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Como se devem receber as Inspirações

Parte II
Capítulo XVIII

Por inspirações compreendemos todos os atrativos da graça, os bons movimentos do coração, os remorsos de consciência, as luzes sobrenaturais e em geral todas as bênçãos com que Deus visita o nosso coração, por Sua misericórdia amorosa e paternal, para acordar-nos da nossa sonolência ou para nos incitar à prática das virtudes ou para aumentar em nós o amor a Ele; numa palavra: para nos fazer procurar o que é de nosso interesse eterno.

É exatamente isso que o Esposo dos Cantares chama em termos místicos procurar a Esposa, bater-lhe à porta, falar-lhe ao Coração, acordá-la, fazê-la chamar por ele em sua ausência, convidá-la a comer o seu mel, a colher frutos e flores e a lhe falar.

Sirvo-me também desta comparação para maior clareza. Três coisas são necessárias para contrair-se um desponsório: primeiro há de ser proposto à pessoa de que se deseja o coração e a fidelidade; segundo, esta há de anuir à proposta; e, terceiro, há de dar o consentimento. Assim, Deus, quando quer operar em nós, por nós e conosco alguma coisa para Sua glória, primeiro no-la propõe por Suas inspirações; nós a recebemos com uma suave complacência e damos o consentimento. Pois, como há três degraus pelos quais se cai no pecado — a tentação, o deleite e o consentimento — assim também há três degraus pelos quais nos elevamos à prática das virtudes: a inspiração, que é contrária à tentação; a complacência na inspiração, que é oposta ao deleite da tentação, e o consentimento à inspiração, que se opõe ao que se dá à tentação.

Caso a inspiração durasse todo o tempo de nossa vida, nem por isso seríamos mais agradáveis a Deus, se não a recebêssemos com agrado. Ao contrário, ofenderíamos a Deus, como os israelitas, que, como Ele mesmo disse, abusaram por quarenta anos da graça que lhes deu para se converterem, aos quais, por isso, foi proibido por um juramento de entrarem na terra do Seu repouso.

Esta complacência às inspirações muito adianta a obra de Deus em nós e nos atrai a complacência de Seus olhos. Pois, conquanto ainda não seja um consentimento perfeito, em todo caso lhe é uma disposição muito favorável; e, se já o gosto que se tem de ouvir a palavra de Deus, que é quase uma disposição externa, é muito agradável a Deus e um sinal de salvação, muito mais o será, sem dúvida, a complacência às inspirações. É desta deleitação que nos fala a Esposa dos Cantares, dizendo:

A minha alma se desfez em alegria quando meu Dileto me falou.

Mas, enfim, é do consentimento que tudo depende; pois, tendo recebido uma inspiração com complacência, mas sem dar o nosso aprazimento, tornamo-nos réus duma extrema ingratidão para com a divina Majestade e quase a tratamos com maior desprezo do que se a tivéssemos rejeitado imediatamente. Foi esta a falta e a desgraça da Esposa dos Cantares, que, sensibilizada com muita alegria, ao ouvir a voz do seu Dileto, contudo não lhe abriu a porta e se escusou duma maneira frívola, de sorte que o Esposo se foi embora, deixando-a com indignação.

Cumpre, Filotéia, resolveres-te a receber dora em diante todas as inspirações do céu, como haverias de receber a anjos que Deus te enviasse para tratar contigo dum negócio importante. Escuta com calma o que a inspiração te propõe; presta atenção ao amor de quem a dá, recebe-a com alegria e dá o teu consentimento dum modo terno e amoroso; e Deus, que nunca nos poderá dever alguma obrigação, não deixará de ter gosto em tua docilidade e fidelidade. Mas, se a inspiração exige de ti alguma coisa de maior e extraordinário, deves suspender o consentimento até consultar o teu diretor espiritual, que a examinará para ver se vem de Deus ou não; porque acontece muitas vezes que o inimigo, vendo uma alma dócil em seguir as inspirações, lhe insinua falsas, para a enganar, mas debalde, se ela obedecer com humildade ao seu diretor.

Uma vez dado o consentimento à inspiração, cumpre executar cuidadosamente o que ela exigiu de nós, o que completa a obra da graça, porque reter o consentimento no interior, sem levá-lo a efeito, seria imitar a um homem que, tendo plantando uma vinha, não a quer cultivar, com medo de que não produza frutos.

Considera de quanta utilidade será a tudo isso a devoção da manhã e o referido recolhimento do coração, conquanto nos disponhamos a fazê-los bem, com uma preparação não só geral, mas também particular.

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(SALES, São Francisco de. Filoteia ou a Introdução à Vida Devota. Editora Vozes, 8ª ed., 1958, p. 119-122)