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A Escolha das Virtudes

Parte III
Capítulo I

A rainha das abelhas nunca sai da colmeia, sem ser rodeada de todo o enxame de seu povinho, e a caridade nunca entra num coração senão como rainha, seguida de todas as outras virtudes, que aí introduz, dispõe em ordem, segundo a sua dignidade, e fá-las agir, regulando-lhes as funções mais ou menos como um capitão dirige e ordena os seus soldados; mas não as faz agir todas ao mesmo tempo nem do mesmo modo, nem a todo momento, nem em todos os lugares. O justo — diz David — será corno uma árvore plantada junto às correntes das águas, que a seu tempo dará o seu fruto, porque a caridade, animando o coração, o leva à prática de muitas boas obras, que são os frutos das virtudes, mas cada uma a seu tempo e em seu lugar. Esforça-te por compreender exatamente o provérbio da Escritura: A música, sendo em si tão agradável, é importuna no pranto.

A evidência nos faz ver este provérbio quanto é defeituoso e fora de tempo o procedimento de muitas pessoas que, entregando-se à prática duma virtude particular, querem opinadamente praticá-la em todas as ocasiões; são semelhantes àqueles filósofos dos quais um queria rir e outro chorar continuamente e são ainda mais desarrazoados que eles, porque se queixam de quem não faz o mesmo e o censuram. Muito errado compreendem o apóstolo São Paulo, que diz que nos devemos alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram e acrescenta que a caridade é paciente, benigna, liberal, prudente, condescendente.

Há, no entanto, virtudes que se devem exercer por quase toda parte, e que não se limitando aos próprios atos particulares, devem compenetrar de seu espírito todas as outras virtudes. Não se oferecem muitas vezes ocasiões de praticar a fortaleza, a magnanimidade, a paciência; mas a brandura, a temperança, a modéstia, a honestidade e a humildade são virtudes cujo espírito e caráter se devem manifestar em todas as nossas ações. As primeiras são mais excelentes e sublimes, mas as últimas são mais praticadas; dá-se aqui o que vemos com o sal e o açúcar; sendo este mais excelente, não é contudo usado tantas vezes e tão geralmente. Por isso nunca nos deve faltar uma boa provisão destas últimas virtudes, tão gerais e comuns.

Na prática das virtudes convém preferir as que são mais conformes aos nossos deveres às que são mais conformes ao nosso gosto. Muito se inclinava Santa Paula às austeridades corporais, nas quais pretendia achar abundantes consolações espirituais; mas a obediência correspondia mais aos seus deveres e São Jerônimo diz abertamente que, quanto a esse ponto, ela era repreensível, jejuando até ao excesso, contra a vontade de seu bispo. Ao contrário, os apóstolos, a quem Jesus Cristo tinha incumbido da pregação do seu Evangelho e da distribuição do pão celeste às almas, julgaram mui sabiamente que não deviam deixar este ministério para se dedicar a obras de caridade para com os pobres, por mais excelente que seja esta virtude. Todos os estados da vida têm suas virtudes próprias; assim, as virtudes dum prelado são diferentes daquelas dum príncipe, dum soldado, duma senhora casada ou duma viúva. Embora todos nós devamos possuir todas as virtudes, não as devemos, no entanto, praticar a todas igualmente e cada um deve aplicar-se principalmente àquelas que são essenciais aos deveres ele sua vocação.

Entre as virtudes que não se referem a nossos deveres particulares, devemos preferir as mais excelentes às mais aparatosas, que muitas vezes nos podem iludir. Os cometas nos parecem em geral maiores que as estrelas, conquanto não lhes sejam comparáveis nem em grandeza nem em qualidade; assim os enxergamos, porque estão mais perto de nós que as estrelas.

Há virtudes que a almas simples parecem maiores que outras e portanto são mais estimadas; a única razão disto é que estas virtudes, estando mais próximas de seus olhos, lhes dão mais na vista e se adaptam mais a suas ideias, que são muito materiais. Por isso o mundo prefere comumente a esmola corporal à espiritual, os cilícios e disciplinas, os jejuns e andar descalço, as vigílias, e toda sorte de mortificação do corpo, à brandura, à benignidade, à modéstia e a todas as mortificações do espírito e do coração, que são, contudo, muito mais excelentes e meritórias. Escolhe, Filotéia, as virtudes que são melhores e não as mais apreciadas, as mais excelentes e não as mais aparatosas, as mais sólidas e não as que fazem muito alarde e têm muito brilho exterior.

De grande vantagem é aplicar-se a uma virtude especial, sem negligenciar as demais, para dar maior regularidade às aspirações do coração, mais intensa atenção é o espírito e maior uniformidade às nossas ações.

Uma donzela de rara formosura, brilhante como o sol, ornada dum modo magnífico e coroada de ramos de oliveira, apareceu um dia a São João, bispo de Alexandria, e lhe disse: Eu sou a filha primogênita do Rei; se queres granjear o meu amor, conduzir-te-ei a seu trono e acharás graça em sua presença. Conheceu o santo que por esta visão Deus lhe recomendava a misericórdia e desde então se entregou tanto às obras de zelo e liberalidade que mereceu o nome de São João esmoler.

Um homem de Alexandria, por nome Eulógio, querendo fazer alguma coisa de grande por amor de Deus e não tendo ânimo bastante para abraçar a vida solitária ou viver em comunidade, sob a obediência dum superior, recebeu em sua casa um pobre coberto de lepra, para praticar ao mesmo tempo a caridade e a mortificação; e, para praticar estas virtudes dum modo mais digno de Deus, ele fez o voto de respeitar, tratar e servir ao seu doente em tudo, como um servo ao seu senhor.

Ora, no decorrer do tempo, tanto o leproso como Eulógio foram tentados de se separarem um do outro e contaram ambos a tentação ao grande Santo Antão, que lhes respondeu:

Guardai-vos, meus filhos, de separar-vos um do outro; porque já estais próximos do vosso fim e, se o anjo não vos achar juntos, correis grande perigo de perder as vossas coroas.

O rei São Luís visitava os hospitais e cuidava dos doentes com tanto desvelo como se fosse sua obrigação. São Francisco amava, sobretudo, a pobreza, a que chamava a sua senhora; e São Domingos, a pregação, o que deu o nome à sua Ordem. São Gregório Magno muito folgava de dar agasalho aos peregrinos, a exemplo do patriarca Abraão, e, como ele, recebeu um dia o Rei da glória na forma de um peregrino. Tobias exercia a caridade, sepultando os mortos. Santa Isabel, sendo uma augusta princesa, achava a sua alegria em humilhar-se a si mesma. Santa Catarina de Gênova, tendo perdido seu marido, dedicou-se ao serviço dum hospital. Cassiano refere que uma jovem virtuosa, que muito desejava se exercer na paciência, recorreu a Santo Atanásio, que a encarregou de uma pobre viúva melancólica, colérica, enfadonha e mesmo insuportável, de sorte que, como a viúva estivesse constantemente ralhando, a jovem tinha ocasião bastante de praticar a brandura e a condescendência.

Assim, entre os servos de Deus, uns se dedicam a servir os doentes; outros a consolar os pobres, outros a ensinar a doutrina cristã às crianças, outros vão atrás das almas desgarradas e perdidas, outros empregam seu tempo a ornamentar os altares e as igrejas, e outros, por fim, levam a vida a restabelecer a paz e a concórdia entre os fiéis.

Imitem os bordadores que, exercendo sua arte, bordam sobre um fundo a seda, a ouro e a prata, toda a sorte de flores, sem que a bela variedade transtorne, um pouco que seja, o plano e a ordem do todo. Essas almas piedosas, tendo-se entregado à prática duma virtude especial, servem-se dela como dum fundo próprio, sobre o qual, por assim dizer, vão bordando todas as outras virtudes, de sorte que têm mais unidade e ordem em suas ações, referindo-as todas a um mesmo fim, que é a prática dessa virtude especial. Destarte todos eles se fazem aos olhos de Deus como um vestido de ouro, que de mil cores a agulha enfeita, recamando flores (SI 44, 10).

Se nos sentimos inclinados e tentados fortemente para um vício, é preciso que envidemos todos os nossos esforços para praticar a virtude que lhe é contrária e a este fim referir a prática das outras virtudes. Deste modo, asseguramo-nos a vitória sobre o inimigo, adquirimos uma virtude que não tínhamos e aperfeiçoamos muito as outras. Se o orgulho e a ira me atacam, é preciso que eu faça o meu coração pender, quanto possível for, para a humildade e a brandura e que converjam para este mesmo fim os meus exercícios espirituais, a recepção dos sacramentos e as outras virtudes, como a prudência, a constância e a sobriedade; pois, assim como os javalis, para aguçar as presas, as roçam e limam com os dentes, os quais com isso também se afiam e limam, o homem que cultiva uma virtude que tem por mais necessária à defesa de seu coração, deve esforçar-se para se aperfeiçoar neste particular por meio das outras virtudes, que por este modo também vão crescendo em santidade.

Não foi isso o que aconteceu a Jó, que, vencendo as tentações do demônio por sua exímia paciência, se tornou um homem perfeito em todas as virtudes?

Ainda mais — diz São Gregório Nazíanzeno — um único ato de virtude praticado com toda a perfeição e com um alto grau de caridade, já elevou mais de uma vez uma pessoa ao auge da perfeição; e ele dá como exemplo a caritativa e fiel Raab, que adquiriu um elevado grau de santidade, só porque concedeu uma vez afável hospitalidade a alguns israelitas.

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(SALES, São Francisco de. Filoteia ou a Introdução à Vida Devota. Editora Vozes, 8ª ed., 1958, p. 134-141)