São João.

Eis como o descreve o Venerável Beda, segundo a antiguidade (24).

«Um magistrado da ilha, de nome Aristodemos, vendo os milagres de João, mostrava-se muito encolerizado, e, desejando ver tudo acabado, disse ao santo apóstolo :

“Quereis que eu também acredite em vosso Deus? Aceitai esta prova: eis aqui um veneno violento, tomai-o; se não morrerdes, serei um de vossos discípulos. Mas, para que saibais bem qual a bebida que vos apresento, farei-a tomar por dois condenados à morte: morrerão logo, e vós bebereis depois deles”

O malvado pensava, com este cruel artifício, desfazer-se de São João. Mas este aceitou; os dois condenados beberam o veneno, e expiraram. Então o santo bispo por sua vez tomou a taça, armou-se com o sinal da cruz, e lentamente bebeu tudo o que ela continha. Sorrindo, entregou-a a quem lh’a havia apresentado, e em seguida tratou logo de ressuscitar as duas pobres vítimas. Vendo isto, Aristodemos acreditou em Jesus Cristo»

É em lembrança deste fato, que se costuma representar o apóstolo tendo na mão uma taça de onde sai uma serpente.

O Senhor dissera falando de seus discípulos:

«Eles farão milagres, tocarão nas serpentes e poderão beber veneno sem que lhes faça mal algum»

Deus, porém, reservara ao apóstolo que acabava de sacrificar-lhe tudo, uma consolação de ordem mais elevada. Desde o dia de sua eleição, João ouvira o Mestre anunciar-lhe o que ele diz no primeiro capítulo de seu Evangelho:

“Em verdade, em verdade vos digo: vereis o céu aberto, e os anjos de Deus subindo e descendo junto do Filho do homem” (Jo 1, 51)

Essa promessa ia ser cumprida. Vimos o dia do grande sofrimento, vamos agora ver o do êxtase, e o mistério do Apocalipse vai se desenrolar dente de nossos olhos.


Referências:

(1) Exit ergo sermo iste inter fraters quia discipulus ille non moritur (Jo 21, 22)

(2) São João não fala em seu evangelho da predição do Senhor sobre a ruína de Jerusalém. São João Crisóstomo dá uma razão delicada:

«Tendo escrito depois da ruína da cidade santa, se São João tivesse falado na profecia de seu Mestre, poderiam acusá-lo de fazê-lo fora do tempo e em desacordo com os acontecimentos»

(3) São Carlos Borromeu diz que para João foi uma dor mortal:

«Satis fuisset eripiendae Joanni vitae, nisi divina illum manus sustentaret, horrendum supplicium, videlicet excidium Jerosolymitae civitatis patriae sua accivium strages crudelissima quaeipso adhuc vivente contigit. Romanis eam urbem barbaré diruentibus» (Homil. In S. Joan. Opp. T. III, 223)

(4) Não há a menor dúvida sobre o cristianismo de Clemente e sua mulher Flávia, segundo o que dizem Dicassio (t. XVII, XVIII) e Brutto Prassens (apud Euzeb. III, XVIII), escritores pagãos, de seus sofrimentos sob o reinado de Domiciano. – V. Além disto, o próprio Eusébio de São Jerônimo

(5) V. Quintil, III, VII; IV prae., X, I; sobre os nomes desses jovens príncipes, vide as moedas.

(6) Há cerca de um século, achou-se em Roma uma caixa de chumbo contendo pedaços de ossos, cinzas impregnadas de sangue, um copo de vidro quebrado, e no mármore que cobria esta caixa, as seguintes palavras: Flavius Clemens, martyr.

V. Mamachi, t. I, p. 354; Zacharias. Hist. Littér., p. 235. A inscrição não é certamente contemporânea, mas deve ser de grande antiguidade.

(7) Sobre esta confusão entre cristãos e judeus, ver:
Sueton in Claud. XXV
Sulpic. Server. Hist. II, XCIX
Arrian-ex Epictet. II, X
Spartian in Coracall. I
Cels, apud Origen. III, 6-7
Tertull. Apolog. XXI

(8) Nove mil dinheiros, cerca de nove mil francos: 39 pietros, 3 hectares, 71 centavos

(9) Euzeb. Hist. Eccl. III, 20
Routh, Reliquiae sacrae, I, CCXIII

(10) Joseph, Ant. Jud. XVII, XII.

(11) Eram as Campenses que se fixaram talvez no Campo de Marte, as Augustenses, Agripenses, Saburenses, Volummenses, Elaenses, Calcarienses, e as Hebraei propriamente ditas. Já eram nessa época o que ainda são hoje: uns mais ricos, vivendo pouco afastados da porta Capena, no famoso vale onde Numa ouvia as lições de Egéria, e onde tinham as Musas um templo de mármore com um bosque sagrado; outros, pobres mendigos, tendo por única riqueza um cesto e o feno onde dormiam à noite, aos lugares abandonados da Transtiberina. Foram as suas catacumbas descobertas em nossos dias, que nos deram conta de sua existência tumultuosa, assim como da diferença de doutrina e de costumes. Os da Transtiberina, gregos na língua e nos gostos, tinham tendência acentuada para o filonismo, enquanto que na colônia da porta Capena dominava o farisaísmo orgulhoso.

(12) São Irineu em Eusébio (Hist. Eccl. IV. XVII)
Clemente de Alexandria dá-lhe o nome de apóstolo (Stromat. IV, XVII)

(13) Herm. Visio III, 2

(14) M. J. J. Ampère, l’Empire romain à Rome.

(15) Plin. Panegyr., C. I, II.

(16) Dominus et Deus noster hoc fieri jubet (Sueton, Domittian., c. XIII)

(17) Ista est felix Ecclesia ubi apostolus Joannes, posteaquam in oleum igenum demersus, nihil passus est, in insulam relegatur (Tertull. Praescript., XXXV, 215, in fol. 1675)

Et S. Hieronym. In Joviniam. Lib. I; in Math, c. XX
Fragmenta S. Polycarpi, aoud Victorem Capuanum; Woutres, p. 1046

Alguns dizem também que João foi condenado primeiro a beber de uma taça envenenada: Pro tua dulcedine gustanda, veneni poculam intrepidus Joannes potavit (S. Aug. Soliloq. Cap. XXII)

(18) Não era esse um gênero de suplício desconhecido, e a história dos mártires nos mostra mais de um cristão mergulhado nas caldeiras. No meio de todos os termos, mesmo nos banhos particulares havia uma grande bacia de forma circular chamada Caldarium, rodeada de grades, na qual estava colocada um reservatório d’água incessantemente aquecidas por chamas subterrâneas que lhe abrasavam os lados.

«A temperatura deste banho era tal, diz Sêneca em uma de suas cartas, que poder-se-ia condenar a ser queimado vivo algum grande criminoso»

Neste dia, o grande criminoso era São João!

(19) Calicem sanè ebiberunt et baptismate baptizati sunt filii Zebedaei, quoniam Herodes Jacobum gladio interemit, Romanorum autem imperator Joannem… in Patmos insulam relegavit (Origen, in Joan., t. II, p. 6)

(20) A capela de São João in Oleo traz inscrição comemorativa:

Martyril calicem bibit hic athleta Johannes
Principii Verbum cernere qui meriut
Verberat hunc fuste proconsul, fortice tondet
Quem fervens oleum laedere non valuit
Conditur hic oleum, dolium, cruor, atque capilli
Quae consecrantur, inclita Roma, tibi.

(21) Joanni certe vita illa adeo longaevâ nil potuisset durius contingere, nullumque acerbius martyrium irrogari quam à dilecto sibi Deo disjungi (S. Carol. Borrom. Homil in S. Joan., t. III, p. 222, Milan, 1747).

Alios apostolos Dominum per mortem martyres officiebat: Joannem veró, nova ratione, per vitam fecit (Apud Lopez, Episc. Crotos., t. III, p. 33 – Col. 2, 11, 12. – Romae, 1596)

(22) Devemos esta descrição, bem como muitos pormenores relativos a Patmos, a relação de M. V. Guérin: Description de Pile de Patmos, Paris 1850.

V. também na Revue de Cours littéraires, 2 de Mars 1867 n. 14, p. 217, uma lição de M. Petit de Julleville: Une visite à Patmos; appendice n. IV.

Tischendorf assim descreve Patmos:

«Estava diante de mim a pequena ilha banhada pelos primeiros raios da manhã. De vez em quando um tronco de oliveira quebrava a monotonia de uma paisagem deserta e remeada de numerosos rochedos… O mar estava calmo como um túmulo; e dir-se-ia que Patmos ali repousava como uma navio adormecido no meio do mar… João é o pensamento que enche a ilha toda! Esta ilha pertence-lhe, é o seu santuário. Até as pedras falam dele, e ele ali está vivo em todos os corações»

(23) Biblioth. Patrum, t. I, p. 579. Comment, S. Victorino Apoc.

Primat. Comment. In Apoc.; Bibt. Patrum t. I, p. 1357.

Suplice Severo diz (lib. II, p. 149):

«Quando hoc vidit Joannes, erat in insulá Pathmos, in metallum damnatus à Domitiano Caesare»

Na crônica de Freculpe (t. II, cac. IX apud Bibliot. Patr., t. XIV, p. 1153:

«Hic dum Evangelium Christi in Asia praedicaret, à Domitiano Caesare in Pathmos insula metallo relegatur»

(24) Bedae opera, t. VII, col. 356

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(BAUNARD, Monsenhor L’abbé Loui. O Apóstolo São João. Rio de Janeiro, 1974, p. 312-329)