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Do amor que Jesus Cristo nos demonstrou na sua paixão

Capítulo VIII

Assim amou Deus o mundo.

1. São Francisco de Sales chama o monte Calvário o monte dos amantes e diz que o amor que nasce da paixão é fraco, dando com isso a entender que a paixão de Jesus Cristo é o incentivo mais forte para nos mover e inflamar a amar o nosso Salvador. Para que possamos compreender em parte (pois totalmente é impossível) o grande amor que Deus nos demonstrou na paixão de Jesus Cristo, basta lançar um olhar ao que dizem as Sagradas Escrituras. Escolherei só alguns textos mais importantes que falam deste amor. E que ninguém ache fastidioso repetir eu esses textos que falam da paixão, tendo-os já citado muitas vezes em outras obras minhas. Também certos escritores de obras perniciosas, que tratam de obscenidades, repetem sempre suas pilhérias impudicas para despertar mais fortemente a concupiscência de seus incautos leitores. E a mim não me será então permitido repetir aqueles trechos das Sagradas Escrituras, que são mais aptos para inflamar os ânimos no amor divino?

Falando deste amor, diz o próprio Jesus:

“Assim Deus amou o mundo que lhe deu seu Filho unigênito” (Jo 3,61).

A palavra assim significa muito: ela nos faz compreender que, tendo-nos dado o seu Filho unigênito, nos demonstrou um tal amor que nós nem sequer podemos compreendê-lo. Por causa do pecado todos nós estávamos mortos, tendo perdido a vida da graça. O Padre eterno, porém, para dar a conhecer ao mundo a sua bondade e nos fazer compreender quanto nos amava, quis enviar à terra seu Filho, para que ele com sua morte nos restituísse a vida.

“Nisto é que se manifestou a caridade de Deus para conosco, que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo para que nós vivamos por ele” (1Jo 4,9).

Para nos perdoar a nós, Deus não quis perdoar a seu próprio Filho, desejando que ele assumisse o peso de satisfazer a justiça divina por todas as nossas culpas.

“O qual não poupou seu próprio Filho, mas entregou-o por todos nós” (Rm 8,32).

Diz-se entregou-o, como se o depositasse nas mãos dos algozes, que o encheram de ignomínias e dores, até fazê-lo morrer de dor em um patíbulo ignominioso. Primeiramente o sobrecarregou com todos os nossos pecados: “E o Senhor pôs sobre ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53,6), e depois quis vê-lo consumido de opróbrios e das mais acerbas aflições tanto internas como externas:

“Eu o feri por causa dos crimes de meu povo. E o Senhor quis quebrantá-lo na sua fraqueza” (Is 53,8-10).

2. São Paulo, considerando este amor de Deus, chega a dizer:

“Por causa de excessiva caridade com que nos amou, quando estávamos mortos pelos pecados, ele nos deu a vida em Cristo” (Ef 2,4-5).

Ele diz por causa da excessiva caridade com que nos amou. Como? Em Deus poderá haver excesso? Sim, fala dessa maneira para que compreendamos que Deus fez pelo homem tais coisas, que, se a fé não o atestasse, não se poderia crê-lo. Por isso exclama a Santa Igreja, cheia de admiração:

“Ó admirável condescendência de vossa compaixão para conosco! Ó inestimável predileção de vossa caridade! Para remirdes o servo, entregastes o Filho”.

Note-se esta expressão da Igreja: predileção da caridade, esse amor é mais caro a Deus que todos os amores que consagra às outras criaturas. Sendo Deus a caridade mesma, o amor mesmo, como escreve São João: “Deus é a caridade” (1Jo 4,8), ama todas as criaturas: “Pois tu amas todas as coisas que existem e não odeias alguma das que fizeste” (Sb 11,25). O amor que ele dedica ao homem parece, porém, ser-lhe caro e avantajado, pois chega a preferir o homem aos mesmos anjos, querendo morrer pelos homens e não pelos anjos que se haviam extraviado.

Ele se entregou a si mesmo.

1. Falando do amor que o Filho de Deus consagra ao homem, notemos que, vendo ele, de um lado, o homem perdido pelo pecado e de outro, a justiça de Deus que exigia inteira satisfação pela ofensa recebida do homem que não estava em condições de a dar, ofereceu-se espontaneamente a satisfazer pelo homem.

“Foi oferecido porque ele mesmo o quis” (Is 53,7).

Como um humilde cordeiro se submete aos carnífices, permitindo-lhes que lhe dilacerem as carnes, o conduzam à morte, sem se lamentar nem abrir a boca, como já estava predito:

“Será levado como uma ovelha ao matadouro, e, como um cordeiro diante do que o tosquia, emudecerá e não abrirá a boca” (Is 53,7).

São Paulo escreve que Jesus, para obedecer a seu Pai, aceitou a morte da cruz:

“Fez-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2,8).

Não se julgue, porém, que o Redentor de sua parte não o queria e só para obedecer ao Pai morreu crucificado: ele se ofereceu espontaneamente a essa morte e quis morrer por própria vontade pelo homem, levado pelo amor que lhe consagrava, como ele mesmo o declarou em São João:

“Eu mesmo entrego a minha alma, ninguém a tira de mim, mas eu mesmo a dou de mim mesmo” (Jo 10,18).

E ajuntou que era esse o ofício de um bom pastor, dar a sua vida por suas ovelhas:

“Eu sou o bom pastor, o bom pastor dá sua alma por suas ovelhas” (Jo 11,14).

Por que quis morrer por suas ovelhas? Que obrigação tinha como pastor de dar sua vida por suas ovelhas? Quis morrer por causa do amor que lhes tinha e assim livrá-las do poder de Lúcifer:

“Ele nos amou e se entregou por nós” (Ef 5,2).

2. Claramente afirmou nosso amante Redentor quando disse:

“E eu, quando for exaltado da terra, atrairei tudo para mim” (Jo 12,32).

Com essas palavras quis designar a morte que teria de sofrer sobre a cruz, como esclarece o mesmo evangelista:

“Dizia isso, significando de que morte havia de morrer” (Jo 12,33).

Comentando as palavras — tudo atrairei para mim — diz São João Crisóstomo: como se tudo estivesse retido pelo tirano. Com a palavra — atrairei— quer o Senhor significar que ele, com sua morte, nos arrancou a força das mãos de Lúcifer, o qual como tirano nos conserva encadeados como escravos para nos atormentar eternamente no inferno depois da morte. Infelizes de nós, se Jesus Cristo não houvesse morrido por nós! Todos deveríamos ser condenados ao inferno. Que grande motivo para nós de amar Jesus Cristo, digo para nós, porque merecemos o inferno e ele, com sua morte e efusão de seu sangue, nos livrou dessa desgraça.

Lancemos de passagem um olhar para as penas do inferno, onde já se acham infelizes a suportá-las. Esses infelizes estão imersos num mar de fogo, no qual sofrem uma agonia ininterrupta, pois nesse fogo experimentam toda sorte de tormentos. Estão entregues às mãos dos demônios, que, cheios de furor, não fazem outra coisa que atormentá-los incessantemente. Mais do que pelo fogo e por todos os outros horrores, são atormentadas pelo remorso da consciência pelos pecados cometidos durante a vida, por cuja causa foram condenados. Vêem fechado para sempre todo caminho que possa conduzi-los para fora desse abismo de tormentos. Vêem-se banidos para sempre da companhia dos santos e da pátria celeste, para a qual foram criados. O que, porém, mais os aflige e constitui o seu inferno é verem-se abandonados de Deus e condenados a não poderem mais amá-lo nem dele recordar-se senão com ódio e rancor. Desse inferno nos livrou Jesus Cristo, remindo-nos não com ouro ou outros bens terrenos, como diz São Lourenço Justiniano (De contempt. mundi. c. 7), mas dando-nos seu sangue e sua vida sobre a cruz. Os reis da terra enviam seus vassalos à morte, na guerra, para conservar a sua própria vida. Jesus, pelo contrário, quis morrer por nós, criaturas suas, para nos obter a salvação.

Amor sem medida.

1. Ei-lo então apresentado a Pilatos como um malfeitor pelos escribas e sacerdotes, para que ele o julgasse e condenasse à morte da cruz, como de fato o conseguiram. Oh! maravilha, exclama Santo Agostinho, ver o juiz julgado, a justiça condenada e a vida morrer (Serm. 191). E qual foi a causa de todos esses prodígios senão o amor que Jesus Cristo tinha aos homens?

“Amou-os e entregou-se assim mesmo por nós” (Ef 5,2).

Oh! se tivéssemos sempre diante dos olhos esse trecho de São Paulo, certamente arrancaríamos do coração todo o afeto aos bens da terra e não pensaríamos em outra coisa senão em amar o nosso Redentor, recordando-nos que o amor o levou a derramar todo o seu sangue para preparar-nos um banho de salvação.

“O qual nos amou e lavou-nos de nossos peados no seu sangue” (Ap 1,5).

Diz São Bernardino de Sena que Jesus Cristo do alto de sua cruz viu em particular cada um de nossos pecados e ofereceu seu sangue em remissão de cada um em especial (Serm. 56 a. 1 c. 1). Em suma, o amor obrigou-o a aparecer nesta terra como o mais vil e humilde de todos, apesar de ser o senhor soberano. “Quem faz isto?” pergunta São Bernardo; “O amor, que, forte, no seu afeto, não conhece dignidade” (In Cant. s. 64). O amor, que, para fazer-se notório ao objeto amado, faz que o amante ponha de parte sua dignidade e procure unicamente o que agrada e contenta ao amado, e assim Deus, que por ninguém pode ser vencido, deixou-se vencer pelo amor, que consagrava aos homens.

É, além disso, necessário refletir que tudo o que padeceu Jesus Cristo em sua paixão, padeceu-o por causa de um de nós em particular e por isso diz São Paulo:

“Vivo na fé do Filho de Deus, que amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20).

O que diz o Apóstolo deve dizer também cada um de nós. Assim, escreve Santo Agostinho que o homem foi remido por um preço tão grande, que parece valer tanto quanto o próprio Deus (De dil. Deo c. 6). E o santo acrescenta em outro lugar: Senhor, vós me amastes, não como a vós mesmo, mas ainda mais do que a vós, pois, para livrar-me da morte, quisestes morrer por mim (Soliloq. c. 13).

2. Mas, podendo Jesus Cristo salvar-nos com uma só gota de sangue, por que quis derramá-lo todo a força de tormentos até expirar de pura dor no madeiro da cruz? Responde São Bernardo que ele quis derramá-lo todo para nos demonstrar o amor excessivo que nos tinha. Digo excessivo, pois também os santos Moisés e Elias chamaram a paixão do Redentor um excesso de misericórdia e de amor:

“E falavam de seu excesso, que havia de realizar em Jerusalém” (Lc 9,31).

Falando Santo Anselmo da paixão do Senhor, diz que a misericórdia superou o delito de nossos pecados (Cur Deus homo 1. 2, c. 21) e isso porque o valor da morte de Jesus Cristo, sendo infinito, superou infinitamente a satisfação devida à justiça divina por nossas culpas. O Apóstolo tinha, pois, razão de dizer:

“Longe esteja de mim o gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14).

E o que dizia São Paulo pode dizer qualquer um de nós. E por isso digamos: E que o maior glória poderia eu ter ou esperar no mundo, do que ver um Deus morto por amor de mim?

Ó Deus eterno, eu vos desonrei com os meus pecados, mas Jesus Cristo com sua morte satisfez por mim e restituiu-vos superabundantemente a honra que vos era devida; por amor, pois, de Jesus morto por mim, tende compaixão de mim. E vós, meu Redentor, que quisestes morrer por mim a fim de obrigar-me a amar-vos, fazei que eu vos ame. Por ter desprezado a vossa graça e o vosso amor, merecia ser condenado a não poder mais amar-vos; dai-me, porém, qualquer castigo, mas não esse. Suplico-vos que não me envieis ao inferno, já que no inferno não posso amar-vos. Fazei que eu vos ame e depois castigai-me como quiserdes. Privai-me de tudo, somente não de vós. Aceito todas as enfermidades, todas as ignomínias, todas as dores que me enviardes, contanto que eu vos ame. Conheço agora, pela luz que me dais, que sois soberanamente amável e muito me amastes; não ouso mais viver sem vos amar. No passado, amei as criaturas e voltei-vos as costas a vós, bem infinito; mas agora vos afirmo que quero amar exclusivamente a vós e nada mais. Ah, meu amado Salvador, se virdes que no futuro deixarei de vos amar, peço-vos que me façais morrer agora; prefiro ser aniquilado a ver-me separado de vós. Ó Virgem santa, Mãe de Deus, Maria, ajudai-me com vossas súplicas e obtende-me que não deixe mais de amar a Jesus morto por mim, e a vós, minha Rainha, que levastes Deus a usar de misericórdia comigo até agora.

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