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Do grande desejo que teve Jesus de padecer e morrer por nosso amor

Capítulo IV

1. Muito terna, amorosa e afetuosa foi aquele declaração que fez nosso Redentor quando veio à terra, afirmando que ele tinha vindo para acender nas almas o fogo do amor divino e que não tinha outro desejo senão ver acesa nos corações de todos os homens essa santa chama.

“Eu vim trazer fogo à terra e que desejo senão que ele se acenda?” (Lc 12,49).

E ajunta imediatamente que desejava ser batizado no batismo de seu próprio sangue, não para lavar seus próprios pecados (pois era impecável), mas os nossos, pelos quais ele vinha satisfazer por seus tormentos. A paixão de Cristo chama-se batismo, porque fomos purificados por seu sangue, diz São Boaventura. Em seguida nosso amantíssimo Jesus, para nos fazer compreender o ardor desse seu desejo de morrer por nós, acrescenta, com grande expressão de amor, que ele sentia uma imensa aflição por ter de diferir a execução de sua paixão, tão grande era o seu desejo de padecer por nosso amor. Eis suas amorosas palavras:

“Tenho de ser batizado em um batismo e quão grande é minha angústia enquanto não o vejo cumprido” (Lc 12,50).

2. Ó Deus, abrasado em amor pelos homens, que podíeis mais dizer e fazer para obrigar-me a vos amar? E que bem vos podia trazer meu amor, que, para obtê-lo, quisestes morrer e desejastes tão ardentemente a morte? Se um meu escravo tivesse apenas desejado morrer por mim, seguramente teria conquistado o meu amor, e poderei viver sem amar com todo o meu coração a vós, meu Rei e meu Deus, que por mim morrestes e com tão grande desejo de obter o meu amor!

3. Sabendo Jesus que chegara a sua hora de se ir deste mundo para seu Pai, tendo amado os seus, amou-os até ao fim (Jo 13,1). Diz São João que Jesus chamou sua hora a hora de sua Paixão, porque, como escreve um piedoso comentador, foi esse o momento da vida mais ardentemente desejado por nosso Redentor; com padecer e morrer pelo homem, ele queria fazê-lo compreender o amor imenso que lhe dedicava: É aquela hora do amante em que padece pelo amigo (Barrad t. 4. 1. 2., c. 5). É cara ao que ama a hora em que sofre pela pessoa amada, já que o padecer por outrem é a coisa mais própria para manifestar-lhe o nosso amor e ganhar-lhe o seu. Ah! meu caro Jesus, para me patenteardes o vosso grande amor, não quisestes confiar a outrem a obra de minha redenção. Tão caro vos era o meu amor, que quisestes padecer tão grandes penas para conquistá-lo. E que mais poderíeis fazer, se tivésseis de granjear o amor de vosso Eterno Pai? Que mais poderia padecer um escravo para obter o amor de seu senhor, do que aquilo que suportastes para serdes amado por mim, escravo vil e ingrato?

4. Vejamos nosso amado Jesus, já próximo a ser sacrificado sobre o altar da cruz por nossa salvação, naquela noite bem-aventurada que precedeu a sua paixão. Ouçamos o que diz a seus discípulos na última ceia que toma com eles.

“Ardentemente desejei comer esta páscoa convosco” (Lc 22,15).

São Lourenço Justiniano, considerando estas palavras, assevera que foram todas expressões de amor. Como se nosso amante Redentor tivesse dito: ó homens, sabei que esta noite, na qual se dará início à minha paixão, é o tempo pelo qual mais suspirei durante toda a minha vida, porque agora com meus sofrimentos e com minha acerba morte vos farei compreender quanto eu vos amo e assim vos obrigarei a amar-me da maneira mais eficaz que me é possível. Diz um autor que na paixão de Jesus a onipotência divina se uniu com o amor; o amor pretendeu amar o homem com toda a extensão da onipotência e a onipotência procurou satisfazer o amor em toda a extensão de seu desejo. Ó sumo Deus, vós me haveis dado tudo, dando-vos a mim, e como posso deixar de amar-vos com todo o meu ser? Eu creio, sim, eu o creio, que vós morrestes por mim e como posso amar-vos tão pouco, esquecendo-me tão a miúdo de vós e do quanto padecestes por mim! E por que, Senhor, não me sinto todo abrasado no vosso amor, ao pensar na vossa paixão e não me rendo todo a vós, como tantas almas santas, que, considerando vossos sofrimentos, tornaram-se presas felizes de vosso amor e deram-se por inteiro a vós?

5. Dizia a esposa dos Cânticos que, cada vez que seu esposo a introduzia na sagrada cela de sua paixão, se via de tal modo assaltada pelo amor divino, que, desfalecida de amor, era obrigada a buscar alívio ao seu coração ferido:

“Introduziu-me em sua adega e ordenou em mim a caridade. Confortai-me com flores, alentai-me com pomos, porque desfaleço de amor” (Ct 2,4).

E como é possível que uma alma, pondo-se a considerar a paixão de Jesus Cristo, as dores e a agonia que tanto afligiram o corpo e a alma de seu amado Senhor, não se sinta ferida como por outras tantas setas de amor e docemente forçada a amar a quem tanto o amou? Ó Cordeiro sem mancha, como me pareceis belo e amável quando vos contemplo nessa cruz assim dilacerado, ensangüentado e desfigurado! Sim, porque todas essas chamas que em vós eu vejo, são provas e sinais do grande amor que me tendes. Ah, se todos os homens vos contemplassem nesse estado, em que fostes dado um dia em espetáculo a Jerusalém, quem pode- ria deixar de sentir-se cativo de vosso amor? Meu amado Senhor, aceitai o meu amor, pois eu vos consagro todos os meus sentido e toda a minha vontade. E como vos poderei negar alguma coisa quando vós não me negastes o vosso sangue, a vossa vida e todo o vosso ser?

6. Tão grande foi o desejo de padecer por nós, que na noite anterior à sua morte não somente seguiu espontaneamente para o horto, onde sabia que os judeus o haviam de prender, mas também disse a seus discípulos, sabendo que Judas, o traidor, já estava próximo com a escolta dos soldados: Levantai-vos, vamos; já está próximo quem me vai trair (Mc 14,42). Quis ele mesmo ir ao seu encontro, como se viessem para conduzi-lo não já ao suplício da morte, mas à coroa de um grande reino. Ó meu doce Salvador, fostes ao encontro da morte com tão ardente desejo de morrer, pelo excessivo anseio que tínheis de ser amado por mim. E eu não desejarei morrer por vós, meu Deus, para testemunhar-vos o amor que vos tenho? Sim, meu Jesus, porto por mim, eu também desejo morrer por vós. Eu vos consagro o sangue, a vida, tudo o que tenho! Eis-me pronto a morrer por vós como e quando vos aprouver. Aceitai este mesquinho sacrifício que vos faz um miserável pecador, que antigamente vos ofendeu, mas agora mais vos ama do que a si mesmo.

7. S. Lourenço Justiniano considera aquele Sítio que Jesus proferiu na cruz ao morrer e diz que essa sede não foi uma sede que provinha da necessidade de água, mas que nascia do fogo do amor que Jesus sentia por nós: Essa sede provinha do ardor da caridade. Com essa palavra nosso Redentor quer manifestar-nos, mais que a sede do corpo, o desejo que tinha de sofrer por nós, demonstrando- nos o seu amor e juntamente o desejo que sentia de ser amado por nós depois de tantos sofrimentos suportados por nós. E Santo Tomás afirma igualmente: Por este Sítio mostra seu ardente desejo de salvação do gênero humano (In Jo 19,1.5). Ah! Deus de amor, é possível que fique sem correspondência um tal excesso de caridade? Costuma-se afirmar que amor com amor se paga, mas com que amor se poderá pagar o vosso amor? Seria necessário que um outro Deus morresse por nós, para compensar o amor que nos testemunhastes, morrendo por nós. Como, pois, Senhor meu, como pudestes afirmar que vossas delícias consistiram em estar com os homens, se deles não tendes recebido senão injúrias e maus tratos? O amor, pois, vos transforma em delícias as dores e os vitupérios que sofrestes por nós.

8. Ó Redentor amabilíssimo, não quero resistir por mais tendo às vossas finezas: eu vos consagro todo o meu amor. Vós sereis entre todas as coisas e haveis de ser sempre o único amor de minha alma. Fizestes-vos homem para ter uma vida que dar por mim e eu desejaria ter mil vidas para sacrificá-las todas por vós. Eu vos amo, bondade infinita, e quero amar-vos com todas as minhas forças; quero fazer quanto em mim estiver para vos agradar. Vós, inocente, tanto padecestes por mim e eu, pecador, que mereci o inferno, quero sofrer por vós o que vos aprouver. Meu Jesus, auxiliai este meu desejo que vós mesmo me inspirais, pelos vossos merecimentos. Ó Deus infinito, eu creio em vós, em vós eu espero, a vós eu amo. Maria, minha Mãe, intercedei por mim. Amém.

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