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A parábola do Filho Pródigo

filho prodigo
O Retorno do Filho Pródigo (Rembrandt 1667-70)

Capítulo XIV

Filius meus mortuus erat, et revixit, perierat, et inventus est – “Meu filho era morto, e reviveu; tinha- se perdido e achou-se” (Lc 15, 24)

Nesta parábola nos pôs Jesus diante dos olhos, de um lado o quadro dos nossos desvarios, do outro a viva imagem da ternura com que recebe o pecador arrependido, que vem lançar-se em seus braços. Meditemo-la, pois, atentamente; dela tiraremos nós numerosos motivos para mais e mais amarmos o nosso divino Mestre.

“Um homem teve dois filhos; e disse o mais moço deles a seu pai: Pai, dá-me a parte da fazenda que me toca. E ele repartiu entre ambos a fazenda”

Estranho modo de proceder este! E no entanto assim é que eu fiz, há já tantos anos. Apenas a razão me começava a distinguir o bem do mal, já eu dizia ao meu Deus: Senhor, dai-me sem demora a saúde, a ciência, as riquezas e a beleza, que eu tudo isto quero, não para vossa gloria, mas para ofender-vos, não para minha salvação, mas para minha ruína. Ó meu Deus, envergonhado o confesso, esta é a linguagem que usei, pelas minhas palavras talvez não, mas por minhas ações. Dignai-vos perdoar a minha loucura.

“E passados são muitos dias, entrouxando tudo o que era seu, partiu o filho mais moço para uma terra muito distante num país estranho, e lá dissipou toda a sua fazenda, vivendo dissolutamente”

Aonde não vai uma desgraçada alma, que uma vez abandonou o seu Deus? Ai! Por minha desgraça já eu o experimentei. Julguei que, longe dele, achava felicidade e deixei-o. Corri pelos caminhos da iniquidade e fui caindo de abismo em abismo. Para onde ia eu? Ah! Uma voz interior me bradava que em vão procurava eu separar-me do meu Deus, que, a meu pesar, para ele corria sempre, mas que depois de haver deixado um Deus cheio de bondade e misericórdia, acharia um Deus justo e irritado.

Eu ouvia esta voz, e ela aterrava-me… mas sempre seguia fugindo, fugindo para longe de vós, Deus meu! Oh! Que graças não dissipei eu, quando longe de vós andava? Graças do meu batismo, graças das vossas inspirações, graças dos bons exemplos que recebia, graças de toda a espécie, tudo, tudo perdi, dissipei tudo, tudo calquei aos pés! Ó meu Deus, meu Deus, chegará dia em que chore assas tão grande desgraça?

“E depois de ter consumido tudo, sucedeu haver naquele país uma grande fome e ele começou a necessitar”

Oh! Quem poderá dizer em que indigência se acha um pecador que já não ama o seu Deus, e que dele se retirou? Uma cruel fome o devora, e nada acha que o console. Ele lá vai por toda a parte a mendigar prazeres, honras humanas, consolações, mas tudo isto o mais que faz é exacerbar o seu mal. Sempre está devorado do inquieto desejo de se satisfazer, e nada, nada absolutamente, pode dar-lhe o que procura. Ei-lo que caiu na mais desastrosa indigência! Que irá agora o infeliz fazer? Escutemos.

“Retirou-se pois dali, e acomodou-se com um dos cidadãos da tal terra: este porém o mandou para um casal seu guardar porcos”

Pobre pecador! Que ganhaste tu em abandonar o teu Deus e o teu pai? A felicidade? Mas eu vejo-te sempre nas lágrimas e dissabores. A paz e serenidade? Mas tu sempre vives em perturbação e sustos; o pensamento da morte e da eternidade te lança na consternação, e os teus remorsos de dia para dia são mais pungentes e insuportáveis. Que ganhaste pois? A vergonha; sim, a vergonha. Eras filho de Deus, e renunciaste a um tão glorioso titulo para te pôr ao serviço do demônio; eras herdeiro dum belo reino e te reduziste à mais completa desnudes. E deste novo senhor que preferiste ao teu Deus, que é que recebeste? Ah!

“Deu-te porcos a guardar”

Cobriu-te de ignomínia engolfando-te nos mais sujos prazeres; arrastou a tua alma pelo lamaçal das voluptuosidades; e, o que é ainda mais de horrorizar, capacitou-te de que este era o teu fim, fez-te esquecer da tua origem celeste e te prendeu ao lodo. Ó pecador! Pecador! Que fizeste da tua inocência? Que fizeste dessa alma, dessa alma tão bela quando pura, tão ditosa quando amava o seu Deus?

“Aqui desejava ele encher a sua barriga de landes das que comiam os porcos, mas ninguém lhas dava”

Pode ir a degradação mais longe?! Imagem horrorosa, mas verdadeira do pecador que se obs¬tina de viver no meio dos seus pecados. Concede às suas paixões tudo quanto exigem, rola de precipício em precipício, esgota todos os prazeres e reduz-se à deplorável necessidade de, como vil escravo, obedecer às mais vergonhosas sugestões do demônio.

“Desejava encher a sua barriga de landes, das que os porcos comiam”

Meu Deus! Meu Deus! Fazei-me bem compreender toda a vergonha a que se condena um infeliz pecador que vive longe de vós. Fazei-o compreender também àqueles desgraçados que vos não amam.

“Até que entrando disse: Quantos jornaleiros há em casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu aqui pereço à fome!”

No meio de suas desordens, o pecador lá lhe vem à memória de vez em quando aquela felicidade que outrora gozava quando a sua alma era inocente, e das graças abundantes que então recebia, e esta recordação começa a lhe fazer vir saudades, e é o principio de uma conversão, de um volver ao seu Deus. Ai! Diz ele consigo mesmo, eu sempre sou um desgraçado muito grande! De qualquer lado que me volte, só vejo motivos de pesar, dor e temor. Eu bem faço por tapar os ouvidos: é em vão, é sempre a mesma coisa. O pensamento daquela minha felicidade de outrora não me deixa e atormenta o meu pensamento; a multidão da iniquidade que de há muitos anos acumulo sobre minha cabeça me horroriza e espanta; noite e dia me roem os remorsos; minhas insaciáveis paixões me pedem pasto a grandes brados ; mandam com império, é preciso que obedeça, e nem um momento tenho de repouso. Oh! Que infeliz que sou! E no entanto, em torno de mim vejo tantas pessoas que vivem na paz e doçura de uma boa consciência! São meus parentes, meus amigos e conhecidos. Ah! Estão contentes; eles, nada lhes falta, amam ao seu Deus; que mais posso eu dizer? Estas mesmas paixões que agora me tiranizam, eles as tem já encadeadas; essas graças de que há tanto tempo estou privado, eles as recebem em abundância; esse belo céu que eu perdi e de que me tornei indigno, eles o esperam com doce confiança, e essa confiança os enche da mais santa alegria.

“Levantar-me-ei, e irei buscar a meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e diante de ti já não sou digno de ser chamado teu filho; faz de mim, como de um dos teus jornaleiros…”

Eis a linguagem do pecador que, tocado da graça celeste, pensa em volver-se para Deus. Não, não, exclama o infeliz! Não posso por mais tempo permanecer num estado tão desesperador. Levantar-me-ei, irei buscar meu Pai celeste, e pedir-lhe-ei perdão. Ó meu Salvador Jesus que boca assas eloquente será para exprimir os diversos sentimentos que agitam o pecador que de seus desvarios se começa a arrepender e a querer entrar em graça convosco! Suas paixões, ainda todas chefes de vida, lhe dizem de mansinho:

“Então tu deixas-nos? Entre ti e nós nada mais haverá de comum? Desde este momento ser-te-á interdita tal e tal coisa para nunca mais? Julgas poder passar sem tal e tal prazer? Ah ! olha bem o que vais fazer…”

E o pobre pecador, acostumado como está a obedecer a todas as suas sugestões, quase não sabe o que faça, hesita, balanceia. Mas a vossa graça, ó Jesus, não o desampara, firme se conserva ao seu lado, excita-o, estimula-o, e com inefável doçura lhe diz:

“Volve, volve ao teu Deus e não te deixes amedrontar dos embaraços, que eu serei contigo. Não poderás fazer tu o que outros mais fracos hão feito? Não escutes a voz da carne de pecado. Doçuras te promete ela, mas serão comparáveis às que acharás na lei do teu Senhor e teu Deus!”

Oh! que terrível é este combate interior de uma alma que está para se converter? Mas também quão consolada é essa alma infeliz quando alfim rompeu magnanimamente suas cadeias e toda se deu a seu divino Mestre!

“Levantou-se, pois, e foi buscar a seu pai. E quando ele ainda vinha longe, viu-o seu pai, que ficou movido de compaixão, e correndo lhe lançou os braços ao pescoço para o abraçar, e o beijou”…

Aqui é que brilham em todo o seu fulgor a bondade e misericórdia do nosso Deus. Mal ele vê um pobre pecador a fazer por sair dos enleios dos seus maus hábitos, vem em seu socorro, anima-o. Não o repele quando a ele se apresenta, mas com toda a bondade o recebe e lhe dá o ósculo de paz e reconciliação. Essa veste cândida da sua inocência ele lha restitui, e convida o céu a tomar parte no gozo que recebe ao achar seu filho:

“Ele era morto e reviveu”

Senhor Jesus, nunca mais esquecerei o feliz momento em que vossa graça, desvendando-me os olhos, me fez ver a profunda miséria em que eu vivia sem vos amar. Onde estava eu, ó meu Deus, onde estava quando me viestes procurar? Ai! Tão longe estava que nunca poderia chegar-me a vós! Mas a vossa misericórdia veio tomar-me pela mão, e me conduziu a vossos pés. Ó céus! Tomai-vos de espanto! Em vez de exprobações tão justamente devidas, recebi de vós, ó Deus meu, um acolhimento do qual só o lembrar-me me faz derramar lágrimas com ternura. Prosternado estava a vossos pés, nem mesmo ousava a vós levantar meus olhos de envergonhado que estava de tantas misérias, senão quando me levantastes, me apertastes entre os vossos braços e contra o vosso coração e me dissestes:

“Meu filho, meu caro filho, já lá vai tudo, tudo fica esquecido, está tudo perdoado”…

Ó meu Deus! Como pode ser que eu caísse na desgraça de vos deixar e vos contristar com tantos pecados? Perdão, perdão, ó meu Pai! perdão, mil e mil vezes perdão! Detesto as minhas in¬gratidões, maldigo as minhas numerosas ofensas, e proponho repara-las quanto possível me for. Ó meu Deus! Eu vos amo, e por amor vosso decidido estou a suportar todos os trabalhos que de vossa mão me vierem; por vosso amor consinto em ser humilhado, desprezado, olhado como um ser vicioso, ignorante, inútil; por vosso amor submeto-me a ser acabrunhado de cruzes exteriores e interiores! Por vosso amor quero fazer tudo que for da vossa vontade. Dai-me somente, ó meu Deus, a vossa força; porque bem sabeis, de mim mesmo nada posso; dai-me a vossa força e tudo o mais irá bem. Dai-me a graça de chorar os meus pecados e viver como penitente até ao fim da minha vida, para que um dia vá lá no céu cantar as vossas misericórdias infinitas. Assim seja.

RESOLUÇÕES PRÁTICAS

Espírito de Penitência

Um só pecado, como Tertuliano diz, merece eternamente ser chorado. Quanto, pois, meu caro Teótimo, não deves chorar todos esses pecados que desde quando estás no mundo cometeste! Ao menos este dia passa-o em santos exercícios de penitencia, recusa a teus sentidos as pequenas satisfações que sem pecado lhe poderás conceder; redobra de fervor em teus exercícios de piedade, esforça-te por viver num grande recolhimento interior. Traze muitas vezes à memória, de um lado a multidão de tuas faltas, para as detestar e delas pedir perdão a Deus, do outro os quase infinitos benefícios que de Deus tens recebido para lh’os agradecer e te excitares ao reconhecimento e amor. Se és rico, dá alguma esmola aos pobres, sobre tudo aos enfermos: se és pobre faze um bom ato de resignação com a vontade de Deus. Por espírito de mortificação e penitencia falia pouco, e um tanto mais baixo que de ordinário; mostra-te mais doce, mais afável, mais obsequioso ainda do que o costume; vive mais retirado, e evita qualquer visita que pela caridade não seja ordenada. Suporta em paz e sem te queixar as fadigas de tua profissão, as doenças, as injurias, as durezas, os maus tratos de que possas ser alvo, e para te animar dize frequentemente a ti mesmo:

“Que são estes sofrimentos em comparação das penas eternas do inferno tantas vezes por mim merecidas ? Ah! que feliz eu sou em poder ainda ganhar o céu a tão pouco custo!”

Se alguém te ultraja e despreza, e presentes o orgulho querer sublevar-se, sem demora lembra-te da presença de Deus e dize-lhe:

“Esta afronta, aceito, ó meu Deus, em espírito de penitencia e por amor vosso”

Põe-te em seguida na maior quietação ; nisto farás a Deus um sacrifício por ele nunca desprezado, o sacrifício de um coração contrito e humilhado.

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(Pinnard, Abade Dom. As Chamas do Amor de Jesus ou provas do ardente amor que Jesus nos tem testemunhado na obra da nossa redenção. Traduzido pelo Rev. Padre Silva, 1923, p. 108-115)