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Como Cristo nos resgatou da Lei?

Dom Henrique Soares da Costa

Meditação XIII – quinta-feira da II semana da Quaresma

Por Dom Henrique Soares da Costa

Reze o 118/119, 97-104:

97Quanto amo, SENHOR, a tua lei!
Nela medito todos os dias.
98Fizeste-me mais sábio do que os meus inimigos,
porque os teus mandamentos estão sempre comigo.
99Tornei-me mais sábio do que todos os mestres,
porque medito sempre nos teus preceitos.
100Entendo mais do que os anciãos,
porque cumpro as tuas instruções.
101Desviei os meus pés de todo o mau caminho
para obedecer às tuas palavras.
102Não me tenho desviado das tuas sentenças,
pois és Tu quem me ensina.
103Como são doces, ao meu paladar, as tuas palavras!
Mais doces do que o mel para a minha boca.
104Dos teus preceitos recebi entendimento;
por isso detesto os caminhos da mentira.

Leitura da Carta de São Paulo aos Gálatas 3, 8-14:

8E como a Escritura previu que é pela fé que Deus justifica os gentios, anunciou previamente como evangelho a Abraão: Serão abençoados em ti todos os povos. 9Assim, os que dependem da fé são abençoados com o crente Abraão.

10É que todos os que estão dependentes das obras da Lei estão sob maldição, pois está escrito: Maldito seja todo aquele que não persevera em tudo o que está escrito no livro da Lei, em ordem a cumpri-lo. 11E que, pela Lei, ninguém é justificado diante de Deus, é coisa evidente, pois aquele que é justo pela fé é que viverá. 12E a Lei não está dependente da fé; pelo contrário: Quem cumprir as suas prescrições viverá por elas.

13Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, ao fazer-se maldição por nós, pois está escrito: Maldito seja todo aquele que é suspenso no madeiro. 14Isto, para que a bênção de Abraão chegasse até aos gentios, em Cristo Jesus, para recebermos a promessa do Espírito, por meio da fé.

1. Vimos, na meditação passada (cf. Gl 3,8s), que o Apóstolo ensinou que aqueles que vivem pela fé, como Abraão, recebem a bênção de Abraão e vivem na bênção. Talvez seja bom reler os tópicos 2 e 3 da meditação anterior.
Agora, no v. 10, São Paulo faz uma afirmação surpreendente:

“Os que são pelas obras da Lei, esses estão debaixo da maldição!”

Que significam estas palavras? A Lei de Deus, Lei santa, dada a Moisés no Sinai, seria fonte de maldição? Certamente, não! Aqui, Paulo se refere aos judeus que, apegados às obras da Lei, obras milimetricamente codificadas pela tradição oral, julgavam-se justos e autossuficientes diante de Deus e esperavam dessas práticas merecer como pagamento a salvação. Atenção para o que diz o Apóstolo: não diz “os que são pela Lei”, mas “os que são pelas obras da Lei”, isto é, os que colocam a confiança nessas obras!

Mas, com base em que o Apóstolo afirma tal coisa? Com base na própria Lei, pois está escrito na Lei:

“Maldito todo aquele que não se atém a todas as prescrições que estão no livro da Lei para serem praticadas” (v. 10b; cf. Dt 27,26)

Portanto, a própria Lei afirma ser maldito quem não cumpre toda a Lei! Assim, com tantas prescrições e quase reduzida pelos rabinos a prescrições minuciosas – as obras da Lei -, a Torá, a Lei de Moisés, tornou-se um jugo pesado demais, um jugo insuportável! Como ninguém conseguiria cumprir sempre e totalmente tantos preceitos, os que colocam sua esperança de salvação, de justificação, no cumprimento das obras da Lei estão debaixo da maldição.

2. Pareceria que o raciocínio de Paulo é meio forçado e sua visão sobre as obras da Lei seria demasiada negativa e exagerada. Não é assim! Primeiro: o Apóstolo faz exegese, isto é, interpretação das Escrituras como os rabinos daquele tempo faziam, usa o mesmo método de estudo das Escrituras que eles usavam. Depois, somente para que você, caro Irmão, possa compreender o que se tornou a Lei no judaísmo, leve em consideração estes pontos:

a) A palavra Torá (Lei, na tradução da Bíblia grega usada por judeus e cristãos) significa “ensinamento” e, para os judeus, pode referir-se ao Pentateuco, a todo o Antigo Testamento ou, ainda, a toda a tradição judaica! Imagine, pois, o volume de preceitos, de minúcias, de obrigações! Os rabinos judeus contam na Torá 613 mandamentos! Assim, quem procura a justificação, a salvação pela Torá, deve cumprir todos estes preceitos sob pena de maldição!

b) Os judeus chegam a afirmar que Deus estuda a Torá no céu; ela existe antes do mundo existir e foi usada por Deus como planta para a obra da criação! Observe, caro Irmão, como foi dando uma importância à Lei, foi absolutizando-a de um modo que a salvação estaria nela e no cumprimento dos seus preceitos! Jesus nunca aceitou isto: acusava os rabinos de invalidarem a Palavra de Deus, o espírito mesmo da Lei com essas extrapolações. Leia Mt 15,1-14; Mc 7,1-13. A esta Lei reinterpretada como uma infinitude de preceitos detalhistas, o Senhor Jesus chama de modo pejorativo de “vossa lei” (Jo 8,17; 10,34), bem diferente dos “mandamentos”do Pai: “Eu sei que o Seu mandamento é Vida eterna!” (Jo 12,50). Aí sim! E os mandamentos caminham e se resumem num só foco, numa só realidade:

“Este é o Seu mandamento: crer no Nome do Seu Filho Jesus Cristo e amar-nos uns aos outros, conforme o mandamento que Ele nos deu!” (1Jo 3,23)

Pois bem, tampouco São Paulo aceitava esta absolutização da Lei e dos preceitos! A Lei compreendida como prática de preceitos termina em legalismo e soberba autossuficiência que fecha para Deus; bem diferente da Lei de Deus compreendida e vivida como participação na sabedoria providente de Deus: esta leva à confiança humilde no Senhor e à disposição de acolher na fé o Cristo Jesus! Portanto, todas estas extrapolações, todas estas tradições e práticas que terminaram por sobrecarregar e obscurecer o sentido genuíno da Lei foram plantadas pelos homens, pelos rabinos. A sentença do Senhor é clara:

“Toda planta que não foi plantada por Meu Pai celeste será arrancada! Deixai-os! São cegos conduzindo cegos!” (Mt 15,13s)

c) Para os judeus, somente o Messias poderia revelar totalmente o sentido interior da Torá, isto é, da Lei de Moisés. Os cristãos concordam plenamente com isto! Somente o Cristo Jesus, que é o Messias, é a plenitude da Lei, pois “a Lei foi dada por meio de Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,17). Efetivamente, as Escrituras de Israel dão testemunho Dele, do Senhor Jesus Cristo, santo Messias, e para Ele preparou Israel (cf. Lc 24,27; Jo 5,39; Gl 3,25).

3. Para arrematar e fundamentar o seu raciocínio, Paulo cita as Escrituras, e as cita com o Antigo Testamento grego (chamado de LXX ou septuaginta), que é o mais longo, como o dos católicos, ainda hoje usado na Igreja de Cristo:

“O justo viverá pela fé” (Gl 3,11; Rm 1,17; cf. Hab 2,4)

Ou seja, aquele que é agradável a Deus, aquele que é justificado, o é pela fé, fé no Deus que deu a Abraão e a nós o verdadeiro Isaac, Jesus Cristo, nosso Senhor!

Então, enquanto quem coloca sua confiança na Lei espera a Vida e a salvação do cumprimento de preceitos, aquele que coloca a sua confiança no Deus de Abraão, Nele crendo, coloca sua esperança em Jesus o Salvador, imolado por nós como Isaac (cf. Gn 22,9-18; Rm 8,32).

4. No v. 13, o Apóstolo faz a proclamação triunfante:

“Cristo nos resgatou da maldição da Lei tornando-Se maldição por nós!”

Outra afirmação impressionante! O que quer dizer? Cristo nos resgatou a todos, judeus e gentios, dos preceitos da Lei de Moisés. Aos gentios também, porque sem Cristo, o único modo de entrar para a Aliança seria tornar-se judeu, subjugando-se aos preceitos, às obras da Lei. Não entrando para o Povo de Israel segundo a carne, viviam sob a lei do pecado provocado por uma consciência obscurecida e pelas paixões que os escravizavam. Vale muito a pena ler Rm 1,18-32. Aí se encontra a situação deplorável dos gentios de toda a humanidade de ontem e de hoje sem Cristo – e até de certos cristãos de nome, que defendem de modo cego, pagão e sacrílego todo tipo de pecado e torpeza, colocando tudo na conta da misericórdia, aviltando e fazendo pouco do amor de Deus revelado na Cruz do Senhor!

5. Demos ainda um passo adiante: Como Cristo nos resgatou da Lei? Ele assumiu o nosso débito, a nossa incapacidade de suportar o fardo dos preceitos: morrendo pendurado na Cruz por nós todos, como se fosse um maldito – a própria Lei afirma ser maldito o que morre pendurado num madeiro (cf. v. 13; Dt 21,23). Certamente, esta realidade material – a morte pendurado no madeiro – exprime uma profunda realidade espiritual: fazendo-Se realmente homem, plenamente um de nós, foi solidário conosco e “tomou sobre Si as nossas dores, carregou-Se com os nosso pecados, de modo que o castigo que nos dá a paz caiu sobre Ele e por Suas chagas fomos curados” (cf. Is 53). Assim, assumindo a nossa maldição, Ele, o Bendito do Pai, o Filho Amado, o Eleito (cf. Mt 3,17; 17,5; Jo 3,35; 5,20), apagou na Cruz todas as nossas transgressões em relação à Lei e seus preceitos e a todos os nossos pecados (cf. Cl 2,14; Ef 2,1-5), para que a bênção de Abraão, através do Cristo, novo Isaac, se estenda aos gentios, como fora prometido a Abraão, o crente, pai de todos os que creem (cf. vv. 13s)! Sim, verdadeiramente o Senhor nosso pode ter compaixão de nós, filhos de Adão, judeus ou gentios, que gememos debaixo do fardo da Lei de Moisés e da lei do pecado. Ele pode realmente nos dizer as comoventes palavras de Mt 11,28-30.

6. Finalmente, São Paulo apresenta a finalidade última de fé em Jesus Cristo: crendo, “pela fé, recebamos o Espírito prometido”… Explicando: crendo em Jesus nosso Senhor, judeu ou gentio é Nele batizado e, no Batismo, recebe o Seu Espírito Santo, que impregna interiormente o crente da Vida divina do próprio Cristo imolado e ressuscitado, dá ao crente os próprios sentimentos do Cristo Jesus, transfigurando mais e mais o crente, sobretudo pela participação na Eucaristia, até a plena configuração ao Senhor, ao verdadeiro Filho-Isaac, na Glória eterna (cf. Rm 8,11)! Tudo isto é realizado pelo Espírito Santo recebido no Batismo, sacramento da fé! E este Espírito, como já disse anteriormente, é a Lei verdadeira (cf. Rm 8,2), a Lei dinâmica (cf. Rm 8,14-17), a Lei interior (cf. Rm 8,9), a Lei do amor (cf. Rm 5,5; 13,8-10), não mais de preceitos pesados e exteriores!

7. Reze o Sl 18/19,8-15. Medite rezando na promessa do Espírito já feita no tempo da Antiga Lei. Leia Ez 36,26; 37,14; 39,29; Jl 2,28. Pense um pouco: sua vida religiosa é centrada em preceitos exteriores ou na experiência profunda da intimidade exigente, amorosa e criativa de se deixar impregnar e guiar pelo Espírito do Cristo? Só quem se deixa guiar pelo Espírito pertence a Cristo…