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Sabedoria e Eclesiástico

Lição 1: Sabedoria

1. O livro é chamado, nos antigos manuscritos, Sabedoria de Salomão; donde se fez Livro da Sabedoria.

Tal escrito exalta a sabedoria de Israel, tendo em vista o ateísmo e a idolatria do ambiente que cercava o escritor. Este louvor da sabedoria decorre em três partes:

I. 1,16-5,24: a sabedoria é fonte de retidão e de imortalidade. O autor compara entre si o justo e os ímpios; mostra que a prepotência dos maus sobre os bons na vida presente cederá à inversão das sortes: os ímpios serão vítimas de horrível decepção, ao passo que os justos reinarão com Deus na vida póstuma. Sábio é aquele que, desde a vida presente, sabe escalonar os valores de modo definitivo, não se deixando iludir por bens transitórios opostos à Lei de Deus.

II. 6,1-9,19: a origem e os predicados da sabedoria são propostos. É dom de Deus, que deve ser implorado e que é, de modo especial, útil aos reis.

III. 10,1-19,20: como se retomasse a primeira parte do livro, o autor estabelece uma comparação entre os ímpios (no caso, os egípcios, idólatras) e os justos (os israelitas). As pragas do Egito e a travessia do Mar Vermelho são recordadas de modo que se perceba a proteção da sabedoria sobre os filhos de Israel. Ela guiou a coletividade do povo como guiou e guia o indivíduo justo. Esta terceira parte é uma releitura do Êxodo em estilo de midrache, isto é, de modo a realçar a lição religiosa dos acontecimentos passados.

2. Para se entender devidamente o conteúdo de Sb, é necessário reconstituir as circunstancias em que o livro de originou.

Tendo Alexandre Magno († 323 a.C.) fundado a cidade de Alexandria no Egito, muitos judeus foram estabelecer-se nesta cidade e neste país, constituindo aí uma colônia próspera do ponto de vista religioso e cultural. Contudo os judeus no Egito conviviam com filósofos epicureus e materialistas (cf, Sb 2,1 -20) e com pagãos que praticavam a idolatria e o culto de animais (cf. Sb 12,24; 13,1- 15,19). Corriam o perigo de ser tentados e absorvidos pela civilização e a cultura do país em que se achavam; eram zombeteados, desprezados e ameaçados pelos sábios e poderosos pensadores locais (cf. Sb 2,17-20); muitos Israelitas cediam à pressão pagã. Em vista disto, um judeu de Alexandria no século I a.C. resolveu escrever o livro da Sabedoria, que em suas primeira e terceira partes é uma apologia da fé judaica e da Providência Divina em favor do povo eleito: recordando o passado glorioso de Israel (principalmente a saída do Egito, que fora atingido por pragas diversas) e prometendo a recompensa aos fiéis seguidores da Lei (Sb 3-5), o autor queria dissuadir os seus correligionários de aderir aos costumes pagãos.

A parte central do livro (Sb 6-9) também obedece a essa finalidade apologética. Exaltando a sabedoria, o autor quer mostrar aos leitores que a Sabedoria judaica em nada era inferior à grega; ao contrário, mais nobre ainda era, pois tem sua origem em Deus (Sb 9,9) e participa dos predicados do próprio Deus (Sb 7,22-27); ela é colaboradora de Deus na criação e na conservação do mundo como na santificação dos justos (7,21; 8,1-6; 9,3s.9-12). É familiar a Deus (8,3) e assistente do seu trono (9,4). – Nenhuma seção do Antigo Testamento vai tão longe na descrição e personificação da Sabedoria. O autor sagrado quer opô-la à sabedoria grega, que era cultuada nas religiões de mistérios conforme rituais secretos e indecorosos (cf. Sb 14,23).

3. Do ponto de vista doutrinário, Sb é de grande importância não só por apresentar tal imagem da Sabedoria, mas também por desvendar um pouco a sorte póstuma do homem. A concepção do Cheol (lugar subterrâneo, onde estariam, inconscientes, bons e maus depois da morte) cede a noções mais próximas do Novo Testamento e mais exatas. Com efeito; segundo Sb, o homem, criado por Deus com especial benevolência (cf. 7,1; 9,1s), consta de corpo e alma; cf. 9,15; 15,11. A alma não é preexistente ao corpo, apesar do que parecem insinuar os versos 8,19s; este trecho apenas significa que existe boa harmonia e correspondência entre corpo e alma. Deus fez o homem para a imortalidade, de acordo com a sua imagem, mas foi por inveja do diabo ou do tentador que a morte entrou no mundo (cf. 2,23s; Gn 2,17; 3,1-19). Acontece, porém, que as almas dos justos, depois de vida reta levada na terra, gozam de plena felicidade ou do fruto de suas labutas; cf. 3,1 -9; 5,16s. Assim o problema do mal, tão tormentoso para Jó e Ecl, se resolve na teologia do Antigo Testamento; a prosperidade dos maus e os sofrimentos dos bons já não são a última palavra de Deus; mas é após a vida terrestre que se exerce plenamente a justiça de Deus, restabelecendo a reta ordem dos valores.

É de notar, porém, que o livro da Sabedoria só fala da bem-aventurança póstuma sem mencionar a ressurreição dos corpos (Dn 12,1-3 e 2Mc 7,9.14 já haviam professado a ressurreição dos corpos). O silêncio de Sb sobre a ressurreição póstuma explica-se talvez pelo fato de que no Egito a filosofia grega era contrária a esta concepção; por isto o judaísmo no Egito terá levado mais tempo para admitir não só a retribuição póstuma, mas também a ressurreição da carne.

Na verdade, o livro de Sb alude não poucas vezes à filosofia grega; o autor mostra que a conhecia bem, embora não se tenha deixado por ela afastar das genuínas concepções religiosas do judaísmo; cf. 2,1-5 (a teoria dos átomos); 2,1- 9 (o materialismo dos epicureus); 11,23-12,7 (o humanismo helenista)…

Além disto, o vocabulário grego do texto original de Sb é rico de termos muito usuais na filosofia da época; cf. 2,23; 11,17; 14,3. O autor, aliás, se dirige aos juízes e aos reis da terra, procurando mostrar-lhes os caminhos da verdadeira filosofia; cf. 1,1-15; 6,1-11 ; 8,10-15.

O livro da Sabedoria, escrito tardiamente e em língua grega, não foi reconhecido como canônico pelos judeus; por conseguinte, também não se encontra no catálogo dos protestantes. Foi, porém, adotado como escritura canônica pelos cristãos desde os primeiros séculos, que viam em Sb o passo mais adiantado do Antigo Testamento em relação ao Novo.

Lição 2: O Eclesiástico

1. O título hebraico deste livro é “Palavras (Sabedoria)… do filho de Sirac“. A tradução grega o chama “Sabedoria de Jesus, filho de Sirac” ou “Sabedoria de Sirac“. Os cristãos de língua latina deram-lhe o titulo de “Ecclesiasticus“, pois este livro era apresentado aos catecúmenos (àqueles que se preparavam para o Batismo) como manual de iniciação aos bons costumes e à história do Antigo Testamento; era o livro da “Ecclesia” (Igreja); daí dizer-se “Eclesiástico“.

O Eclesiástico, de certo modo, corresponde a Provérbios; revela, porém, uma fase do pensamento israelita mais evoluído. Com efeito; o autor aborda temas muito diversos, relativos ao bom comportamento dos leitores: o temor de Deus, a amizade, os anciãos, as mulheres, a riqueza, a pobreza, a doença, a medicina, os deveres de estado (1,1-42,14); nota-se que as sentenças estão mais agrupadas por assunto do que em Pr, embora não haja ordem perfeita entre as mesmas. A seguir, desenvolve um tema mais teológico, a saber: a glória de Deus, que se manifesta nas obras da criação (42,15-43,37) e na história de Israel (44,1¬50,23); ao que se seguem trechos complementares sobre diversos assuntos (50,24-51,38). A segunda parte do livro (42,15-50,23) corresponde a Sb 10-19: é uma releitura do passado em perspectiva mais profunda; mostra-nos como um judeu do século II a.C. compreendia a história de Israel (veja um paralelo em 1 Mc 2,51-64).

O ponto alto do livro é 24,1-34; neste capítulo a sabedoria é personificada como em Pr 8,1-36; 9,1-6; Jo 28,1-28; Br 3,9-4,4; Sb 7,22-30. O autor vai mais longe do que o de Pr ao atribuir à sabedoria características de pessoa; é muito unida a Deus e, também, distinta de Deus – o que de certo modo antecipa a revelação da segunda Pessoa da SS. Trindade; S. João (1,1-18) aplicará ao Logos (Verbo) diversas das atividades e propriedades da Sabedoria. Também chama a atenção a identificação da Sabedoria com a Torá (Lei) de Moisés; esta ia crescendo na estima do povo de Israel, que atribuía à Lei predicados de pessoa preexistente à própria criação do mundo. O livro de Baruc (3,9-4,4) mostra a mesma tendência a identificar Sabedoria e Torá (Lei de Moisés). Esta tendência se deve provavelmente ao fato de que no século V a.C. houve em Jerusalém a reforma de Esdras, que incutiu ao povo grande amor à Torá e promoveu a renovação da Aliança com Javé.

2. O Eclesiástico tem um prólogo, que apresenta a tradução do texto hebraico para o grego feita pelo neto do autor no Egito em 132 a.C. (= ano 38° do rei Ptolomeu VII Euergetes; cf. vv. 7 e 27 do prólogo).

Em Eclo 50,27(29) o autor assina o livro. Chama-se, segundo o texto dos LXX, “Jesus, filho de Eleazar filho de Sirac de Jerusalém”. Por causa do seu avô, o autor (e o respectivo livro) é chamado “Sirácides” ou Sirácida. Este deve ter sido um sábio, pertencente ao grupo dos sábios de Jerusalém. A sua cultura e o seu zelo pelo estudo da sabedoria se depreendem do pequeno retrato que ele apresenta de si mesmo em Eclo 51,13-30 (peça notável!) como também da imagem do doutor da Lei esboçada em Eclo 38,24-39,11. Desde jovem, o Sirácides estudou os livros do Antigo Testamento, ouviu outros sábios e muito meditou sobre questões fundamentais da vida humana; além disto, viajou por terras estrangeiras e aí consultou novas fontes de saber, com riscos mesmo para a sua existência; cf. 34,9-12; 39,4; 51,1-12. Assim preparado por pesquisas e reflexões, resolveu fundar a “Casa ou a Escola da Sabedoria” em Jerusalém, para a qual convidava todos os seus concidadãos (cf. 51,23-29). O Sirácides era consciente da sua função de mestre; por isto ele assinou o livro que escreveu (cf. 50,27) – coisa que os escritores do Antigo Testamento não costumavam fazer.

O autor deve ter escrito a sua obra por volta de 190-180 a.C. em Jerusalém, já que o seu neto (duas gerações depois) a traduziu para o grego em 132 a.C. É de notar que a Palestina acabara de passar para o domínio dos sírios em 200. Estes procuraram impor aos judeus costumes pagãos, violentando as consciências de Israel. Esta pressão chegaria ao auge sob Antíoco IV Epifanes (175-163) que provocou a revolta dos irmãos Macabeus. Neste contexto compreende-se melhor o zelo do Sirácides pelas tradições religiosas e civis do seu povo; ele é cheio de fervor pelo Templo e seu ritual, cheio de estima pelo sacerdócio e pelos escritos sagrados do seu povo.

O texto original do Eclo foi redigido em hebraico, como atesta o prólogo (v. 22). Todavia o original perdeu-se; finalmente em 1896 foram encontradas três quintas partes do mesmo numa guenizá (= depósito de rolos sagrados postos fora de uso) de uma sinagoga do Cairo; contudo essa cópia do original, que data da Idade Média, não é de boa qualidade. Em 1964 foram achados em Massadá, junto ao Mar Morto, mais quatro capítulos do Eclo, em manuscrito datado do século I a.C. Em Qumran, a NO do Mar Morto também foram descobertos fragmentos do Eclo.

O texto grego, que se deve ao neto do autor, tornou-se o texto usual e canônico entre os cristãos. Acontece, porém, que há diversos manuscritos desse texto grego, os quais apresentam diversas variantes, inclusive versículos a mais ou a menos. É o que explica que certas edições vernáculas do Eclo apresentem duas numerações de versículos; o leitor que encontre uma citação do Eclo, tem que estar atento à diversa numeração dos versículos.

Embora o Eclo não seja reconhecido como canônico entre os judeus, é certo que estes muito o estimavam e liam, como provam os manuscritos hebraicos encontrados no Cairo, em Massadá e Qumran.

3. O livro se distingue por sua forma literária. Esta abrange a disposição muito simples de provérbios ou sentenças semelhantes às de Pr (Eclo 4,20-31; 7,1- 22; 8,1-19), e chega à elaboração de hinos notáveis: vejam-se, por exemplo, os que louvam a grandeza e o poder de Deus na criação (Eclo 39,12-35; 42,15- 43,33), os que exaltam os feitos dos antepassados (Eclo 44,1-50,24), as preces (23,1-6; 36,1-17), a ação de graças (51,1-7). O elogio da Sabedoria aparece em 1,1- 10; 4,11-19; 24,1-34; o dos médicos, em 38,1-15; o da sobriedade, em 31,12¬31 ; 37,27-31; 38,16-23; o da hospitalidade em 29,21-28; o da moderação da língua em 28,13-26… Notamos que, diante das misérias da vida e da morte, o Eclo não experimenta as inquietações de Jó e de Eclesiastes; ele as conhece, muito provavelmente, mas encontra na sua fé uma fonte de serenidade (embora não tivesse noção de vida póstuma consciente, mas acreditasse no cheol); cf. Eclo 40,1-11; 41,1-4. O senso religioso do Sirácides é mais perceptível do que o do livro dos Provérbios; cf. Eclo 1, 11.20.26-28; 14,20-15,10; 34,13-17.

Em síntese, o Eclo é importante, porque apresenta um balanço da tradição judaica na sua época, e faz eco a todas as Escrituras anteriores. É de leitura agradável, apta a despertar confiança e otimismo.


Para aprofundamento, veja:

GRELOT, P., Introdução à Bíblia. Ed. Paulinas 1971.
GRUEM, W. O tempo que se chama hoje. Ed. Paulinas 1977.
PEREIRA, NEY BRASIL, Sirácida ou Eclesiástico. Ed. Vozes 1992.
VAN DEN BORN, A.. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, verbete Eclesiástico. Editora Vozes 1971.

Perguntas sobre os livros da Sabedoria e do Eclesiástico

1) Leia Sb 13,1-9 e diga: como o autor prova a existência de Deus? Compare com Rm 1,18-20.
2) Compare Sb 11,24; 12,2.10.19 com Rm 2,4 e diga se há afinidade de doutrina entre Sb e Rm.
3) Leia atentamente Sb 7,22-30… Detenha-se em 7,22s e diga quantos atributos tem a sabedoria. Compare 7,25-27 com Hb 1,3; Cl 1,15; Jo 1,9 e diga se há aí pontos comuns.
4) Leia Eclo 34,18-26 (ou 34,21-31) e aponte as qualidades do autêntico culto divino.
5) Em Eclo 2,1-6 como o autor encara as tribulações? Que sentido lhes dá?
6) Em Eclo 30,1-13, quais são as notas da boa educação?