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A Comunhão Frequente

Parte II
Capítulo XX

É conhecido o que se diz de Mitridates, rei do Ponto, na Ásia, o qual inventou um alimento preservativo de todo veneno. Nutrindo-se dele, este rei tornou o seu temperamento tão robusto que, estando a ponto de ser preso pelos romanos e querendo evitar o cativeiro, por mais que fizesse, não conseguiu envenenar-se.

Não foi isso mesmo que fez nosso divino Salvador dum modo verdadeiro e real, no augustíssimo Sacramento do altar, onde ele nos dá o Seu corpo e sangue, como um alimento, que confere a imortalidade?

É por isso que quem se aproxima muitas vezes e com devoção desta sagrada mesa recebe tanta força e vigor, que é quase impossível que o veneno mortífero das más inclinações faça alguma impressão em sua alma. Não, não se pode viver desta carne de vida e morrer da morte do pecado. Se os homens no paraíso terrestre podiam preservar-se da morte corporal, comendo do fruto da árvore da vida, por que não poderão agora preservar-se da morte espiritual, pela virtude deste sacramento da vida?

Na verdade, se os frutos mais tenros e expostos à corrupção, como as cerejas, morangos e damascos, se conservam facilmente misturados com açúcar ou mel, não há que admirar-se que nossas almas, por mais fracas que sejam, se preservem da corrupção do pecado, se se deixam penetrar da forca e suavidade do sangue incorruptível de Jesus Cristo.

Ó Filotéia, os cristãos que se condenam estarão ante o Juiz justo, sem saber o que responder-lhe, quando Ele lhes fizer ver que sem razão alguma e por própria culpa morreram espiritualmente, podendo tão facilmente preservar-se da morte, em se alimentando do Seu corpo.

Miseráveis, Ele há de dizer-lhes, por que estais mortos, se tínheis entre as mãos o fruto da vida?

Comungar todos os dias é uma coisa que não louvo nem censuro; mas comungar todos os domingos é uma prática que aconselho e exorto a todos os fiéis, contanto que não tenham nenhuma vontade de pecar. Estas são as próprias palavras de Santo Agostinho, de acordo com o qual eu não louvo nem censuro a comunhão cotidiana, remetendo os fiéis à decisão do seu diretor espiritual, porque isto exige uma disposição tão extraordinária, que não a podemos recomendar a todos indiscriminadamente, e, porque esta disposição se pode achar em muitas almas piedosas, não a podemos proibir a todos em geral. Um juízo sobre este ponto pertence à discrição do confessor, que conhece o estado habitual e atual do penitente. Grande imprudência seria tanto aconselhar indiferentemente a todas as pessoas a prática da comunhão frequente, como vituperar alguém que, por conselho dum sábio diretor, comunga assiduamente. É porque muito aprovo a resposta judiciosa e delicada que Santa Catarina de Sena deu a certa pessoa que, não aprovando que ela comungasse diariamente, lhe disse que Santo Agostinho não o louvava nem censurava. Pois bem — respondeu ela com espírito — se Santo Agostinho não o censura, não o façais vós tão pouco e me contentarei do vosso silêncio.

Estás vendo, porém, Filotéia, que Santo Agostinho encarecidamente recomenda aos fiéis, por seus conselhos e exortações, comungarem em todos os domingos. Faze-o, pois, quanto está em tuas forças, desde que, tendo purificado teu coração, como presumo, de todos os afetos ao pecado mortal e venial, tens a alma mais bem disposta do que Santo Agostinho exige, porque, além de não teres vontade de pecar, nem mesmo tens afeto ao pecado. Poderás até comungar mais vezes que só aos domingos, se alcançares licença de teu diretor espiritual.

Bem sei que podes estar legitimamente impedida por motivos que podem provir tanto de tua parte como da parte daqueles com quem vives. Se alguma dependência, pois, te obriga a obedecer-lhes e respeitá-los e eles entendam tão pouco de sua religião ou tenham um caráter tão bizarro que se inquietem e perturbem por ver-te comungar todos os domingos, será talvez melhor, considerando todas as circunstâncias, condescender às suas fraquezas e comungar todos os quinze dias, uma vez que não podes superar este obstáculo. Como não se pode formular uma regra geral sobre este ponto, estamos constrangidos a deixar a decisão ao confessor; contudo, podemos dizer com toda a verdade que as pessoas que querem levar uma vida devota devem comungar ao menos uma vez por mês.

Se souberes proceder com prudência, nem pai, nem mãe, nem marido, nem mulher impedirão tua comunhão frequente; pois, se a comunhão em ponto algum te fará descuidar dos deveres do teu estado e se, nos dias em que comungares, tiveres mais brandura e complacência com os outros, não é verossímil que te queiram demover dum exercício, que absolutamente não os incomoda, a não ser que sejam de tão mau humor ou tão desarrazoados que assim mesmo o façam. Neste caso, cumpre seguir a regra de condescendência que acabo de dar e o conselho do teu diretor.

No tocante às doenças, nenhuma delas pode ser um impedimento legítimo de comungar, a não ser aquelas que provocam vômitos frequentes.

Aqui tens as regras que te posso dar sobre a comunhão frequente. Para comungar todas as semanas é necessário não ter nenhum pecado mortal e nenhum afeto ao pecado venial e sentir um grande desejo da comunhão. Mas, para comungar todos os dias, é necessário, além disso, purificar a alma de todas as más inclinações e seguir o conselho do diretor espiritual.

Observações:

Nota do Tradutor – Para poder-se avaliar condignamente o capítulo acima, convém notar que no tempo em que São Francisco de Sales escreveu este livro não se costumava comungar tão frequentemente como agora. A praxe atualmente vigente na Igreja a este respeito é bem diversa da de então, principalmente quanto às disposições requeridas. O decreto do Papa Pio X, Sacra Tridentina Synodus (20 de dez. 1905), confirmado pelo novo Direito Eclesiástico (cân. 863), exorta efusivamente a todos os fiéis que se achegarem muitas vezes e mesmo todos os dias da sagrada mesa, exigindo para isso unicamente:

1. Que se achem atualmente em estado de graça;

2. Que comunguem com uma intenção reta, para agradar a Deus e unir-se sempre mais intimamente com Jesus Cristo.

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(SALES, São Francisco de. Filoteia ou a Introdução à Vida Devota. Editora Vozes, 8ª ed., 1958, p. 126-130)