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Provocação dos maus

Provocação dos maus, Tesouros de Cornélio à Lápide

Em todos os tempos, são os maus que zombam dos bons

Durante os cem anos que Noé empregou em construir a Arca, ele não deixava de advertir aos homens que fizessem penitência, que haveria um dilúvio universal; e os homens corrompidos ridicularizavam-no e zombavam dele.

Ló avisou aos Sodomitas que haveria um dilúvio de fogo e puseram-no em ridículo.

Os profetas falam em nome do Senhor, mandam em nome do Senhor, e os ímpios o tomam como um motivo de zombaria.

Tendo chegado Jesus à casa do chefe da Sinagoga, e vendo aos tocadores de flauta e a multidão que se agitava tumultuosamente, disse-lhes: Retirai-vos, porque a jovem não morreu, senão que dorme. E riam-se Dele: Et deridebant eum (Mt 9, 23-24).

Nós somos, disse o Real Profeta, o opróbrio de nossos vizinhos, a fábula e o joguete dos povos que nos rodeiam: Facti sumus opprobrium vicinis nostris, subsannatio et illusio his qui in circuitu nostro sunt (Sl 78, 4).

Vós nos expusestes às chacotas de todos os nossos vizinhos, e nossos inimigos nos insultaram: Possuisti nos in contradictionem vicinis nostris, et inimici nostri subsannaverunt nos (Sl 79, 12).

Vim a ser seu joguete, provocaram-me, disse Jesus Cristo por meio de seu Profeta: Factus sum illis in parabolam (Sl 68, 12).

Vede como os maus tratam aos Apóstolos: Somos desprezados, diz o grande Apóstolo. Até agora sofremos a fome a sede, esbofeteiam-nos, e nos achamos nus, errantes, amaldiçoados, perseguidos e injuriados; trataram-nos como lixo do mundo e coisas desprezadas por todos[1].

Desde Jesus Cristo escarnecido no Gólgota até hoje, os malvados sempre zombaram dos bons.

Não existe nada sagrado para os maus

O santo varão Jó, coberto de chagas, pleno de sofrimentos sobre seu monturo, é a zombaria dos maus e até de seus pretensos amigos. Tobias torna-se cego, e seu parentes e até seus aliados zombam de sua conduta, dizendo-lhe: Onde está vossa esperança, pela qual oferecias tantas esmolas e vos dedicáveis a enterrar os mortos? Ubi est spes tua, pro qua eleemosynas, et sepulturas faciebas? (Tb 2, 16). Sua mulher também dizia-lhe: Vãs, na verdade, tem sido todas as tuas esperanças; e eis aqui o resultado tem agora tuas esmolas: Manifeste vana facta est spes tua; et eleemosynae tuae modo appareuerunt (Tb 2, 22).

Não provocaram os maus a Jesus Cristo durante toda a sua vida? Zombaram Dele em seus milagres, em seus benefícios, em sua divina doutrina, em sua sublime moral. Porém, sobretudo, no tempo de sua Paixão é quando se multiplicam ao seu redor e esmagam-No. Judas ultraja-O, vendendo-O por trinta dinheiros, preço de um escravo, e abraçando-O. Seus Apóstolos ultrajam-No, abandonando-O. Até mesmo Pedro ultraja-O, jurando que não o conhece. E os bofetões e os insultos, e a coroa de espinhos e o cetro de cana, e o manto de púrpura e o Ecce Homo, e os pontífices e os juízes, e o governador e o rei Herodes, e os soldados e o populacho, todos, à porfia, põem-No em ridículo, até quando dê seu último suspiro.

Os ímpios zombam da Palavra de Deus, da Religião, da piedade, da Igreja, dos Sacramentos, da Lei de Deus, dos Domingos e das Festas, das cerimônias sagradas, do Culto, das coisas santas, de Deus, dos Santos, do Dogma, da Moral, da vida e da morte, do juízo, do Paraíso, do Inferno, do tempo e da eternidade. Atacam, denigrem, caluniam e blasfemam de tudo o que ignoram etc.

Por que os maus zombam dos bons

Falam em sua arrogância, diz o Salmista, e de tudo zombam, porque são obreiros da iniquidade: Effabuntur et loquentur iniquitatem; loquentur omnes qui operantur injustitiam (Sl 93, 4).

Se vós fosseis do mundo, dizia Jesus Cristo a seus Apóstolos, de quem os outros zombavam, o mundo amaria o que é seu; porém, porque não sois do mundo, e vos elegi no meio do mundo, por este motivo o mundo vos persegue e zomba de vós. O servo nunca é maior que seu senhor. Se me perseguiram a Mim, também vos perseguirão; porém, tudo quanto vos faça sofrer, será por causa de meu Nome, porque não conhecem Aquele que Me enviou (Jo 15, 19-21).

Faz-se zombaria da simplicidade do justo, diz Jó: Deridetur justi simplicitas (Jó 12, 4).

A perversidade dos homens ímpios é tão grande que não param até que tenham conseguido que os demais sejam tão maus e tão perversos quanto eles: por isso zombam dos bons, chamando-lhes de falsos devotos, beatos, hipócritas etc.

Por causa desta linguagem e desta conduta, há diferença de costumes morais e de vida: eles veem que sua vida e seus vícios são esvaziados e condenados pela virtude dos bons, porque sua vida memorável é exemplar; por isso, riem-se e zombam deles, perseguem-nos e veem-lhes como censores de suas desordens, açoites de seu corpo.

São Próspero explica esta conduta dos maus contra os bons: Todos aqueles que querem viver com piedade em Jesus Cristo, diz, devem se dispor a sofrer opróbrios e provocações da parte dos ímpios, a ser desprezados como insensatos que perdem os bens presentes, e não aspiram nem se fixam senão nos bens futuros. Deus o permite para aumentar o brilho da coroa dos bons. Este desprezo, esta provocação, redundará em prejuízo dos maus, quando sua abundância se converter em escassez, e seu cego orgulho, em confusão (In Sentent. et Epigram., c. XXXII).

Na boca do insensato, do mau, acha-se a vara da arrogância, dizem os Provérbios: In ore stulti virga superbiae (Pr 14, 3). O orgulho engendra o desdém e a insolência. Os orgulhosos elevam-se sobre os demais, desprezam-lhes, insultam-lhes, ultrajam-lhes. O mau, carregado de crimes, conduz-se como se tivesse império sobre os bons. Pretende que lhe está permitido burlar-se dos demais, desprezar a todos.

Os ímpios abominam aos bons, dizem os Provérbios: Abominantur impii eos qui in recta sunt via (Pr 29, 27).

As provocações dos maus recaem sobre eles mesmos

As provocações insolentes e injustas dos maus servem somente para humilhá-los a eles mesmos e condená-los; porque provam sua ignorância, seu ódio, sua maldade, seu coração perverso.

Uma provocação, uma maldição rejeitada com paciência retrocede a seu autor, diz Santo Agostinho, e fica livre aquele contra quem se lançava: Maledictum pacientia repercussum, in suum redit auctorem, ilaeso eo qui petabatur (Serm. XV de Ressusrect.).

Aquele que afronta aos outros traz marcada sobre si a nota de néscio, diz Santo Ambrósio: Stultitiae condemnatur, qui contumeliam facit (Serm. III).

É a ruína do homem devorar os Santos, dizem os Provérbios: Ruina est homini devorare sanctus (Pr 20, 25). Já estão preparados os terríveis juízos de Deus para castigar aos escarnecedores, e os malhos para esmagar os corpos dos insensatos, acrescentam os Provérbios: Parata sunt desisoribus judicia; et mallei percutientes stultorum corporibus (Pr 19, 29).

O Senhor é o Deus das vinganças, diz o Real Profeta; e o Deus das vinganças agiu com independente liberdade. Faz, pois, brilhar tua grandeza, ó Juiz supremo da terra; dá o merecido aos soberbos. Até quando, Senhor, os pecadores, até quando hão de vangloriar-se? Blefarão, falarão iniquamente, jactar-se-ão sempre todos os que obram a iniquidade? Ah, Senhor, eles abateram teu povo, devastaram tua herança: assassinaram a viúva e o estrangeiro, e tiraram a vida do órfão. E disseram: O Senhor não o vê; não sabe nada o Deus de Jacó. Refleti, ó homens dentre os mais insensatos do povo, entrai em entendimento; tende finalmente sanidade, vós, idiotas! Aquele que deu os ouvidos, não ouvirá? Aquele que deu os olhos não verá? Não os chamará a juízo aquele que castiga todas as nações? Aquele que dá ciência ao homem? O Senhor conhece os pensamentos dos homens, e quão vãs são suas ideias (Sl 93, 11s).

Os bons devem se gloriar das provocações dos maus

Aqueles a quem a glória está reservada, diz Santo Ambrósio, devem estar dispostos a sofrer as injúrias, as provocações, os insultos e os desprezos que lhes esperam: Quos manet gloria, expectat injuria (Lib. II, Offic., c. IV).

É a maior honra, a maior glória e mais bela recompensa, que sejamos provocados e escarnecidos como Noé, como os Patriarcas e os Profetas, como Jesus Cristo e seus Apóstolos, como os mártires, os confessores, as virgens, os santos de todos os séculos, e em uma palavra, como a Igreja.

É uma honra, uma glória, ser provocado, criticado, desprezado pelos malvados, os homens corrompidos, os perversos, os escandalosos e os ímpios; isto prova que não os imitamos; e não imitá-los é uma dita, uma glória incomparável. Desgraçado daquele a quem louva uma boca manchada!

Já virá o tempo do triunfo dos justos

Os perversos provocam os justos, porque não vem sua formosura interior; porém, vê-la-ão no dia do juízo. Então, conhecerão aos justos, porém demasiado tarde. Os justos não serão mais escuros, vis e desprezíveis à sua vista, senão resplandecentes de glória e majestade, porque serão semelhantes a Deus. Hoje, os maus veem e desprezam aos bons; porém, então, o Senhor rir-se-á dos maus, diz a Sabedoria: Videbunt et contemnent, cum illos autem Dominus irridebit (Sb  4, 18).

Então os justos apresentar-se-ão com grande valor contra aqueles que os angustiaram e roubaram o fruto de suas fadigas; a cujo aspecto, não apenas a perturbação, como ainda um temor horrendo, apoderar-se-ão destes; assombrar-se- ão da repentina salvação dos justos, a qual eles não esperavam nem criam; e, arrependidos e emitindo gemidos e soluços de seu angustiado coração, dirão dentro de si: Estes são aqueles que, em outro tempo, foram o alvo de nossos escárnios, e a quem propúnhamos como um exemplar de opróbrio. Insensatos de nós! Seu teor de vida parecia-nos uma loucura, e sua morte uma ignomínia. Olhai como são contados no número dos filhos de Deus, e como sua sorte é estar com os Santos. Logo, fomos descarrilhados do caminho da verdade; não nos iluminou a luz da justiça, nem para nós nasceu o sol da inteligência. Nós nos fatigamos em seguir a carreira da iniquidade e da perdição; andamos por sendas fragosas, sem conhecer o caminho do

Senhor. De que nos serviu a soberba? Ó, qual proveito nos trouxe a vã ostentação de nossas riquezas? Passaram como sombra todas aquelas coisas, e como mensageiro que vai, qual nave que sulca as ondas do mar, de cujo trânsito não há que buscar vestígio, nem a vereda de sua trilha na ondas. Assim também nós, apenas nascidos, deixamos de ser e, certamente, nenhum sinal de virtude pudemos mostrar. Consumimo-nos em nossa maldade… Assim discorrem no Inferno os pecadores (cf. Sb 5, 1-14).

Naquele lugar, os maus declaram-se culpados a si mesmos, e se acusam de três erros ou loucuras:

  1. porque se afastaram da via da verdade;
  2. porque não viram a luz da justiça, isto é, a luz da razão, da sabedoria, da prudência e da caridade, pois a desprezaram, querendo permanecer nas trevas da concupiscência e das paixões;
  3. porque não viram o Sol, isto é, não viram a Jesus Cristo, que é a verdadeira Luz que ilumina a todos os homens que vem a este mundo, porquanto não Lhe abriram seu coração.

Escarnecedores insensatos, supúnheis que a vida dos justos não era mais do que um jogo, diz a Sabedoria: Aestimaverunt ludum esse vitam nostram (Sb 15, 12). Vede agora onde estão eles, e onde vos achais vós!


Referências:

[1] Nos ignobiles. Usque in hanc horam et esurimus et sitimus et nudi sumus, et colaphis caedimur et instabiles sumus;… maledicimur, persecutionem patimur; blasphemamur, tamquam purgamenta huius mundi facti sumus omnium peripsima usque adhuc ( cf. I Cor IV, 10-13).