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A Virtude da Pobreza de Espírito ou do Desapego

Compre a coleção As 12 Virtudes para cada mês do ano, na Editora Rumo à Santidade
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Mês de Maio: A Virtude da Pobreza de Espírito ou do Desapego

Mês de Maio

Breve introdução sobre a Pobreza de Espírito e o Apóstolo Patrono

Há pessoas que querem santificar-se, mas a seu modo; querem amar a Jesus Cristo, mas seguindo as suas inclinações, isto é, sem renunciar aos seus divertimentos, à vaidade dos trajes, às delícias da mesa; amam a Deus, mas se não conseguem tal emprego, vivem inquietas; se lhes tocam na reputação, irritam-se; se não saram de tal doença, perdem a paciência; amam a Deus, mas não se desapegam das riquezas, honras do mundo, vaidade de passar por nobres, sábias, melhores do que as outras. Essas pessoas fazem oração, frequentam os Sacramentos, mas, como têm o coração cheio de afeições terrenas, logram pouco fruto das suas devoções. O Senhor nem sequer lhes fala, porque vê que seria em vão.

Não invejes os grandes do mundo, suas riquezas e honras. Feliz de quem nada mais deseja senão Deus só, podendo dizer, com São Paulino:

“Tenham os ricos suas riquezas, os reis os seus reinos: para mim toda a minha riqueza, todo o meu reino é Cristo”

Podes estar certo de que ninguém vive no mundo mais contente do que aquele que menospreza todas as coisas terrenas e só cuida em cumprir com a vontade de Deus.

Não poucos ricos, não poucos príncipes não encontram a paz no meio da abundância dos bens terrenos, enquanto que muitos irmãos leigos, que vivem recolhidos, pobres e escondidos em sua cela, gozam de uma indescritível satisfação.

“Experimentai e vede quão doce é o Senhor” (SI 33, 9)

Quando, pois, quiserem as criaturas entrar em teu coração para participar daquele amor que deves inteirinho a Deus, repele-as imediatamente, fecha-lhes a porta e exclama:

“Afastai-vos de mim e procurai aqueles que vos desejam: eu entreguei meu coração inteiro e sem reserva a Jesus Cristo, de forma que não há nele mais lugar para vós”

Desapega-te de toda a afeição às coisas terrenas; toda a tua riqueza consiste na virtude, que te protegerá aqui na terra contra os inimigos de tua salvação e além constituirá tua glória no céu. Dize, por isso, muitas vezes ao divino Salvador:

Ó Deus de minha alma: Sois um bem infinitamente maior do que todos os outros bens; Sois o único objeto de todo o meu amor. Nada desejo aqui na terra; mas se me fosse permitido desejar alguma coisa, quereria possuir todos os tesouros deste mundo para renunciá-los imediatamente por amor de Vós. Destruí em mim toda a inclinação que não tiver a Vós por objeto e fazei que eu viva unicamente para Vos agradar

Sumário
I. A sua natureza
II. Do Desapego dos Bens da Terra
III. Do Desapego das Honras do Mundo
IV. Do Desapego dos Homens
V. Do Desapego de Si Mesmo
VI. A Pobreza do Redentor
VII. A Prática da Pobreza e do Desapego
VIII. Orações para alcançar a Virtude do Mês

Mês de Maio: A Virtude da Pobreza de Espírito ou do Desapego. Apóstolo Patrono: São Tomé
Mês de Maio: A Virtude da Pobreza de Espírito ou do Desapego. Apóstolo Patrono: São Tomé


I. Pobreza de Espírito ou o Desapego: a sua Natureza

Por Pe. Oscar das Chagas C.SS.R.

Aclarada pelas luzes da fé, elevada pelos voos da esperança, imersa em Deus pela caridade, a vida cristã é toda celeste. Nostra autem conversatio in coelis est (Fl 3, 20).

O verdadeiro cristão só toca o mundo com os pés. Fitos os olhos no céu, faz a sua peregrinação sobre a terra, suspirando com o profeta: Heu mihi, guia incolatus meus prolongatus est (SI 119, 5). Por que é que meu exílio se prolonga? Gloriosa Jerusalém, quando me abrirás as tuas portas? Quando poderei contemplar os teus esplendores, exultar com as tuas harmonias e imergir-me na torrente das tuas delícias? Deus de beleza, de ternura e de amor, que sois já a alegria do meu coração, quando poderei ver-vos face a face e unir-me a vós em eterno abraço?

Tal deveria ser a nossa vida. Mas não é sem lutas e esforços que o homem se lança assim para os bens eternos. Desde que o pecado transtornou completamente a nossa natureza, em vez de voar para Deus, o nosso coração volta-se para si mesmo; fascinado pelo brilho enganador dos bens da terra, movido pela concupiscência, nem ergue os olhos para o céu e, longe de se erguerem, as suas aspirações abaixam sempre mais.

Omne quod est in mundo, concupiscentia carnis est et concupiscentia oculorum, et superbia vitae – “Tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida” (1 Jo 2, 16)

A concupiscência da carne, a sensualidade; a concupiscência dos olhos, a cobiça; a soberba, o espirito de orgulho e independência: eis os três grandes tiranos que roubam as almas a Deus para escravizá-las ao mundo. O cristão subtrai-se a essa escravidão vergonhosa pela pobreza, pela castidade e pela obediência. A pobreza desprende-o dos bens do mundo e livra-o da cobiça; a castidade arranca-o à tirania da carne; e a obediência, submetendo-o a Deus, mata o espírito do orgulho e da independência.

Se, para impedir a volta do inimigo e guardar para sempre a liberdade reconquistada, ele se prende irrevogavelmente ao serviço de Deus, cujos servidores são outros tantos reis, Cui servire regnare est, se se consagra ao Senhor pelos votos de pobreza, castidade e obediência: eis a vida religiosa em que a alma se move na verdadeira liberdade, se purifica sempre e se enche cada dia mais de Deus, do qual emanam todo o bem, toda a alegria, toda a liberdade e toda a vida.

Abordemos diretamente a Pobreza

Nota: Esta parte do texto do Pe. Oscar é estritamente relacionada aos religiosos e religiosas, muito particularmente aos Redentoristas, que fazem voto de pobreza. Caso não seja seu estado de vocação, avance para o aprofundamento sobre da Virtude da Pobreza

É fato que o amor das riquezas arrasta a alma para longe de Deus e a precipita num abismo de iniquidades. Não foi a cobiça que levou Judas a mais negra das traições?

Os que querem ser ricos caem na tentação, nas ciladas e numa multidão de concupiscências insensatas e funestas, que lançam o homem na ruína e na perdição, porque a raiz de todos os males é o amor do dinheiro, e alguns, por se terem a elas entregue, desviaram-se da fé e se enredaram em muitas aflições (1 Tim 6, 9, 10).

Daí a palavra do divino Mestre:

“Em verdade eu vos digo: um rico dificilmente entrará no céu” (Mt 19, 13)

É, pois, necessário, para servir fielmente ao Senhor e chegar à salvação, desapegar o coração dos bens do mundo.

Mas esse desapego não basta para a alma que quer santificar-se: a abundância é um perigo para a salvação e a perfeição. Quando se tem tudo à vontade é difícil conservar o coração em verdadeiro desapego e resistir ao desejo de aumentar a fortuna e o bem estar. E quantos cuidados na administração desses bens! Quando, enfim, se tem as consolações da terra, não se pensa em procurar as do céu. Ai de vós, ó ricos, diz o Salvador, ai de vós, tendes já a consolação no mundo (Lc 6, 24). Ao jovem que lhe pergunta o que deve fazer para ser perfeito, Jesus responde:

“Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá-o aos pobres, depois vem e segue-me” (Mt 19, 21)

A alma, pois, que quer assegurar-se a salvação e praticar a perfeição, não se contenta de desapegar o coração das riquezas; renuncia realmente a elas, abraça a pobreza voluntária e usa dos bens do mundo somente enquanto, necessários para a sustentação da vida.

Mas não se sentirá tentada a voltar atrás? As necessidades da vida, o brilho sedutor das riquezas, os sacrifícios contínuos da pobreza, virão cada dia solicitá-la a renunciar à pobreza que abraçou livremente. Para se fortalecer contra si mesma e assegurar-se um socorro mais abundante de Deus, faz de uma vez para sempre o sacrifício dos bens deste mundo pelo voto de pobreza, assim se prende irrevogavelmente ao caminho da virtude que ela procurara tornar cada dia mais perfeita em seu coração. O voto opera e mantem o despojamento exterior, para facilitar o despojamento interior do coração, que a virtude deve operar e sem a qual o primeiro pouco valeria.

O voto tira ou limita mais ou menos o direito de possuir ou adquirir; em todo caso proíbe o uso livre e independente dos bens temporais. A virtude desapega o coração de todos esses bens, mesmo no uso necessário que é preciso fazer deles para a manutenção desta miserável vida. A Regra traça ao voto os seus limites; nesses limites ela obriga sempre; além deles já não liga. Mas se a virtude tem suas práticas de obrigação que se não podem desconhecer sem lesá-la, tem também práticas de conselhos ou perfeição; aqui só é limitado por nossa vontade. Quem, por exemplo, quer ser pobre, deve interditar-se o supérfluo; mas fica ao fervor de cada um levar a pobreza até ao amor e à procura das privações e dos desprezos.

Se o religioso não possui nada e não dispõe de nada sem a permissão válida, sem o consentimento formal ou legitimamente suposto do superior, observa o seu voto de pobreza; mas, se murmura contra essa dependência e a suporta de mal grado, ou se seu coração fica apegado a esses bens, dos quais não usa, aliás, senão com a dependência exigida, falta à virtude da pobreza. Assim, toda violação do voto de pobreza lesa, ao mesmo tempo a virtude; pois que a virtude deve antes de tudo exercer-se sobre o que se interditou pelo voto; mas, mesmo ressalvando-se o voto, a virtude pode ser lesada. Numa palavra, o voto despoja-nos; dos bens temporais, mas a virtude nos faz amar esse despojamento com as privações que dele emanam. A fidelidade ao voto supõe certo grau de virtude e assim a virtude facilita a observância do voto; maior, todavia, é a excelência da virtude, porque o voto tem por fim fomentá-la; o voto é como o baluarte que deve proteger a virtude para que esta se possa elevar a mais alta perfeição.

Precisemos agora o que concerne especialmente ao voto; depois faremos o estudo da virtude.

Lembremos que a matéria remota do voto de pobreza são os bens temporais, i. é, as coisas temporais, exteriores, de valor. Não caem, pois, sob o voto de pobreza os bens espirituais, intelectuais ou morais, como a virtude, a honra, a reputação, etc. Da mesma forma as relíquias não são objeto da pobreza, mas sim o relicário precioso que talvez a contenha. Quanto aos manuscritos, a opinião mais provável é que se deve considerá-los como coisa espiritual, partus ingenii, mesmo quando compostos por outrem; eles referem-se à ciência que não cai sob o voto; enfim esse é o costume. Se, contudo, a regra determinasse o contrário, seria preciso, segundo a opinião provável de vários autores, considerar os manuscritos como matéria do voto de pobreza. Não é, pois, necessária permissão para emprestar, dar, receber sermões, resumos, trabalhos literários; contanto que sejam manuscritos e não impressos, contanto também que não sejam dados a estranhos para que os imprima, o que é contra a regra e a obediência; se houvesse negócio com eles, seria certamente contrário ao voto de pobreza.

É igualmente necessário distinguir, com Santo Afonso, diferentes casos com relação às pinturas e obras de arte executadas por um religioso. Se o religioso pintou um quadro com a intenção de guardá-lo, pertence ao convento; da mesma forma, se esse religioso é um irmão leigo, porque nesse caso só empregou o tempo de acordo com a sua obrigação, pois o irmão leigo deve precisamente trabalhar segundo a sua arte ou profissão em proveito da comunidade; exceto, porém, se o fez nos momentos livres, aos domingos, pois que a pintura artística não é tida por obra servil. Se o religioso pintor é um corista, Santo Afonso ainda distingue: se a tela, as tintas, etc. são fornecidas pelo convento, a pintura pertence ao convento; mas não, se forem fornecidas por outrem.

Vermeersch também diz que as obras de arte dependem do voto de pobreza, exceto quando são, desde o início, destinadas a um estranho e, sobretudo, se este forneceu a matéria prima.

Os bens temporais constituem a matéria remota da pobreza; esta lhes proíbe a propriedade ou posse, ou ao menos o uso independente: eis a matéria próxima.

Dissemos a propriedade ou ao menos o uso independente, porque se podem distinguir, com o padre Marc, quatro graus no voto de pobreza voluntária e evangélica: o primeiro grau exclui o uso das coisas supérfluas; o segundo interdita o uso livre e independente dos bens temporais; o terceiro tira-lhes a propriedade; e o quarto, até a capacidade de adquiri-los. O quarto grau é atingido pelo voto solene. Mas, segundo a prática da Igreja, o segundo grau é necessário e basta para constituir o estado religioso propriamente dito.

É a Regra que, em cada ordem religiosa, determina o rigor ou a extensão do voto de pobreza, e é, sobretudo, na posse do patrimônio e das suas rendas que se encontram as divergências. Cada qual veja o que a sua regra proíbe, tolera ou permite a esse respeito; veremos mais abaixo as prescrições da Congregação Redentorista.

Fora das concessões da Regra, todos os atos de propriedade são proibidos aos religiosos que fazem o voto de pobreza.

Assim, aproveitar-se de algum objeto, um livro, um móvel, uma veste; querer reservar-se exclusivamente o seu uso; mesmo depois de obtido do superior, tomar precauções para não ser dele privado, por exemplo, subtraído-o às suas vistas; dar, receber, trocar, emprestar, tomar emprestado, destruir, comprar, vender, etc., é ato que, realizados com independência, lesam o voto de pobreza. Da mesma forma, perder ou estragar, por negligência, os objetos que estão ao uso ou à guarda de alguém, mudar o destino das coisas, fazendo delas um emprego diferente, são também maneiras de agir de um dono que dispõe livremente de seus bens e que, por conseguinte, atingem o voto de pobreza. Semelhantemente ainda, segundo Santo Afonso, comer em casa de estranhos, sem a permissão dos superiores, é contrário ao voto de pobreza. Ao contrário, pedir ou aconselhar, por exemplo, pedir um auxílio para uma boa obra, ou aconselhar alguém na repartição de suas esmolas, não são atos de proprietários; esses atos podem ser proibidos pela obediência, mas não lesam o voto de pobreza. Administrar os bens de alguém, vendê-los ou aliená-los, será contrário ao voto de pobreza, se alguém o faz com independência, mas não, se o faz como puro instrumento em nome do proprietário.

Receber dinheiro, para uma obra especial ou para pobres determinados, não é contrário ao voto de pobreza; sê-lo-ia, porém, segundo Santo Afonso, se se pretendesse deixar ao religioso a escolha das obras ou dos pobres a socorrer. Aceitar para si, sem permissão legítima, coisas oferecidas por estranhos, é evidentemente contrário à pobreza. Receber alguma coisa para o Instituto será raramente uma falta, porque, ordinariamente falando, se poderá razoavelmente supor a permissão do superior. Não aceitar será às vezes uma falta contra a caridade, e recusar aquilo a que o Instituto tem direito, por exemplo, a espórtula das missas ou as gratificações dos trabalhos apostólicos, seria, falta contra o voto de pobreza.

Pecariam também contra o voto de pobreza os procuradores, os ecônomos e em geral todos os que são encarregados da administração duma comunidade, se fizessem despesas contrárias à Regra ou ao espírito religioso e à vontade dos superiores. Os superiores não podem tampouco permitir-se para si mesmos despesas desarrazoáveis que não podem autorizar a outros; porque, como diz a Regra, eles são administradores e não proprietários dos bens da comunidade; embora chefes da comunidade, são também seus membros: a Regra traça-lhes os limites que eles não podem ultrapassar; o voto de pobreza tem para eles todo o seu rigor e por isso mais funesto seria ainda o mau exemplo que eles dessem. Assim, o juramento que fazem, ao assumirem o cargo, obriga-os a interditar-se o que devem interditar aos outros.

O voto de pobreza pode, enfim, ser lesado pelo pecúlio, do qual é preciso dizer uma palavra.

Pecúlio é um bem de valor, não incorporado à comunidade e cuja posse ou uso é permitido a um religioso. O pecúlio, cujo uso fosse independente e arbitrário, seria contrário à essência do voto de pobreza. Se o seu uso não for independente, será ainda contrário ao espírito da Igreja, contrário à vida comum, e fonte de toda sorte de abusos. Esse costume, entretanto, onde já existe, é tolerado desde há muito em várias Ordens religiosas e por isso o uso do pecúlio não será em si uma falta contra o voto de pobreza, como o explica Santo Afonso. Mas o santo doutor adverte aos superiores que, concedendo-o a seus religiosos, não cometem falta grave contra a pobreza, mas são gravemente responsáveis pelo dano considerável que causam à observância.

Entre os Redentoristas o pecúlio é severissimamente proibido e absolutamente interdito por seu voto de pobreza.

Acabamos de ver que o que ó voto proíbe é o uso independente das coisas; ora, o uso cessa de ser independente, quando autorizado pela permissão do superior: é a permissão legítima que salvaguarda o voto de pobreza. Importa notar que a permissão pode ser: 1º quanto à forma, expressa ou tácita ou pressuposta, e 2º quanto ao fundo — válida ou inválida.

Permissão expressa é aquela que é dada pelo superior por um ato formal: por escrito, por palavra, por sinal. Evidentemente a permissão de fazer uma coisa contém a permissão de fazer o que ela supõe ou exige necessariamente: permitir procurar um fim é permitir empregar os meios necessários.

A permissão é tácita, quando o superior presente e testemunha da ação do seu inferior não se opõem, quando o poderia fazer facilmente. Qui tacet consentire videtur. Dizemos: quando o poderia facilmente; porque no caso em que o superior é moralmente impedido de falar, o seu silêncio não pode ser interpretado como consentimento.

A permissão é presumível quando o inferior julga, por legítimas razões, que o superior a concederia se estivesse presente ou se fosse suplicado. Para presumir legitimamente uma permissão, é preciso que, de um lado, haja impossibilidade moral de pedi-la e, de outro, haja motivos sérios de agir sem demora; é necessário ainda que a regra ou os superiores não tenham exigido para a coisa uma permissão expressa.

A permissão é inválida ou nula, quando ultrapassa os poderes do superior, ou quando é extorquida por astúcia, por fraudes ou semelhantes. Permissão válida é a que o superior concede livremente e com conhecimento de causa, nos limites do seu poder.

Peca contra o voto quem cientemente age com permissão nula; o mesmo se diga do superior que ultrapassa voluntariamente os seus direitos.

A permissão válida, expressa ou legitimamente presumível, salvaguarda o voto de pobreza. Notemos, todavia, que é muito fácil abusar da permissão presumida. Santo Afonso, embora ensine que a permissão razoavelmente suposta escusa de qualquer falta, observa que, na maioria dos casos, os atos de propriedade postos com essa permissão presumida são pelo menos pecados veniais, porque o superior se opõe a esses, senão quanto à substância, ao menos quanto à maneira, isto é, pelo fato de serem postos sem a autorização formal.

Dizem: O superior certamente me concederia tal objeto, se lho pedisse; se tomo, pois, esse objeto sem lhe pedir permissão, talvez fique contrariado, mas então ele será invitus quoad substantiam sed non quoad modum, e a pobreza será salvaguardada e só a obediência será lesada. Isso equivaleria a dizer que se não deve mais pedir permissão sempre que unia coisa parecer razoável, necessária ou útil. Que será então da disciplina religiosa?

O superior conceder-se-ia tal objeto, se eu lho pedisse. É muito possível. Mas muitas vezes também, embora disposto a dar esse objeto quando pedido, o superior é formal e absolutamente oposto a que lho tomem sem a sua autorização, e nesse caso, segundo a expressão de Vermeersch, é oposto ao ato por causa do modo incorreto com que é posto. Contentar-se então com a permissão presumida, seria lesar não só a obediência, mas também o voto de pobreza. Ora, 1º essas são as disposições do superior quando preveniu que para tal ou tal caso exige uma permissão expressa; e 2º é preciso supô-lo nessas disposições quando se tem facilidade de recorrer ao superior. Com efeito, tolerar que alguém se dispense de pedir as necessárias permissões quando facilmente o pode fazer, e não se opor com toda a energia a esse abuso seria da parte do superior provocar a ruína da observância e da pobreza religiosa; o que não se pode supor dele. E, aliás, não lhe seria permitido conceder tal amplitude a seus súbditos. É sentimento comum que a permissão deve ser presumida razoavelmente, e não pode ser presumida razoavelmente senão quando há impossibilidade moral ou ao menos séria dificuldade de recorrer ao superior. Além disso, será preciso fazer ratificar a permissão presumida para conservar legitimamente um objeto que se aceitou só com essa permissão. Acrescentemos que, em regra geral, se deve evitar presumir a permissão do superior mais alto para uma coisa que o superior imediato recusa: isso seria também a ruína da observância. Tal não pode ser o pensamento dos superiores maiores. Estes, para não diminuírem a autoridade dos superiores locais, não querem intervir nos negócios de pouca importância; doutro lado, não tolerariam que alguém se contentasse com a sua permissão presumida para um negócio grave que não fosse urgente, como se dirá. Mesmo quando o superior não tivesse razão em recusar a permissão pedida, diz o padre Marc, o súdito, que passasse além, violaria o seu voto de pobreza, a não ser que qualquer demora lhe fosse gravemente prejudicial, porque então pode supor a permissão dos superiores maiores; é o caso de se usar a epikéia e enfim é máxima que a necessidade não tem lei (Marc 2159. Quaer. 2o).

Pedir fiel e simplesmente todas as permissões de que alguém julga precisar, e aceitar sem queixa e sem murmuração as recusas que se podem obter, são o indício dum verdadeiro fervor e muitas vezes até duma grande virtude: é praticar a um tempo a simplicidade, a humildade, a confiança filial, a obediência e a pobreza; mas a desconfiança, o amor próprio e o orgulho preferirão, às vezes, sofrer uma privação, mal aceita, aliás, ou então, passando pelas permissões exigidas, calcarão aos pés a obediência e a santa pobreza.

Resta-nos falar com a possível brevidade da gravidade das faltas contrárias ao voto de pobreza; mas não há assunto em que os moralistas estejam menos de acordo, como neste. Expondo simplesmente o nosso modo de ver, não pretendemos resolver, a grado de todos, esta questão tão complicada.

Notemos primeiro que, além do escândalo, que muitas vezes resulta, a violação do voto de pobreza pode encerrar uma dupla malícia: essa violação pode lesar a um tempo a religião e a justiça. É evidente que a virtude da religião é com isso sempre violada. Não se dá o mesmo com a justiça; esta só é lesada quando o religioso dispõe indebitamente do bem alheio; seja do bem da sua congregação, e então a injustiça reveste também a natureza do sacrilégio, sendo essa bem coisa consagrada a Deus; — seja do bem dum terceiro. Se, ao contrário, dispõe arbitrariamente do que lhe pertence ou foi dado para seu uso, lesa a religião, mas não a justiça.

Em uma falta contrária à pobreza, pode, pois, haver um duplo pecado: pecado contra o voto e pecado contra a justiça. Um e outro podem ser graves, mas a gravidade dum não acarreta necessariamente a gravidade do outro. Assim como o religioso pode lesar a religião, sem lesar a justiça, ou lesar essas duas virtudes ao mesmo tempo podem pecar gravemente contra as duas ou lesar levemente a justiça, ofendendo gravemente a religião e vice-versa.

Se lesa a justiça, a sua falta deve ser computada como o furto ou o dano injustamente feito ao próximo. Ora, a gravidade do furto pode ser absoluta ou relativa; absoluta, quando se trata de soma tal que o senso comum declara importante em si mesma e independente do dano sofrido pela pessoa a quem ela foi sub¬traída; é assim que os moralistas declaram grave o furto de vinte a trinta francos furtados mesmo a um rei; — relativa, isto é, ao grave dano causado ao próximo pela injustiça cometida em detrimento seu, assim, pode-se lesar gravemente a justiça para com um pobre, roubando-lhe um objeto de pouco valor, mas cuja perda lhe proporciona notável prejuízo. Para se avaliar a injustiça que pode acompanhar a violação do voto de pobreza, é preciso ter em vista o estado de fortuna da comunidade ou do terceiro a quem se faz injustiça.

Nesse particular vários autores pretenderam que o religioso poderia ser considerado como o filho na casa paterna; e assim para o religioso, dispondo arbitrariamente dos bens do seu mosteiro, a quantidade requerida para constituir uma falta grave seria muito mais considerável. Mas Santo Afonso rejeita esse sentimento, que não julga fundado. De fato, o filho é capaz de possuir e deve mesmo entrar um dia na posse dos bens paternos, enquanto que o religioso não pôs- sue nada como próprio e não tem direito, no futuro, aos bens do mosteiro. Os pais veem nos roubos dos filhos, sobretudo, o dano temporal que deles resulta, o superior deplora, sobretudo, o dano espiritual causado ao religioso que viola a pobreza. O pai de família é dono de seus bens e pode ceder de seus direitos, mormente a respeito de seus filhos; mas o superior não é dono dos bens da comunidade e não pode deles dispor à sua vontade, mas só de acordo com a regra. E por esse motivo um superior é mais exposto às injustiças cometidas por seus súbditos do que um pai o é às de seus filhos; por conseguinte, estas são menos graves do que aquelas.

É quase escusado dizer que o religioso é obrigado a reparar, se possível, o dano que causou injustamente. Mas, se nada possuir de próprio, só lhe resta pedir ao superior o perdão de sua dívida e reparar a sua falta por uma vida mais fiel e dedicada.

Quanto ao pecado contrário ao voto, a maior parte dos autores julgou poder assemelhá-lo ao pecado contra a justiça e formula este princípio geral: A matéria que basta para fazer do roubo um pecado grave contra a justiça, basta igualmente para constituir um pecado grave contra a religião ou contra o voto de pobreza. Essa regra, pouco precisa, como parece, promovem na prática verdadeiras dificuldades e pode abrir a porta a abusos que homens conscienciosos e amigos da pobreza não poderiam admitir. Também aqueles mesmos que a formularam não harmonizam entre si quanto à aplicação que dela convém fazer.

De fato, lembramos mais acima, distingue-se para a justiça, em matéria de furto, a gravidade absoluta e a gravidade relativa; qual das duas se adotará para avaliar o pecado contrário ao voto de pobreza? Não se pode adotar, dizia Suárez, a gravidade relativa, que é demasiado variável. Além disso, pode-se dizer ainda, num mesmo Instituto haveria divergência de mosteiro a mosteiro, segundo a diferença de rendas; assim, tal falta grave num mosteiro pobre, seria leve num mosteiro mais rico. E enfim, se o religioso, sem lesar a justiça, só viola o seu voto, falta base para julgar a falta dele. Doutro lado, acrescenta Suárez, adotar a gravidade absoluta seria ir contra o sentimento comum dos que julgam retamente esta questão de pobreza, porque seria conceder aos religiosos uma amplidão excessiva, que seria soberanamente funesta à manutenção da pobreza. Conclui que esse dois pecados, dos quais um lesa a religião e outro a justiça, não devem ser encarados sob o mesmo ponto de vista.

Para avaliar o roubo, diz ele, considera-se o dano causado ao próximo em seus bens temporais; e a gravidade desses danos se mede pelo valor desses bens em relação às necessidades da vida presente. Mas na violação do voto de pobreza, trata-se não do dano causado a Deus, que não pode sofrer dano algum, mas da infidelidade a uma promessa sagrada e da injúria que dela resulta para o Senhor. O religioso é aqui culpado, porque se arroga um direito, do qual fez sacrifício a Deus; põe um ato de propriedade, que se interditou, por um compromisso sagrado. Para saber se comete falta grave, basta ver se põe um ato importante de propriedade, e se, falta com isso, de maneira séria, à promessa que fez a Deus. Ora, acrescenta ele, se alguém fez voto de dar de esmola quatro peças de dinheiro (o dinheiro naquele tempo valia mais do que agora) e se depois renunciar à sua promessa, qual¬quer homem prudente e consciencioso o condenaria de falta grave. E conclui que a mesma soma basta para constituir uma falta grave contra o voto de pobreza, pois que de ambos os lados se lesa a virtude da religião. Esse raciocínio é certamente digno de atenção, mas notar-se-á que essa regra é ainda bem imprecisa. Suárez refere-se ao juízo dos homens prudentes e conscienciosos, mas dois homens prudentes e conscienciosos podem não estar de acordo numa questão complicada.

Hoje os melhores autores continuam a referir-se à regra dada pelos antigos e com razão, porque, como veremos, há sempre uma analogia real entre o furto e o pecado contrário ao voto de pobreza; mas dão este outro princípio que parece de mais fácil aplicação às diferentes Ordens religiosas: Eam materiam esse gravem, quae pro conditione in qua, ex sua professione, versatur religiosus, existimetur esse notabilis pretii. Para compreendermos esse princípio, precisamos lembrar-nos que a justiça e a pobreza se ocupam da pro- propriedade, porém de modo diferente: enquanto a justiça nos faz respeitar o direito de propriedade alheia, a pobreza nos despoja mais ou menos desses direitos de propriedade e nos proíbe mais ou menos os atos de proprietários. Para se avaliar a falta dum religioso ao violar o seu voto de pobreza é necessário considerar, sobretudo o grau de pobreza ao qual o obriga a sua profissão; é senhor antes de tudo ter em conta o espírito do seu Instituto. Todas as ordens, com efeito, não urgem igualmente o desnudamento e não professam o mesmo rigor na prática da santa pobreza. É, pois, evidente que tanto mais um Instituto exige de seus membros a pobreza austera e rigorosa, quanto mais estreitos são lá os compromissos, tanto mais depressa e gravemente são lesados esses compromissos. É assim que em certas Ordens muito austeras, a módica soma de dois francos é considerada como matéria grave de pobreza. Mas para as outras Ordens de menor austeridade, que seguem as leis comuns da pobreza, qual será o limite? Seja qual for a riqueza dessas Ordens como corpos religiosos, os súbditos que nelas professaram a pobreza não podem, sem mentir indignamente à sua vocação, pretender viver como ricos; e se não se lhes manda descer ao ínfimo grau de desnudamento, não lhes pode ser permitido elevar-se no uso das coisas do mundo e, para a facilidade das despesas, acima das pessoas de condição média, mormente quando a regra o declara como o faz a dos Redentoristas e a dos Jesuítas, ao que parece. Eles deverão ter como importante a soma que as pessoas de condição média consideram como tal; e julgamos não ser demasiado rigoroso dando como norma a soma de 8 a 10 francos, visto o valor atual do dinheiro em nossa terra. De fato, uma pessoa da classe média liga séria importância a essa soma, seja quando a gasta, seja quando a perde ou adquire. Só um pródigo ou um homem de grande fortuna faria pouco caso dela. Dizemos que todo religioso, seja qual for a riqueza do seu convento, o qual é obrigado a seguir o gênero de vida da condição média, cometeria uma falta grave contra a pobreza, se despendesse, sem permissão, 8 a 10 francos; e como roubar essa soma a uma pessoa da classe média seria cometer a seu respeito uma injustiça grave, vê-se que há uma real analogia entre o roubo e a violação do voto de pobreza, embora sejam esses os dois pecados apreciados sob pontos de vista diferentes, é esse o pensamento de Vermeersch.

Quase nos mesmos termos, depois de salientar o desacordo dos autores sobre a aplicação da regra dada acima, o continuador do padre Marc exprime o seu modo de pensar (n° 2158. quaer. 4º).

Cada um, praticamente, siga a sua regra, que de-termina a extensão e a força do voto de pobreza. Se a regra se cala sobre esse ponto, é preciso recorrer à interpretação geralmente aceita na Ordem a que pertence.

Do que fica dito, concluiremos ainda com as Instituições morais que: para se julgar do pecado contrário ao voto de pobreza, não se tem de examinar se o religioso dispõe dos seus bens ou dos bens alheios, nem se o seu mosteiro é rico ou pobre; porque nesses diferentes casos, feita abstração da justiça que aí se possa encontrar, o seu ato de propriedade é o mesmo e reveste a mesma gravidade (Marc 21-58).

Outra conclusão. O religioso viola o seu voto de pobreza, pondo atos de propriedade que se interditou. Ora, o ato de propriedade pode ser mais ou menos completo e mais ou menos abusivo. Uma coisa é por exemplo, empregar uma coisa sem permissão e outra coisa é destruí-la o uso de uma coisa não tem absolutamente o valor da coisa em si. Quando, pois, indicamos a soma de 8 a 10 francos como matéria grave de pobreza, supomos que um religioso põe um ato completo de propriedade em relação a essa soma ou em relação a um objeto que tem o seu valor. Quanto mais perfeito é o ato de domínio, tanto maior quantidade se exige para matéria grave (Marc). Assim o religioso que recebe dinheiro para o dar aos pobres e que o distribui a pobres da sua escolha, falta ao voto de pobreza segundo Santo Afonso; mas põe um ato de propriedade menor do que se lhe fosse completamente livre empregar esse dinheiro à sua vontade em obras pias ou outras. Nesse caso o santo doutor indica como matéria grave uma soma mais importante, uns 30 francos (Marc 2158 quaer. 4 ).

Também emprestar é menos grave do que dar; e se o objeto emprestado não corre risco de se perder, mas deve ser restituído com certeza, e, sobretudo se é emprestado apenas por pouco tempo, haverá dificilmente falta grave. O mesmo raciocínio vale quando se toma emprestado, exceto se o religioso assumisse responsabilidades pecuniárias importantes; isso seria evidente- mente mais grave.

Dar a um confrade é menos grave do que dar a um estranho, porque nesse caso o objeto, ficando na comunidade, não é propriamente alienado. Tomar sem permissão uma coisa de que se precisa é menos grave do que tomar uma coisa supérflua.

Enfim, embora seja contrário ao voto de pobreza e severamente proibido pela regra comer sem permissão em casa de estranhos, ou em casa, entre as duas refeições, dificilmente seria pecado grave, exceto, por exemplo, se o religioso recebesse para guardar em seu quarto ou para seu uso comestível ou licores preciosos. Semelhantemente ainda o religioso lesa o seu voto dê pobreza, se não toma suficientemente cuidado com a roupa, se não poupa os objetos que a comunidade põe a seu serviço ou se faz deles uso arbitrário; mas seria necessária negligência mais que ordinária e desperdício sério para chegar à matéria grave.

O religioso fervoroso só tem, de resto a preocupação de imitar sempre mais perfeitamente o desnudamento de seu divino Mestre. Não só foge com o mais profundo horror de tudo quanto possa lesar gravemente o voto, mas evita com o maior cuidado o perigo de lá chegar.

Voltemos à Virtude da Pobreza

Enquanto o voto nos despoja, dissemos, a virtude nos faz amar o despojamento. De fato, não é a pobreza material ou a pecuniária que faz o religioso, mas sim o amor da pobreza. Quão infelizes são os que no desnudamento murmuram ou blasfemam e não são virtuosos! Mas poder-se-ia amar a pobreza por um motivo humano, como certos pagãos que a abraçaram voluntariamente para escapar a tirania das riquezas e se dedicar mais livremente ao estudo; isso não é pobreza cristã; esta é inspirada por um motivo sobrenatural, pelo amor de Deus. Pobre evangélico é aquele que se despoja dos bens do mundo para seguir e imitar Jesus Cristo e para tender ao perfeito amor de Deus.

Enfim, acrescenta Santo Afonso, ama de fato a pobreza quem ama e aceita os efeitos da pobreza, como a fome, a sede e, sobretudo os desprezos que ela acarreta. Pretender amar a pobreza e rejeitar os seus sofrimentos e privações, seria tornar-se ridículo diante de Deus e dos homens.

Seja, entretanto, qual for o desapego do nosso coração, somos obrigados a usar dos bens do mundo para a manutenção da nossa pobre vida. Quanto mais abrasado, porém, for um coração do amor divino, tanto mais se afastará das criaturas, das quais quisera libertar-se completamente e tanto mais restringirá o uso que deve delas fazer. Compreende-se, todavia, que a alma não chega subitamente a essa perfeição sublime; nesse caminho do desapego e do desnudamento há muitas etapas; é por degraus que se opera essa libertação da alma pelo espírito de pobreza. Santo Afonso indica quatro principais:

“O primeiro grau da perfeita pobreza religiosa, diz ele, consiste em não possuir coisa alguma como própria”

Isto é, em não ter nada com independência ou sem as legítimas permissões. Do contrário, alguém agiria não só contra a virtude, mas também contra o voto de pobreza.

“O segundo grau é não ter nada de supérfluo”

Todo supérfluo constitui abundância e, por conseguinte, é contrário à pobreza. “Estou na Regra, dirá alguém, tenho as permissões necessárias”. — A permissão de ter um objeto supérfluo, responde Santo Afonso, fará com que não seja proprietário, mas não impedirá que percas o mérito da perfeita pobreza.

“Terceiro grau: não se queixar, mesmo que falte o necessário”

Poderá dizer que ama de fato a pobreza quem pretendesse que nada lhe faltasse? Qual é o pobre que tem tudo o que quer e ao qual nunca falta o necessário?

“Enfim o quarto e último grau da pobreza perfeita consistem não só em alguém se contentar com o que é pobre, mas ainda em escolher o que é mais pobre em matéria de habitação, alimento, roupa, etc. Numa palavra, é a preocupação de ser o mais pobre possível, é querer sentir os sacrifícios da pobreza, procurá-los e comprazer-se neles por amor de Deus, que de rico se fez pobre e o mais pobre dos pobres”

Os três primeiros graus constituem uma progressão no despojamento real das criaturas; e todos os três são necessários para completar a virtude da pobreza. A perfeita pobreza de espírito exige não só que se não possua nada como propriedade nem coisa supérflua, mas ainda que se aceitem com submissão as privações. Quem realiza essas três condições e leva o despojamento até ao terceiro grau, merece já e em toda a verdade o nome de pobre evangélico. Com o quarto grau a alma entra na vida sublime em que a virtude vai de auge em auge. Ascensiones in corde suo disposuit (SI 83, 6), até lançar-se no seio do Deus das virtudes, abismo infinito de todas as virtudes e perfeições.

Derradeira observação. Objeto próprio da pobreza, como se viu, são os bens que servem para a manutenção da vida: o dinheiro e tudo quanto ele proporciona: alimento veste móveis, etc., numa palavra, todos os bens temporais sobre os quais se pode exercer direito de propriedade: a pobreza despoja e desprende deles o coração. Mas, num sentido mais amplo e menos rigoroso, refere-se à pobreza o desapego da pátria, dos pais e dos amigos, dos empregos e dos lugares, mesmo da saúde e da vida, cujo amor desordenado nos pode evidentemente afastar de Deus. Por isso indicam-se muitas vezes essas coisas como objetos secundários da pobreza. De resto, a pobreza aparece-nos em todo o seu esplendor quando, semelhante ao náufrago perdido no meio dos mares, o verdadeiro pobre pode dizer:

“Meu Deus, nada mais tenho: nem bens, nem pátria, nem pais, nem amigos, não tenho e não quero possuir senão a Vós e a Vossa Providência, porque Vós substituís tudo para mim. Deus meus et omnia

Feliz e divina pobreza! Rainha do mundo, por ela dominado e calcado aos pés, rica de tudo porque nada deseja mais jubilosa no desnudamento do que os mundanos no meio de seus tesouros, o sorriso nos lábios e a alegria no coração, marcha com passo acelerado na rota dos céus. Ouve entusiasta a palavra do Filho de Deus, que, para sustentar os seus impulsos, lhe promete os mais magníficos triunfos e que, fiel à sua palavra, lhe dá já aqui o cêntuplo pelas delícias que derrama em seu coração; abrasa-se, sobretudo à vista desse Deus que lhe testemunhou tanta ternura; e com ardor sempre crescente imita-o para lhe pagar amor com amor e comprazer-se com ele nas privações e nos desprezos, Como resistir à atração dos seus exemplos e, sobretudo ao poder do seu amor?

Contemplemos agora os exemplos de pobreza que o divino Redentor nos dá e peçamos-lhe nos arraste em Seu seguimento.

II. Da Pobreza de Espírito ou do Desapego de tudo o que é criado

Os escritos seguintes são de Santo Afonso Maria de Ligório.

Quando os mestres da vida espiritual falam da pobreza espiritual, tomam-na regularmente em duplo sentido: no sentido estrito, designam com essa expressão o desapego do coração de todos os bens da terra; no sentido, lato, entendem o desapego de todas as coisas criadas, de qualquer natureza que sejam. Tomada neste sentido mais amplo, é a pobreza de necessidade imprescindível para todos os que aspiram à perfeição.

Nosso coração não pode viver sem amor: ou ama a Deus, ou as criaturas. Se não ama as criaturas, amará a Deus por necessidade. É o motivo por que o Espírito Santo nos exorta a purificar diligentemente o nosso coração de todas as inclinações que não tenham a Deus por objeto, porque é “dele que procede a vida” (Pr 4, 23). Enquanto nosso coração ama a Deus, vive; se vota às criaturas o seu amor, dá-se a morte.

Para nos santificar, devemos expelir de nosso coração tudo o que não é Deus. Quando alguém procurava os antigos Padres do deserto, para ser admitido em sua companhia, dirigiam-lhe a seguinte pergunta:

“Trazes um coração vazio, para que o Espírito Santo o possa encher?”

E tinham razão: um coração em que se acha qualquer amor terrestre, não pode ser repleto do amor de Deus. Quem leva à fonte um jarro cheio de terra, não o poderá encher d’água, se não retirar antes a terra.

Donde provém que tantos homens, que se dão à oração e comungam muitas vezes, não fazem grandes progressos no amor de Deus? Provém de terem o coração cheio de terra, isto é, de amor-próprio, de vaidade, de vontade própria, de apego aos pais e parentes e outras criaturas. Se não removerem essa terra, o amor de Deus nunca poderá entrar nele. Dai-me uma alma que não ama a criatura alguma deste mundo, e vereis um coração todo inflamado no amor de Deus.

Quem desejar, pois, atingir a caridade perfeita, deverá praticar a pobreza de espirito em seu sentido mais amplo. Em primeiro lugar, deverá desprender-se dos bens da terra; em segundo lugar, das honras deste mundo; em terceiro lugar, de seus semelhantes, e, em quarto lugar, de si mesmo.

Do Desapego dos Bens da Terra

“Bem-aventurados os pobres de espirito” (Mt 5, 3), diz o Salvador, e, “Ai dos ricos” (Lc 6, 24). Que quer dizer com isso? Talvez que todos os pobres que imploram a nossa caridade são felizes e que todos os ricos são infelizes? Certamente não; Ele quer com isso recomendar a todos, quer ricos, quer pobres, a virtude do desapego; pois muitos pobres há cujos corações estão apegados às coisas terrenas e muitos ricos que delas estão inteiramente desapegados.

1) Quanto ao que se refere aos pobres propriamente ditos, deve-se dizer que, só por sofrerem falta dos bens terrenos, não possuem ainda a pobreza de espírito: para que a possuam, requer-se que não queiram possuir nenhuma outra coisa fora de Deus. “Encontro muitos pobres, diz Santo Agostinho (Serin. 14), e debalde procuro um”, isto é, muitos são de fato pobres, mas poucos em espírito e no desejo. Santa Teresa diz dos que são extremamente pobres, mas não em espírito, que eles enganam o mundo e a si mesmos. Para que lhes servirá sua pobreza em bens da terra? Quem é externamente pobre, mas internamente alimenta desejos de riquezas, tem simplesmente os incômodos da pobreza e não a virtude. Os pobres verdadeiramente virtuosos não desejam nada fora de Deus e são por isso imensamente ricos. A eles se podem aplicar as palavras de São Paulo: “Não têm nada e possuem tudo” (2 Cor 6, 10), pois, se não possuem bens temporais, exclamam, cheios de consolação:

“Vós só, meu Deus, me bastais”

2) Vejamos agora como os ricos e possuidores de bens temporais podem praticar a pobreza de espírito:

a) Em primeiro lugar, não devem ter nenhum apego desordenado a suas riquezas. Que são os bens deste mundo? Simples bens aparentes, que não podem satisfazer o coração do homem:

“Vós comeis e não vos fartais” (Ag 1, 6)

“Em vez de matar a nossa fome, esses bens a despertam”, diz São Bernardo (De vit. cler., c. 5). Se os bens deste mundo pudessem satisfazer o homem, seriam os ricos e poderosos plenamente felizes; a experiência, porém, ensina o contrário, pois esses homens são, em geral, os mais infelizes; porque vivem continuamente atormentados por temores, ciúmes e tristezas.

Ouçamos a Salomão, que possuía em abundância os bens da terra: “Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade”, afirma ele (Ecl 1, 2) , tudo é mentira e engano, e, mais ainda, tristeza e aflição de espírito, desde que a alma não encontra nelas satisfação, antes só aflição e amargura. A isso acresce ainda a circunstância de que aqueles que cuidam sempre em aumentar os seus bens acham-se em grande perigo de se perderem eternamente. Disso nos previne o Apóstolo, dizendo que os escravos da avareza não só são atormentados por muitos cuidados e inquietações e impedidos no seu adiantamento espiritual, como também “caem em tentações e nos laços do demônio e em muitos desejos inúteis e perniciosos” (1 Tim 6, 9), que submergem os homens no abismo da morte e da perdição.

E, de fato, a quantos desvarios, a quantos pecados, contra a caridade e a justiça não arrastou a cobiça dos bens terrenos?

“Quem amontoa dinheiro, diz Santo Ambrósio, dissipa os bens da graça”

São Paulo equipara a avareza à idolatria, pois o avarento faz do seu dinheiro o seu deus, isto é, seu último fim e aspiração.

Se quisermos pertencer a Deus, devemos renunciar ao apego dos bens deste mundo.

“Quem aspira aos bens terrenos, diz São Filipe Néri, nunca se tornará santo”

As riquezas, que devemos desejar são as virtudes e não os bens temporais, diz São Próspero; a caridade, a piedade, a humildade, a mansidão constituirão a nossa grandeza no céu, depois de nos haverem auxiliado na terra no combate contra os inimigos de nossa salvação.

Para que nos servem os bens deste mundo, se temos de abandoná-los e se, mesmo agora, não são capazes de satisfazer o nosso coração? Procuremos, pois, adquirir bens que podemos levar conosco e nos farão uma vez eternamente felizes. Sigamos o conselho do Salvador (Mt (5, 19):

“Não queirais entesourar para vós tesouros da terra, onde a ferrugem e a traça os consomem… entesourai tesouros no céu”

b) Os ricos podem também praticar a pobreza de espírito, dando esmolas e praticando boas obras.

“Oh! feliz troca, exclama São Pedro Damião, damos lodo, isto é, bens da terra, e por ele recebemos ouro, a saber, graças divinas e a recompensa eterna no céu”

Em todos os tempos houve cristãos de alta nobreza que viveram na maior simplicidade, para poderem praticar maior número de boas obras. Violanta Palombara, uma dama nobilíssima, vestia-se grosseiramente, servindo-lhe de cobertor uma simples manta de lã e tendo seu rosário de madeira ordinária. Ora, pouco antes de sua morte, exclamou:

“Que vejo eu? Meu vestido está todo resplendente, minha coberta parece ser de ouro, meu rosário de diamantes”

c) É também um meio de praticar o desapego dos bens da terra suportar com resignação à vontade de Deus grandes danos temporais ou a injustiça dos que nos roubam nossos haveres. A fé nos ensina que nada sucede sem a permissão ou vontade de Deus. Portanto, se alguém nos prejudica em nossa honra, nos rouba nossos bens, Deus não quer o pecado que o próximo comete, mas quer o dano que sofremos, e isso para nosso maior bem.

Quando um mensageiro trouxe a Jó a notícia que os sabeus haviam roubado todas as suas riquezas e trucidado seus filhos, exclamou o santo homem (Jó 1, 21): “O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou”, e não disse: O Senhor mo deu e os sabeus mo roubaram. Reconheceu que essa desgraça lhe provinha da vontade de Deus, e ajuntou:

“Como foi do agrado do Senhor, assim sucedeu; bendito seja o nome do Senhor”

d) Mais: é próprio da pobreza de espírito ou desapego dos bens do mundo evitarem-se, quanto possível, os processos. Cada contenda por causa de bens temporais é uma fonte de inquietações, rancores e pecados. Por isso diz o Salvador (Mt 5, 40):

“Ao que quiser de¬mandar contigo em juízo e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa”

É verdade que isso não deixa de ser unicamente um conselho; contudo, devemos, pelo menos, procurar evitar todos os processos de menor monta.

“Prefere perder alguma coisa, diz Santo Agostinho (Sermo 167), para que sirvas a Deus e não às tuas contendas”

Renuncia ao mamon [dinheiro], para te comprares a paz.

e) Uma prova especial de desapego dos bens deste mundo dão os que não se deixam influenciar por dinheiro e bens terrestres, mas só pela virtude, quando se trata do casamento de seus filhos. Um fidalgo, de nome Miguel Faciemon, que foi martirizado no Japão, pelo ano de 1605, deixou uma filha, que também foi condenada à morte, mas, libertada pelos cristãos, foi levada a Arima. Ai, um homem de posição queria-a para esposa de seu filho. Quando lhe disseram que a jovem estava despojada de tudo e não possuía nenhum dote, respondeu:

“Basta que seja filha de um mártir”

f) Finalmente, patenteia-se o espírito de pobreza, mostrando-se pronto a antes renunciar a tudo, riquezas, honras, dignidade, cargos, numa palavra, qualquer lucro temporal, do que a ofender a Deus.

Era esse o sentimento de todos os mártires e deve ser também o nosso. Dizendo a São Vicente, o diácono, o governador de Tarragona, Daciano:

“Meu filho, és ainda jovem; os favores da fortuna te aguardam; eles se oferecem por si mesmos a ti; para alcançá-los, basta que renegues a tua religião. Obedece ao imperador e não te sujeites a uma morte ignominiosa”

— Voltou-se ele para o Bispo Falério, que fora conduzido à presença do governador juntamente com ele, e disse-lhe:

“Pai, se queres, respondo em teu lugar”

O santo Bispo, que estava resolvido a tudo padecer por amor de Jesus Cristo, respondeu:

“Sim, meu filho, como te incumbi até hoje de anunciar a palavra de Deus, do mesmo modo te encarrego agora de professar a nossa fé”

Vicente então expôs a Daciano que ambos adoravam um só Deus e não podiam adorar os demônios, que eram os deuses do império romano.

“E não julgues, disse ele, que nos abalarás por meio de ameaças de morte ou promessas de recompensa. Nada do que há no mundo se pode comparar com a honra e alegria de morrer por Jesus Cristo”

Furioso pela franqueza do santo diácono, exclamou Daciano:

“Ou sacrificais aos deuses ou pagareis com a morte o desprezo deles”

Vicente respondeu:

“Já te disse que não nos podes causar maior alegria ou honra que infligindo-nos a morte por Jesus Cristo, e podes ficar convencido de que antes te cansarás martirizando-nos que nós deixando-nos martirizar”

3) Consideremos-agora alguns meios que se devem empregar para se desprender o coração da terra:

O primeiro meio para afastar do coração o apego desordenado dos bens deste mundo consiste em pensar muitas vezes na morte. O dia da morte é chamado dia de dano, porque nesse dia se perdem as honras, riquezas, prazeres e todos os bens da terra. Por isso dizia Santo Ambrósio que não deveríamos chamar — nossos — esses bens, desde que não está em nosso poder levá-los conosco para o mundo ao qual nos acompanham nossas virtudes. Tinha, pois, razão aquele homem que, depois de haver conhecido a vaidade do mundo, escreveu em uma caveira as seguintes palavras:

“Ao que reflete, tudo parece desprezível”

Quem pensa na morte, não pode amar a terra. Mas como explicar então a existência de tantos amantes da terra? Porque não pensam na morte.

“Pobres filhos de Adão, diz o Espírito Santo, por que não removeis de vossos corações lodo o apego às coisas da terra, que vos obriga a correr atrás da vaidade e da mentira?” (SI 4, 3)

O que sucedeu a vossos antepassados se dará também convosco. Também eles possuíram habitações que agora são vossas; dormiram talvez no mesmo leito de que vos servis; agora não vivem mais e a vossa sorte será a mesma que a deles.

O segundo meio é a meditação assídua da pobreza de Jesus Cristo e do apreço em que ele tinha a virtude. Para nosso bem e para nos dar um exemplo, quis o divino Salvador levar uma vida tão pobre aqui na terra, que Santa Madalena de Pazzi chamava a pobreza a esposa de Jesus. São Bernardo diz:

“A pobreza não se encontrava no céu, reinava, porém, na terra; os homens não conheciam seu valor. O Filho de Deus desceu então à terra para torná-Ia por sua companheira e ensinarmos a apreciá-la” (In vig. nat. Dní., s. 1)

Este pensamento quadra com o que o Apóstolo escreveu a seus discípulos:

“Vós conheceis a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por vosso amor, a fim de que fôsseis ricos por sua pobreza” (2 Cor 8, 9)

Apesar de ser o senhor de todas as riquezas do céu e da terra, o divino Salvador quis fazer-se pobre na terra para que, por Seu exemplo, nos tornemos ricos: queria nos levar a amar a pobreza, como Ele, para que, desprendendo-nos dos bens temporais, participássemos dos tesouros do céu.

O terceiro meio é a meditação constante da verdade que os pobres de espírito terão uma recompensa mui grande e absolutamente certa. Sua recompensa é absolutamente certa, pois o Salvador, enumerando, no Evangelho, as bem-aventuranças, quando trata das demais, se refere ao futuro, por exemplo: Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os de coração puro, porque verão Deus; mas, falando dos pobres de espírito, promete-lhes a recompensa já nesta vida: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.

A recompensa dos pobres de espirito é, além disso, muito grande.

“Quanto menos possuímos aqui na terra, diz Santa Teresa, tanto maior será nossa recompensa no céu, onde nossas moradas corresponderão exatamente ao amor com que imitamos aqui na terra a vida de Jesus”

Os verdadeiros pobres de espírito gozam já nu terra alegrias celestes.

“Quanta felicidade não causa a pobreza voluntária, exclama São Lourenço Justiniano (De disc. mon. c. 2); ela nada possui e nada teme, está sempre alegre, tem sempre abundância, sabendo tirar proveito espiritual de tudo o que a acabrunha”

Segundo São Bernardo, a avareza tem sempre fome de bens terrenos como um mendigo, porque não pode jamais saciar seu apetite; o pobre voluntário, porém, que nada deseja, despreza os bens da terra e é o senhor de tudo.

O quarto meio é amarmos a Deus sem restrição. Uma alma que está inteiramente compenetrada do amor divino, sente-se levada por si mesma, ainda que não seja com o auxílio da graça, a despojar-se de todas as coisas terrenas que a possam impedir de pertencer totalmente a Deus.

Um homem rico renunciou a todos os seus bens por amor de Jesus Cristo. Perguntado por que se fizera tão pobre, puxou pelo livro dos Evangelhos e disse: Olhe, foi este quem me privou de tudo. O Espírito Santo (Ct 8, 7) nos ensina que todos os tesouros do mundo nada são aos olhos daquele que ama a Deus. Se uma alma consagra só a Deus todo o seu amor, com isso mesmo despreza as riquezas, prazeres, honras, reinos e todas as outras coisas deste mundo. Uma tal ama só a Deus e diz, incessantemente:

Ó meu Deus, só a Vós eu quero, e nada mais!

III. Do Desapego das Honras do Mundo

Quem ama a Deus não procura a estima e o amor dos homens: sua única aspiração é agradar a Deus, único objeto de seu amor. Santo Hilário diz:

“Todas as honras do mundo são coisas do demônio” (In Mt c. 3, n. 5)

E, de fato, trabalha o demônio em interesse do inferno, inspirando a uma alma o desejo de ser estimada, pois, perdendo ela a humildade, corre grande perigo de cair no abismo. Por isso dizia, com toda a razão, um grande servo de Deus que, ao ouvirmos que um Salomão, um Tertuliano, um Hósio, esses cedros do Líbano, caíram, deveríamos ver nisso uma prova de que eles não se deram sem reserva a Deus, mas alimentaram orgulho em seus corações e que, por isso, se desviaram do caminho reto.

Tremamos se sentirmos em nos o desejo de brilhar diante dos outros, de ser honrados por eles, e procuremos não nos alegrar com as honras do mundo, pois isso poderá ter por consequência a nossa condenação eterna.

Evitemos mui particularmente a susceptibilidade nos postos de honra, assim chamados. Santa Teresa diz que quem, nesse ponto, não renuncia a si mesmo, nunca terá uma verdadeira vida interior. Muitos dos que professam a perfeição são adoradores de sua própria honra: tem uma certa aparência de virtude, mas, ao mesmo tempo, desejam ser louvados por tudo o que praticam. Se ninguém os louva, louvam-se a si mesmos, e querem, numa palavra, parecer melhores do que os outros, e quando ouvem que se ataca a sua honra, perdem toda a compostura, deixam a comunhão e lodos os exercícios de piedade e não descansam até verem reparada a suposta desonra que lhes foi infligida. Assim, porém, não se comportam os que amam verdadeiramente a Deus: longe de se louvarem e se deixarem louvar, afligem-se com a consideração com que são tratados e alegram-se quando são desprezados pelos homens.

Mui verdadeiras são as palavras de São Francisco de Assis:

“Sou unicamente aquilo que sou diante de Deus”

Que nos adianta sermos apreciados pelos homens e desprezados por Deus? Que importa sermos desprezados pelo mundo, se somos agradáveis a Deus? Quem nos louva, diz Santo Agostinho, não nos livra dos castigos que merecemos por nossos pecados, e quem nos vitupera não pode nos roubar os merecimentos de nossas boas obras.

“Ó meu Deus, dizia Santa Teresa (Vid. da perf., c. 8), que importa se formos amados ou vituperados pelas criaturas, se formos grandes e irrepreensíveis a vossos olhos”

Os santos só desejavam viver desconhecidos e desprezados.

“Que injustiça nos fazem aqueles que têm uma má opinião de nós? pergunta São Francisco de Sales (Esp. S. Franc., p. 12, c. 3). Não devemos formar um tal conceito de nós mesmos? Deveríamos talvez ser tidos em conta de justos, enquanto nós mesmos não ignoramos que somos maus?”

Uma vida escondida oferece grande segurança aos que querem ninar sinceramente a Jesus Cristo. O próprio divino Mestre nos ensinou por seu exemplo como devemos renunciar à estimação dos homens, vivendo trinta anos na oficina de um carpinteiro. O desejo de nos distinguirmos, de sermos tratados com toda a consideração, de sermos louvados por nosso comportamento é, segundo São Vicente de Paulo, um grande mal, que nos faz esquecer o Senhor, que macula nossas ações mais santas e impede, mais que tudo, o nosso progresso na vida espiritual.

Para nos fazermos agradáveis aos olhos de Deus, devemos expelir de nosso coração o desejo de fazer figura aos olhos dos homens, de agradar-lhes e, particularmente, de imperar sobre os outros.

Ouçamos Pedro de Blois descrever, em uma de suas cartas, os perniciosos efeitos da ambição e o mal que ela causa às almas:

“A ambição imita a caridade, mas em sentido oposto. A caridade suporta tudo, mas por causa dos bens eternos; a ambição também supor-la tudo, mas só por causa das honras miseráveis deste mundo. A caridade é toda mansidão, especialmente para com os pobres e desprezados; a ambição é também cheia de mansidão, mas só para com os grandes, que podem, satisfazer as suas aspirações. A caridade sofre tudo para agradar a Deus; a ambição também, mas só para obter este ou aquele cargo ou posto de honra”

Oh! Quantos espinhos, quantos trabalhos, quantas adversidades, quantos vitupérios e ultrajes não tem de suportar um mundano para adquirir um cargo honroso, ardentemente desejado! A caridade crê e espera tudo o que se refere à glória eterna; a ambição também tudo crê e espera, mas que se relaciona com as honras vãs deste mundo.

Que ganha, porem, a alma infeliz que consegue as honras apetecidas? Nada mais que um pouco de fumaça que, longe de o elevar aos olhos dos outros, o rebaixa e desprestigia. A honra desaparece em consequência do desejo que se tinha de a possuir, diz Santa Teresa. Quanto maior é a honra adquirida, tanto maior a vergonha de a ela ter aspirado, pois, quanto mais se esforça alguém por consegui-la, tanto mais indigno dela se mostra. Santa Joana de Chantal dizia:

“Quanto mais alguém se tem em conta de digno para um cargo, tanto menos ele o é, pois falta-lhe a humildade, que é a melhor recomendação ou habilitação para o seu desempenho”

E queira Deus que a honra assim adquirida não seja a causa de nossa condenação eterna. O Pe. Carafa, visitando uma vez a um amigo seu, que se achava doente, e que tinha sido convidado para um emprego muito vantajoso, mas também mui perigoso, foi solicitado pelo enfermo a pedir a Deus a sua cura. Carafa respondeu:

“Não, amigo, não quero trair o amor que te dedico. Agora, que te achas em estado de graça, Deus te chama ao outro mundo, porque deseja a tua salvação; restituindo-te, porém, a saúde, não sei se te salvarás nesse emprego”

Ouvindo isto, aceitou o amigo, resignado, a morte das mãos de Deus e morreu tranquilo e consolado.

IV. Do Desapego dos Homens

O desapego de nossos semelhantes não consiste em não amarmos a ninguém no mundo, mas em ordenar ou regular nossas afeições segundo a vontade de Deus, tornando-as agradáveis a Ele. A natureza e a religião nos impõem o dever de amarmos de coração nossos pais, benfeitores e amigos; este amor, porém, torna-se desordenado se por sua causa ofendermos a Deus ou é um impedimento a tendência à perfeição.

Muitos cristãos fariam grandes progressos no caminho da perfeição se se desprendessem de todo o apego natural; mas, porque fomentam em seu coração uma outra pequena afeição desordenada, a que não querem renunciar, permanecem sempre em seu triste estado, sem nunca dar um só passo no caminho da virtude. São João da Cruz diz:

“Uma alma que prende seu coração a qualquer criatura que seja, nunca chegará à perfeita união com Deus, mesmo possuindo muitas virtudes”

Pouco importa que o pássaro esteja preso por um fio grosso ou fino, pois, por mais fraco que este seja, enquanto não for rompido, será suficiente para reter o pássaro preso e impedir-lhe o voo. É sumamente triste ver tantas almas ricas em exercícios de piedades, virtudes e graças, nunca chegarem à perfeita união com Deus, porque não têm coragem de renunciar a uma pequena inclinação, bastando-lhes apenas levantar um voo magnânimo para romperem o fio que as prende à terra e impede sua felicidade completa.

1) Para chegarmos a uma perfeita união com Deus, devemos nos desprender por inteiro das criaturas. Devemos renunciar, antes de tudo, ao apego desordenado a nossos parentes. Jesus declarou que quem se apegar demasiadamente a seus parentes não pode ser seu discípulo (Lc 14, 26). E por quê? Porque, muitas vezes, os maiores inimigos de nossa alma são justamente os nossos parentes:

“Os inimigos tio homem são os seus domésticos” (Mt 10, 36)

São Carlos Borromeu dizia que todas as vezes que voltava de uma visita a seus parentes sentia uma diminuição de fervor para o bem. Perguntando-se ao Pe. Antônio Mendoza por que não punha os pés em casa de seus parentes, respondeu:

“Porque sei que os religiosos em nenhuma parte perdem mais facilmente o espírito de piedade que justamente na casa de seus parentes”

Quem renunciou, em verdade, ao apego desordenado a seus parentes não se contristará em demasia quando um deles, ainda que muito estimado, lhe for roubado pela morte. Muitos mostram-se inconsoláveis quando perdem algum parente ou amigo: fecham-se em seus aposentos para chorar, entregam-se a uma tristeza e impaciência tão excessivas, que ninguém mais ousa aproximar-se deles. Eu desejaria, porém, saber a quem se pretende agradar com tantas lágrimas e tão amarga tristeza! A Deus? Certamente, não, pois Nosso Senhor quer que nos conformemos com Sua santa vontade. À alma do falecido? Também não, pois, se ela se achar no inferno, detesta-te e as tuas lágrimas, e se estiver salva e já no céu, quer que agradeças com ela a Deus; se ainda no purgatório, deseja ardentemente que a auxilies com tuas orações, que te conformes com a vontade divina e trabalhes na tua própria salvação, para poderes um dia te unir a ela, no céu. Para que, pois, chorar tanto? O Pe. José Caracciolo, teatino, achando-se uma vez entre parentes que choravam sem parar morte do irmão, disse-lhes:

“Reservemos nossas lágrimas para um objeto melhor: derramemo-las por amor de Jesus, que é nosso Pai, nosso Irmão e nosso Esposo, que por nosso amor sofreu a morte”

Nessas circunstâncias devemos imitar o piedoso Jó que, inteirado da morte, de seus filhos, disse, cheio de resignação:

“O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; como agradou ao Senhor, assim se deu; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1, 21)

No ano de 1624, foi condenado à morte o filho de uma piedosa japonesa. Ao despedir-se de sua mãe, disse-lhe o rapaz o seguinte:

“Minha mãe, é chegada, enfim, a hora por que tanto suspirei e tanto pedi a Deus. Morrerei dentro em breve. Perdoa-me todos os desgostos que te causei e dá-me a tua bênção materna”

Ajoelhou-se então para recebê-la. A mãe, abraçando-o ternamente, disse-lhe:

“O Senhor te abençoe, querido filho, e te conceda a graça de uma santa morte. Dói-me o perder-te, mas consola-me o pensamento de que vais morrer por Jesus Cristo. Que Ele seja sempre louvado por está graça que te concede”

Em seguida, despediu-se o jovem igualmente de sua mulher e dirigiu-se ao lugar do suplício para receber o golpe mortal. Certamente um belo exemplo de desapego dos parentes.

2) O desprendimento exige também que suportemos com resignação na vontade de Deus a perda daqueles que nos são úteis, quer na vida material, quer na espiritual. Neste ponto, notam-se muitas vezes grandes faltas nas almas devotas, por não se entregarem às disposições da vontade de Deus, como deviam, quanto à perda de seus confessores. Não é o confessor que nos torna santos, mas Deus. Se Ele no-lo dá, quer que nos utilizemos de seu ministério no que se refere aos negócios de nossa consciência; se dele nos priva, quer que não fiquemos descontentes, mas aumentemos a nossa confiança em Sua bondade e Lhe digamos:

“Senhor, Vós me destes esse auxílio e agora dele me privais: seja sempre feita a Vossa vontade. Vinde agora pessoalmente em meu socorro e ensinai-me o que devo fazer para Vos servir fielmente”

Jesus Cristo é nossa verdadeira consolação, nosso verdadeiro guia, nosso verdadeiro amor, o único amor de nossa alma; Ele não quer que procuremos consolação fora dEle. É verdade que Nosso Senhor não quer que deixemos nosso diretor espiritual enquanto podemos tê-lo à disposição; mas, se Ele mesmo no-lo tira, compete-Lhe dar-nos um outro ou substituí-lo de qualquer modo. Quem, pois, se inquieta por ser-lhe tirado seu pai espiritual, não pratica uma virtude, mas comete uma falta e mesmo uma grande falta, porque tal inquietação provém de certo apego natural ou, no menos, de pouca confiança em Deus.

Procura, pois, conservar teu coração livre de qualquer apego a teu diretor espiritual e conserva-te sempre pronto a renunciar a ele se for vontade de Deus ver-te privado de seu auxílio. Se teu confessor te deixar ou o Senhor o chamar a outra vida, repete novamente as palavras de Jó; e segue as prescrições e conselhos dados por ele, te encontrares um outro diretor para a tua alma.

V. Do Desapego de Si Mesmo

O desprendimento mais importante e necessário é o de si mesmo, isto é, da própria vontade. Quem sabe vencer-se a si mesmo, facilmente vencerá a todas as outras dificuldades. A vitória sobre si mesmo era o que São Francisco Xavier recomendava mui particularmente a todos os que aspiram à perfeição. E o divino Salvador a impõe como dever a todos os que desejam segui-lo:

“Se alguém quiser seguir-me, abnegue-se a si mesmo” (Mt 16, 24)

O compêndio de tudo o que devemos fazer para nos salvar é esta palavra única: Abnegação própria.

Nós devemos amar a Deus da maneira que lhe agrada e não como nos apraz. Deus quer que nossa alma esteja vazia de tudo, para que a possa encher com seu amor e uni-la a si. Santa Teresa diz que a oração da união não é outra coisa que a indiferença a mais completa a respeito das coisas do mundo, junto com o desejo de possuir unicamente a Deus. É certo que Deus tanto mais intimamente aos unirá consigo e nos encherá com Sua presença, quanto mais completamente renunciarmos às inclinações naturais por Seu amor. Muitos desejam, sim, chegar à união perfeita com Deus, mas não querem suportar as adversidades que Nosso Senhor lhes envia; não querem sofrer nem pobreza, nem injúrias. Ora, enquanto não se entregarem sem restrição à vontade de Deus, não chegarão à união perfeita.

“Para se chegar à perfeita conjunção com Deus, diz Santa Catarina de Gênova, deve-se passar por tribulações. Estas são o meio de que Deus se serve para nos purificar de todas as más inclinações. As injúrias, o desprezo, as doenças, a pobreza, as tentações, as contrariedades nos são enviadas só para que tenhamos ocasiões bastantes de combater e subjugar as nossas paixões, de tal forma que desapareçam por inteiro. Não basta as adversidades nos parecerem menos desagradáveis, é preciso que o amor divino no-las torne doces e desejáveis, para chegarmos à perfeita união com Deus”

Ajunto ainda o que nos recomenda São João da Cruz, para atingirmos essa conjunção íntima e completa com Deus:

“Devemos mortificar cuidadosamente os próprios sentidos e desejos. Quanto aos sentidos, devemos renunciar, por amor de Jesus Cristo, a toda a satisfação que não tem por fim a glória de Deus. Se, por exemplo, sentimos o desejo de ouvir ou ver coisas que não são próprias para nos aproximar de Deus, devemos renunciar a elas incontinente. Quanto aos desejos, devemos procurar sempre o que é mais penoso, mais desagradável, mais pobre, sem aspirar a outra coisa que a padecer e ser desprezado”

Numa palavra: Quem ama verdadeiramente a Jesus, expele de seu coração todo o apego aos bens terrenos e procura, desprender-se de tudo para unir-se mais perfeitamente com seu Salvador. Todos os seus desejos só têm a Jesus por objeto, sempre pensa nEle, sempre suspira por Ele, em todo o lugar e ocasião só a Jesus deseja agradar. Para se chegar, porém, a esse ponto, deve-se tratar de expulsar do coração toda a afeição que não tende para Deus. Que deve mais fazer uma alma para se entregar incondicionalmente a Deus? Primeiro, evitar tudo o que possa desagradar a Nosso Senhor e fazer tudo o que Lhe é agradável. Segundo, aceitar, em santo abandono, ludo o que Lhe enviar Sua santa mão, por mais duro e incômodo que seja. Terceiro, preferir, em todas as coisas, a vontade de Deus à própria. Dessa forma sacrifica-se ela por inteiro e sem reserva a seu Deus e Senhor.

VI. A Pobreza do Redentor

Para desprender da terra os nossos corações e levá-los a Deus, o divino Redentor nos faz compreender o nada dos bens do mundo. Ainda mais, quer mostrar na pobreza um incomparável tesouro. Ora, os exemplos são mais poderosos do que as palavras. Por isso, antes de nela pregar, Ele pratica a pobreza mais rigorosa: desde o Seu nascimento até à morte será pobre e o mais pobre dos pobres.

Encontramos às vezes infortúnios que nos comovem profundamente: nada mais doloroso do que o espetáculo de pessoas que, por cruéis reveses, passam da opulência à miséria. Mas que são as mais consideráveis fortunas da terra, em comparação das riquezas infinitas que Jesus abandona por nosso amor? E Ele faz-se pobre voluntariamente. Os homens podem, sim, renunciar aos bens do mundo para abraçar a pobreza; mas muitas vezes são pobres por necessidade; não depende de ninguém nascer na abundância ou no desnudamento e, finalmente, ninguém se pode subtrair ao despojamento da morte. Mas Jesus Cristo podia nascer nos esplendores e a morte não o podia despojar sem a Sua vontade. Foi, pois, com toda a liberdade que revestiu a libré da pobreza.

E em toda a Sua vida prega-nos essa virtude por Seus mais eloquentes exemplos. Num estábulo fez a Sua entrada no mundo. Logo depois vem a pobreza do exílio no Egito; em Nazaré vive penosamente do Seu trabalho. Mais pobre ainda em Sua vida pública, em que não tem os recursos do Seu trabalho, nem a Sua modesta morada, é obrigado a viver de esmolas sem ter onde repousar a Sua fronte. Em Sua morte, enfim, é despojado até das Suas vestes, que os soldados distribuíram entre si; foi preciso obter de esmola a mortalha e o túmulo. Ele é pobre em tudo: em Sua família, em Seu alimento, em Sua veste, em Sua habitação.

A Sua pobreza é sempre dolorosa. Quantas cruéis privações e sofrimentos desde o berço, em que repousa o divino infante sobre a palha, mal defendido do frio pelos míseros paninhos, até ao Calvário, onde a cruz é o Seu derradeiro leito de repouso! Conhecerá também as dores da fome, e na Sua sede só terá vinagre e fel.

Pobreza humilhada, porque, diz são Boaventura, Ele quis abraçar não só a pobreza, mas também o opróbrio da pobreza. E o santo doutor observa que a pobreza voluntariamente abraçada por amor de Deus, não só não provoca desprezo, mas muitas vezes concilia a estima dos homens, mesmo dos maus, que sabem que ela foi escolhida livremente e que nela veem uma virtude. Mas, acrescenta, o mesmo são se dá com a pobreza que alguém sofre por necessidade; esta produz muitas vezes opróbrio e desprezo; os que a receberam por partilha são frequentemente calcados aos pés de todos. Ninguém liga à sabedoria deles, seja ela qual for; se são nobres, tomam-se objeto de escárnio e na reputação humana não existe neles sabedoria nem probidade, nem pobreza, nem virtude. Tal era a pobreza do Salvador; os homens ignoravam que ela fosse voluntária e por isso, longe de a honrarem como a de São João Batista, desprezavam-na. Embora as palavras do Salvador manifestassem uma sabedoria infinita, os orgulhosos fariseus que o ouviam perguntavam com desdém:

“Donde tem ele essa sabedoria? Não é ele o filho do carpinteiro José?” (Mt 13, 55)

A pobreza foi-Lhe fonte de inúmeros desprezos e afrontas.

Não contente, enfim, de sofrer a pobreza em Sua pessoa, sofre também a pobreza de todos os membros do Seu corpo místico: carrega-se, diz o padre Nouet, da pobreza de todos os homens, e a sente em Seu coração por compaixão, a fim de atraí-los a Seu amor e de lhes dar força de suportá-la. Há muitos que padecem a falta de várias coisas, nota admiravelmente Salviano, mas a Jesus falta tudo. Dos que O servem nenhum é banido, sem que Ele o siga em seu auxílio, nenhum padece fome ou sede ou nudez, sem que Ele a ressinta vivamente. Sofre fome com os famintos, altera-Se com os que sofrem sede, e, por conseguinte, se considerardes o sentimento do seu coração, Ele é o mais pobre de todos, porque cada pobre sofre só por si, e é pobre só em sua pessoa; mas Jesus Cristo sofre por todos e se faz pobre na pessoa de todos.

Jesus Cristo reduziu-Se a essa pobreza porque nos amava. Quando compreenderemos e Lhe pagaremos por nossa vez?

VII. A Prática da Pobreza e do Desapego

Na oração a alma se comprazerá em contemplar a pobreza extrema e dolorosa de Jesus Cristo, o Seu desapego absoluto de tudo quanto não se referisse à glória de seu Pai e a salvação das almas, a Sua predileção pelos pobres, etc. Escutará com docilidade os Seus ensinamentos sobre os perigos que faz correr a riqueza; sobre a necessidade de desapegar o coração de tudo quanto é terreno, se quiser chegar a Deus; sobre a obrigação particular que tem o cristão de praticar a pobreza; sobre as recompensas magníficas e os triunfos reservados à pobreza, etc. Penetrada dos pensamentos de Jesus Cristo e sob o impulso do seu amor, ela se renovará por atos enérgicos e generosos no espírito de pobreza.

Invocação — Ó meu Deus, ó Jesus, mandais que Vos ame e por amor de Vós pratique a pobreza perfeita, sem a qual não poderia amar-Vos nem ser Vosso apóstolo como devo. Quero-o, meu Deus, mas ajudai-me com Vossa graça, sem a qual sou escravo das criaturas.

Ato de Amor de Deus — Amo-Vos e quero amar-Vos de todo o meu coração e sobre todas as coisas, porque é meu Deus, infinitamente bom e amável.

Pobreza. E porque Vos amo e para amar-Vos mais perfeitamente, renuncio a tudo que não é Vós, e quero praticar a pobreza perfeita.

Voto. Renovo o meu voto de pobreza e não quero dispor de coisa alguma sem as necessárias permissões.

Virtude. Mais ainda quero praticar a virtude de pobreza e em todo o seu rigor. Não quero nada de supérfluo para meu uso; aceito, se Vos aprouver, a privação do necessário, feliz por me ver despojado conVosco e por Vós; aceito os sofrimentos, as humilhações, os desprezes que me possam vir da pobreza, porque quero amar-Vos sempre mais. Ó Maria obtende-me a graça de amar a Jesus e de imitar a sua pobreza.

Durante o dia, unida a Jesus por recolhimento contínuo, a alma de boa vontade renovará de tempo em tempo, porém brevemente, esses atos de desapego e de amor à pobreza perfeita; e nos exercícios de piedade pedirá frequentemente o espírito de pobreza.

Esses atos, porém, pouco valeria, se se não traduzissem na prática, e se nos pormenores da vida alguém pusesse a sua conduta em oposição com o espírito de pobreza.

Primeiro é necessário fazer um sério exame, no qual convém proceder com ordem.

Em primeiro lugar, não lesamos em nada o voto de pobreza? Eis a primeira questão que devemos resolver e regular.

Depois, se salvamos o voto, não lesamos a virtude por superfluidades? Precisamos fazê-las desaparecer. Retendo as coisas realmente uteis ou necessárias, não procuramos sempre o mais novo, o mais brilhante, o mais cômodo, o mais agradável? Não hesitamos em usar veste gasta ou remendada? Não somos apegados aos objetos que guardamos com licença? Não tememos ser privados deles? Um só apego impede a santificação; em caso de dúvida é melhor desapegar-nos deles. Tirando uma atadura, verifica-se que estava pego às carnes; assim, sacrificando-se um objeto, observa-se que o coração estava- lhe apegado. Não somos demasiadamente apegados aos pais, à pátria, à comunidade, ao emprego? Muitas vezes a lembrança das pessoas ou das coisas às quais o coração tem afeição desregrada, vem-nos à mente na oração ou nos exercícios de piedade. Enquanto não se fizer o sacrifício exigido por Deus, não poderá a alma unir-se a ele por um verdadeiro recolhimento.

A alma perguntar-se-á, em seguida, quais as suas disposições em relação às humilhações e às privações. Não se envergonha da libré da pobreza? Sofre as privações, murmurando? Aceita-as com submissão? Abraça-as com amor? Procurará aceitá-las generosamente e com alegria por amor de Jesus: esforçar-se-á mesmo — mas com discrição e depois de se aconselhar com quem de direito por se impor voluntárias. Para melhor dirigir a sua escolha, investigará o que nela é mais contrário à pobreza. Se for impelida ao orgulho, procurará de preferência o que há de humilhante na pobreza. Para combater a sensualidade, inclinar-se-á para o lado penoso e para as privações mais dolorosas. Possuem-se tendência para acumular ou desejar abundância, impor-se-á grande desnudamento, etc.

Importa ainda fazer exame quanto à vida comum. Procuramos favorecê-la o mais possível? Não a lesamos por exceções não suficientemente justificadas? Reprimamos primeiro o que achamos em nós alheio à pobreza; esforcemo-nos depois por atos afetivos e efetivos por avançar no amor do desnudamento, das privações e dos desprezos.

VIII. Orações para alcançar a Virtude do Mês

Eis, por fim, algumas orações de Santo Afonso para crescermos na Pobreza de Espírito e no Desapego.

Oração para alcançar o Desapego das Afeições Terrenas

Ó meu amável Jesus, como não Sois amado de todos os homens? Vós Sois um Deus digno de amor infinito; mas, meu pobre Senhor, permiti-me assim chamar-Vos, — amabilíssimo como Sois, e depois de haverdes sofrido tanto para serdes amado dos homens, quantos há que Vos amam? Vejo-os todos aplicados a amar os seus parentes, amigos, riquezas, honras, prazeres e até os animais; mas a Vós, Amabilidade infinita, onde estão os que Vos amam? Ah! Muito poucos são eles! Quero, porém, ser deste pequeno número, ainda que dos pecadores sou o mais miserável. Sim, eu também Vos fiz injúria quando Vos deixei para me aderir a vis criaturas; mas hoje Vos amo e estimo mais do que todos os bens; não quero mais amar senão a Vós só.

Oração para alcançar o Desapego dos Bens da Terra

Meu Jesus, no passado, tive o coração preso aos bens da terra, mas doravante sereis o meu único tesouro. Ó Deus da minha alma, Sois um bem infinitamente superior a todos os bens, mereceis amor infinito; eu Vos amo e estimo sobre todas as coisas e mais do que a mim mesmo; Sois Vós o único objeto de todos os meus afetos. Nada desejo deste mundo; mas, se tivesse de formar algum desejo, este seria o de possuir todos os tesouros e reinos da terra, para renunciá-los e privar-me deles inteiramente pelo Vosso amor. Vinde, ó meu amor, vinde consumir em mim todos os afetos que não são para Vós.

Oração para alcançar o Desapego da Estima do Mundo

Enchei, meu Jesus, o meu coração com a nobre ambição de Vos agradar e inspirai-me profundo esquecimento de todas as criaturas e de mim mesmo. De que me serve ser amado e estimado de todo o mundo, se o não sou de Vós, único amor da minha alma? Ó meu dulcíssimo Jesus, à terra viestes para ganhar os nossos corações; ah! Se não sei Vos dar o meu, tornai-o Vós mesmo, inflamai-o no Vosso amor, e não consintais me separe mais de Vós; o meu único desejo é Vos amar e dar gosto. Esta é a minha ambição. Infinitamente mereceis o meu amor; e como deixar de Vos amar, se tantas finezas Vos devo? Eis-me aqui, quero ser todo Vosso e sofrer pelo Vosso amor tudo o que Vos aprouver, ó Vós que, pelo meu amor, morrestes de dor numa cruz!

Oração para alcançar o Desapego dos Prazeres

Ó meu Jesus, o Vosso amor para comigo Vos tornou tão ávido de padecimentos, que quisestes sofrer antes ainda do tempo da Vossa Paixão: minha dor, dizíeis por boca do Vosso profeta, a minha dor está sempre diante dos meus olhos (SI 37, 18). E eu sou tão ávido de gozos terrenos! Quantos desgostos não Vos dei para contentar ao meu corpo! Senhor, pelos merecimentos dos Vossos sofrimentos, arrancai do meu coração o apego aos prazeres da terra. Pelo Vosso amor, tomo a resolução de me abster desta satisfação… (Designai-a).

Oração a Maria

Ah! Minha Mãe Santíssima, assaz razão tínheis para dizer que Deus era a Vossa alegria, porque na terra nunca ambicionastes nem amastes coisa alguma fora dele: O meu espírito exultou em Deus o meu Salvador (Lc I, 17). Ó Maria, desatai-me dos laços do mundo: Atraí-me no vosso seguimento (Ct 1, 3); e dai que, a vosso exemplo, ame unicamente Aquele que só merece ser amado.

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(OMER C.SS.R., Padre Saint. Escola da Perfeição Cristã para Seculares e Religiosos: Obra compilada dos escritos de Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja. Editora Vozes, 1955, p. 175-185)

(AZEVEDO C.SS.R., Padre Oscar das Chagas. As Doze Virtudes para cada Mês do Ano. Editora Vozes, p. 75-102)

(OMER C.SS.R., Padre Saint. As Mais Belas Orações de Santo Afonso: Edição atualizada e acrescida de novos exercícios e orações. Editora Vozes, 1961, p. 301-303)