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Concentração

Capítulo 35. Concentração - Livro Rumo à Felicidade, de Fulton Sheen

Todo este capítulo anda à volta de duas palavras: escape e inscape que o Autor dá um sentido peculiar. Não encontramos na nossa língua termos correspondentes com o mesmo conteúdo semântico. Traduziu-se escape por «evasão», dando a esta palavra o significado de afastamento das inquietações que nascem dos pro­blemas da vida fundadas em Deus, e recurso a tudo o que os faça esquecer; e inscape por «concentração» com o sentido de regresso a Deus, centrando n’Ele a nossa vida e a solução de todos os seus problemas. — N. do T.

É NECESSÁRIO introduzir uma nova palavra na nossa língua, e, embora talvez já tenha sido usada na poesia de Gerald Manly Hopkins, não entrou ainda no uso universal. Esta nova palavra deve ser o oposto de evasão («escape»). Evadir-se quer dizer fugir de uma coisa perigosa, na esperança de encontrar segurança. Deriva de duas palavras latinas: «ex» (de) e «cappa» (capa). Significa, pois, escapar-se de uma prisão, tornar-se livre.Mas estar livre de «uma capa» não é ser realmente livre. O homem quer ser livre «de» alguma coisa, a fim de estar livre «para» alguma coisa; de outro modo a liberdade não tem sentido. O mundo moderno está demasiadamente interessado na liberdade negativa ou na libertação de limitações, e não suficientemente interessado na liberdade positiva ou na realização do destino por Deus marcado. Um homem rico dirigiu-se a um motorista e perguntou-lhe: «Está livre?» O motorista respondeu: «Estou». O rico partiu, gritando: «Viva a liberdade». O motorista teve a compreensão, pela primeira vez na vida, que a isenção de limitações, ou seja a liberdade, somente tem sentido, quando há uma meta definida ou um objetivo a atingir.

Da palavra inglesa «escape», isto é, «evasão», derivaram uma outra, «escapism», que hoje se vai tornando vulgar. Este derivado que se poderia traduzir por «evasionismo», significa uma fuga, um ersatz e um substituto para não cumprir um dever ou uma obrigação. Por exemplo, o alcoolismo é uma «evasão» para o homem que acumulou dívidas e procura esquecê-las na irresponsabilidade do sono. Os comprimidos soporíficos servem de meio de se «evadir» às almas, cuja consciência as remorde continuamente, nas longas e temerosas noites. Aqueles que não têm, portanto, ânimo para se emendar dos maus hábitos, pretendem muitas vezes consolar-se da sua maldade chamando aos que amam a Deus «evasionistas».

A «evasão» é covardia. Não pode haver paz para a alma, enquanto não houver uma «concentração» («inscape»). «Concentração» significa a segurança espiritual, moral e mental que se encontrou ao penetrar no íntimo do significado e da finalidade da vida.

Tennyson escreveu um dia que, se conhecesse a flor que pende de uma parede esburacada, se conhecesse a sua raiz, caule e tudo que há nela, conheceria o que é Deus e o homem. Com isto queria dizer que a flor da parede esburacada era a «concentração» de todo o universo. Se de qualquer modo a conhecêssemos plenamente, vê-la-íamos refletir as inúmeras gerações de flores que a precederam, toda a chuva que caiu do céu, todos os raios do sol que a iluminaram, todos os produtos químicos da terra que escorreram outrora de vulcões primitivos, e, sobretudo, a Mente de Deus, que fez convergir todas as coisas para esta flor da parede fendida. Não só essa florinha, mas todas as pequenas coisas do universo, quer seja a filigrana de neve com os seus desenhos bizarros, ou as aves que, mais cedo que os monges nas celas, cantam matinas às árvores — todas estas coisas revelam a Mente do Criador. São a concretização dos planos do Arquiteto Divino.

Que é, então, a «concentração»? É lei, ordem, ritmo, ideal, finalidade. É a filosofia da vida, a revelação não só de onde venho, mas também do destino para onde vou. «Concentração» é descobrir a ordem e o significado das coisas; é estar envolvido pelo véu do mistério de Deus; é tornar-se inteligível e dar significado à vida; é encontrar refúgio no Deus do amor. A toda a «evasão» deve corresponder uma «concentração», a toda a fuga da realidade um regresso à realidade, a toda a perda de personalidade uma recuperação de personalidade.

É aqui que um certo tipo erótico de psicanálise (que não se deve identificar com psiquiatria) se dá por vencido. Pode sondar e descobrir a doença, mas não pode saná-la; pode diagnosticar, mas não remediar; pode fazer a análise da psique, mas não a sua síntese; pode dizer que um certo homem tem neuroses de ansiedade, o que realmente não tem significado algum, mas não pode dizer-lhe por que é que há uma ansiedade fundamental na base da vida, visto desconhecer que a razão disto está em que as taças, por onde esse homem bebe, não podem conter o amor por que suspira. O amor sensual é uma «evasão»; o amor da santidade uma «concentração». O divórcio é uma «evasão»; a fidelidade, a despeito das provações, uma «concentração». O egoísmo é uma «evasão»; a caridade uma «concentração». Porque os prazeres da vida deixam amargo trago e insatisfação, procuramos uma «evasão» do sentimento de cansaço. Porque os prazeres da união com Deus nos satisfazem, sem nos desgostarem, procuramos a bela «concentração» na Sua Verdade e Amor, até a morte se abismar na Vida. O Inferno é «evasão»: o Céu «concentração».

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(SHEEN, Dom Fulton. Rumo à Felicidade – WAY TO HAPPINESS. Tradução de Dr. A. J. Alves das Neves, pároco de São Pedro da Cova. Livraria Figueirinhas, Porto, 1956, p. 141-144)